Balthazar Crown – O Chamado do Castelo
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
A pena deslizou pelo papel como uma adaga na carne. Cada frase, um corte. Cada palavra, um espasmo de dor. No último ponto, a personagem se extinguiu — abandonada em um fim de agonia, sem consolo, sem salvação.
Balthazar repousou a pena. O silêncio que se seguiu era denso, como se o próprio ar lamentasse. Então veio a recompensa: um calor súbito percorreu suas veias, reacendendo-lhe a vitalidade; a pele pálida brilhou com frescor juvenil; os músculos se retesaram com a firmeza de quem jamais conheceu decadência.
E então vinha o deleite. Não simples vigor, mas um arrebatamento febril, comparável ao êxtase da carne. Cada fibra de seu corpo vibrava como se mãos invisíveis o percorressem. O calor que lhe incendiava o peito não era apenas vida — era gozo, puro e incontido.
A imortalidade lhe trouxera a dádiva de provar todos os sabores da carne e, ao mesmo tempo, o fardo de que nenhum sabor permanecia por muito tempo. Mulheres, homens, corpos cis e trans, ativa ou passivamente — a eternidade lhe dera palco para todas as formas de prazer.
E, ainda assim, o tédio era sua sombra inseparável. Até o êxtase, quando repetido, tornava-se um abismo de monotonia. Talvez fosse por isso que a dor de seus personagens o excitasse tanto: era a única novidade capaz de incendiar-lhe a alma já cansada.
Ergueu-se da cadeira, esguio, elegante, com o porte ereto de um príncipe amaldiçoado. Atravessou o aposento até uma mesa lateral, onde repousava uma taça de cristal. Serviu-se de vinho vermelho-escuro, tão denso que lembrava sangue coagulado.
Elevou a taça na penumbra e brindou com a ausência invisível. — Mais um, minha silenciosa companheira. Mais um que se extingue para que eu continue. Tu não me tomas, mas jamais me deixas. Brindemos, pois, à eternidade que me cobra sempre em sofrimento alheio.
O cristal soou no vazio, e nenhum eco respondeu.
Foi então que o ar se quebrou. Não em som, mas em essência. O vinho tremeu dentro da taça, as velas se curvaram todas em uníssono, e um frio atroz se ergueu das pedras do chão, escalando-lhe os ossos como serpentes geladas.
Balthazar não piscou. Observava. Notou que as chamas não vacilavam ao acaso, mas oscilavam num mesmo compasso. Notou que o frio vinha em pulsos, intervalados como batidas de coração. Notou, sobretudo, que não estava só.
Uma presença sutil, quase imperceptível, pairava no ar. Algo invisível o estudava, respirava junto às suas palavras, como se o chamasse para atravessar os limites do aposento. O ar pulsava, pesado, e o frio que subia pelos ossos parecia guiar seus passos para um destino além da realidade conhecida.
A sombra diante dele não possuía forma fixa. Oscilava, dobrava-se, esticava-se. Em certos instantes lembrava um véu flutuando; em outros, curvas insinuantes, bocas que suspiravam, rostos deformados — talvez ecos das vítimas que enterrara em suas narrativas. O aposento inteiro cheirava a livros úmidos e a perfume noturno, como se cada palavra escrita por suas mãos tivesse se dissolvido no ar para compor aquele espectro.
Um homem comum teria recuado, mas Balthazar sorriu. — Ah… então és tu quem me observa quando escrevo.
Os olhos treinados dele conseguiram captar um espectro. Era parecido com as manifestações espectrais de seus personagens, que surgiam diante de si após escrever seus finais trágicos e dolorosos. Mas tinha algo a mais. Uma atração quase irresistível. Era como se a pena que repousava em seu bolso o puxasse na direção dela, como se o próprio ar o acariciasse.
Um passo na direção da presença e o chão dissolveu-se. As paredes tombaram como cortinas rasgadas. E ele caiu — não em queda, mas em transição. Quando abriu os olhos, o mundo era outro.
