Perfeitos Estranhos - II
Ao entrar pelos umbrais do castelo, fui tomado pela sensação lúgubre da morte. Não me lembrava de como havia chegado ali, tampouco me apercebi de qualquer fonte lógica para o terror que me tomava. Certamente essa, e tantas outras respostas, haviam sido postas à sombra do meu ser, um local que, em definitivo, eu não teria acesso neste momento.
O outro fizera exatamente o que sugeri, em sonho. Pela primeira vez minhas sementes haviam dado frutos dentro daquele ser sugestionável e covarde que compartilhava do mesmo corpo, e mente, comigo.
Sem sorrisos, alegrias e quaisquer vestígios de bondade. Aqui, dentro destas paredes cinzentas e cadavéricas, eu me tornaria realizado. Seus mistérios, envoltos nos mais cruéis ardis, seriam o solo fértil para a concretude de meus mais íntimos desejos.
Dentro do Castelo, não havia limites.
Entretanto, da mesma maneira que eu me tornei um predador, outros também predavam neste território. Havia outros escritores, dispostos a alimentar a máquina carniceira que o castelo se tornara. Caçadores e vítimas. O topo e a base da mesma cadeia.
O outro me servira bem. Percorreu uma distância surreal e empreendeu recursos de forma exaustiva para chegar até aqui. Tudo isso sem, sequer, ter certeza dos motivos. Queria tê-lo como amigo, mas uma relação parasitária como a nossa, dispensa quaisquer interesses do tipo. O horror tomaria conta da sua alma se soubesse da natureza do castelo. Por isso precisávamos vir. É dentro destas paredes que o tempo, a lógica e a sanidade se corrompem e recaem sobre si mesmas.
Ainda é muito cedo para especulações. Muito precisa ser feito.
Para minha surpresa, compartilhamos da mesma visão. A figura feminina, misteriosa e distante, de dentro do castelo. Fui tomado pelo seu olhar arrebatador, impactante e desmedido. Pude sentir, mesmo estando à sombra, que meu colega também foi abatido por esse acontecimento. O Castelo brinca com as distâncias, com o tempo e com as emoções, e eu havia começado a ser manipulado por ele, mesmo distante das suas garras. A silhueta, mesmo ao longe, me parecia próxima. O peso de ser observado quase fez minhas costas curvarem.
Bem, tudo, daqui em diante, deveria ser examinado com cautela e inteligência. Tateei os bolsos e encontrei meus óculos. O outro não usava óculos. As lentes estavam imundas, descuidadas e completamente embaçadas. Arrisco dizer, com segurança, que notei um ou dois riscos. A falta de cuidado para com minhas coisas me aborrecia, mas consigo ser empático o bastante para compreender esse dissabor.
As portas se fecharam às minhas costas, em um som seco e amadeirado. Uma pequena nuvem de poeira me abraçou pelas costas e tingiu, gentilmente, toda a minha roupa. Era chegada a hora de explorar os ambientes internos desta obscenidade.
O salão principal era amplo, teto alto e com uma infinidade de caminhos possíveis. Deduzi a direção que deveria seguir para chegar à janela do curioso espectro que me observou enquanto chegava.
...
A atmosfera deste Castelo é sutil e todo ruído da porta principal, o mínimo que seja, é possível ser ouvido, ainda que estejamos em cômodos distantes. Ouço, então, o ranger da colossal porta a se abrir. A minha intuição briga com a possibilidade de não ser tal figura que avistei ao longe nas matas atrás do Castelo.
Apesar de calejada pelas experiências funestas que ocorreram em minha vida, estou intrigada. A curiosidade rouba os meus princípios e todas as regras que eu estabeleci para mim mesma. A voz interior ainda me questiona se devo fazer o que estou imaginando. Mas o meu espírito aventureiro é grandioso demais para recusar os riscos.
Coloco um roupão que me cobre ainda mais, como uma capa em tom canela, escondendo o damanoute que me veste, escondendo o meu corpo quase completamente. “Cuide do teu corpo. Ele é um templo.” A lembrança da voz maior me orientando ressoa na minha mente.
Aproximo-me da porta do meu quarto e abro. O ar gélido do Castelo, bem como o som da antiga música do baile anterior parece ecoar, ainda, em meus ouvidos. Mas não mais do que o som de passos que começam a me confirmar que é aquela figura que vi nas matas.
Do alto, ainda escondida em frente à porta da clássica alcova onde me hospedo, o vejo, vejo mais próximo. A balaustrada traz espaços em filigranas, onde o rosto baixo e reto do homem se encaixa simetricamente. Agora as minhas certezas ganham forças e uma emoção dolorosa me encontra. É a primeira figura masculina que os meus olhos percebem depois de tudo. Os únicos homens cujos quais tenho vivência são os da minha família, vizinhos xamânicos e indígenas da região onde eu estava morando.
Percebo que há muito para relatar sobre esses estudos que resolvi fazer. Mas o que este homem está fazendo aqui no Castelo? Ele veio me importunar? Quase me arrependo de ter vindo para este lugar. Mas seria muito luxo e muita exigência da minha parte que este grandioso recinto hospedasse apenas mulheres.
“Homem”. Respiro. A palavra precisa soar natural para mim. Preciso parar de temê-los. Por que tenho medo deles desta maneira? Nem todos são iguais àquele ser, eu sei, não são.
Encosto-me na balaustrada e a magia do lugar parece querer trazer alguma percepção ou conexão entre mim e a figura masculina. Ainda assim, disfarço bem, para que ele não note a minha presença o observando. Torço, ainda, para que o meu perfume natural não me denuncie, espiando-o na parte alta do Castelo, escondida na balaustrada em frente a alcova.
Quase não respiro, enquanto ele parece se direcionar a um alvo. O que ele vê? Penso em voltar para o meu quarto, antes que essa figura me alcance com o seu olhar. Não quero ser percebida.
Talvez, se eu buscar um arco e uma flecha, eu me sinta mais segura, mas algo dentro de mim pede para não o machucar sem antes saber quem ele é. Pela recepção que tive anteriormente, estou segura. Nem mesmo devo ousar direcionar a lança em sua direção. Não posso. Sinto que não devo. Aqui ninguém me fará mal.
Fico apenas pronta para recuar rapidamente ao meu quarto, se por um acaso ele me perceba. O capuz que cobre a minha cabeça deixaria alguma incerteza para ele, de que talvez eu não fosse um ser tão indefeso assim, como ele percebera da minha janela, ao longe.
Alexandre Neri é escritor, além de ávido estudante sobre o ocultismo e seus mistérios. Após uma situação traumática, não registrada, passou a apresentar comportamentos atípicos e destoantes com sua personalidade. Os episódios se tornaram cada vez mais frequentes, o que fez Alexandre abandonar o tratamento que seguia…