À sua frente erguia-se uma fortaleza impossível, construída à beira de um penhasco sem fim. Suas torres góticas se retorciam em direção ao céu, mas o céu era um vazio sem estrelas, um firmamento oco que não conhecia sol nem lua. As muralhas respiravam em silêncio, como se cada pedra fosse parte de um corpo vivo.
E os jardins… Infinitos. Labirintos de flores negras e árvores que se curvavam em ângulos proibidos, multiplicando-se como reflexos em espelhos partidos. As estátuas, espalhadas em meio à vegetação, fitavam-no com olhos que se moviam quando não eram vistos. Algumas possuíam corpos nus entrelaçados, contorcidos em êxtase petrificado. Pétalas úmidas brilhavam como se estivessem molhadas de lágrimas — ou de suor.
Balthazar caminhou até a beira do abismo. O vento inexistente não lhe tocava o sobretudo, mas ainda assim ele se abriu, como asas prontas a alçar voo. Seus olhos azul-acinzentados refletiam o nada infinito.
Ergueu a taça de vinho que ainda segurava. O líquido permanecia intacto, como se tivesse atravessado os mundos com ele.
— Eis teu palco, morte. — Ele sorriu com cinismo. — Ainda não ousas tocar-me, mas ainda assim me segues. Que teatro sem tempo é este, que aguarda pela minha pena?
O silêncio respondeu, profundo, eterno.
Mas então, outra voz se ergueu — não vinda do vento, mas da própria essência do abismo. Era doce e terrível, como sinos fúnebres ao longe, e carregava um perfume que lembrava tanto o velório quanto o leito.
— Chamam-no de Castelo do Drácula. — A figura surgiu diante dele, moldada em beleza impossível. Seus cabelos eram véus de treva, sua pele, mármore iluminado por uma luz sem fonte, e seus olhos, dois poços nos quais todos os séculos afundavam. — Um lugar fora do tempo, fora do espaço. Se chegou até aqui, é porque já o aguardavam. Mas não cabe a mim lhe explicar mais.
Balthazar sorriu com ironia suave, erguendo a taça na direção dela.
— E por que não vens comigo? Foste minha única companheira verdadeira por todas essas décadas.
Os lábios da Morte se curvaram, entre riso e desdém.
— Seria deveras interessante, Balthazar. Mas não fui convidada. Você sim. O que começa aqui, no receptáculo que se alimenta das tuas palavras, é apenas o primeiro capítulo.
O vento inexistente silvou como gargalhada. A Morte sorriu pela última vez — gesto que era tanto consolo quanto sentença — e então se desfez no ar, como névoa tragada pelo próprio vazio. Nenhum passo, nenhum som: apenas deixou de estar, tão abrupta quanto surgira.
Balthazar, sozinho outra vez, voltou-se para os portões colossais do Castelo. O vinho ainda repousava intacto em sua taça, e seu reflexo nas paredes vivas parecia observá-lo com expectativa. Ele respirou fundo, bebeu o líquido em um gole só, e uma centelha de júbilo percorreu-lhe o olhar.
— Está certo, então. A eternidade já estava ficando entediante. Aqui inicio um novo capítulo na minha história.
E caminhou, sem pressa, como quem escreve as próprias páginas com o simples peso de seus passos, sem saber ainda todos os segredos que aguardavam por ele no coração do Castelo Drácula.
Hel J. L. Costa
Hel J. L. Costa é escritor, poeta e editor da Editora Helden. Sétimo filho, nascido em Ribeirão das Neves (MG), em 1985, encontrou na escrita uma vocação desde a adolescência. Dedica-se a obras de fantasia, terror e temas sobrenaturais. Participa de diversas antologias e é autor do romance A Donzela e o Vampiro, disponível na Amazon. » leia mais...
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa
                        
            
  
  
    
    
    
  
  
    
    
    
Diário de Sibila von Lichenstein. (Sem data - que dia é hoje?) A partida de Arale deixou um vazio em meu interior. Era curioso — talvez até contraditório…