9 - Toda dádiva reclama seu tributo

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Diário de Sibila von Lichenstein

(Sem data - que dia é hoje?)

A partida de Arale deixou um vazio em meu interior. Era curioso — talvez até contraditório — que ela, tão claramente não humana, tenha sido a primeira criatura a me tratar como igual neste mundo. Porque aquele braço, e os apetrechos que manejava com tanta maestria, não pareciam pertencer a este tempo, nem a este plano. Nunca vira algo semelhante, e essa estranheza me dizia, sem palavras, que Arale não era feita da mesma matéria que eu. E, talvez por isso mesmo, soubesse: Arale, assim como eu, também não pertencia a lugar algum. Pois tanto ela quanto eu ansiávamos por algo — não algo que pudesse ser tocado com as mãos, mas algo que preenchesse de dentro para fora. E não saber exatamente o que era essa coisa tornava o buraco ainda maior. Sua companhia nos últimos dias me fez recordar os tempos em que passava as tardes na faculdade, auxiliando minha amiga Eleanor, que era assistente de laboratório. Amigos verdadeiros como Eleanor são raros — e Arale dera sinais de que, se o destino e nossos anseios não tivessem nos afastado, seríamos grandes amigas.

Apesar de ela ter me guiado até aqui, cuidado de mim, dividido sua comida e quase dado a própria vida para me salvar — e por mais grata que eu esteja por isso — ainda assim, sinto-me extenuada.

Acho que nunca irei me perdoar por ter atraído Eleanor para as garras de Frankenstein, por mais que, à época, eu não soubesse das verdadeiras intenções dele.

Ao mirar-me no reflexo de uma poça esta manhã, percebi que os hematomas que o fantasma de Eleanor — ou o que quer que tenha sido aquilo — deixara em meu pescoço se alastravam agora pelo colo. Algumas ervas que Arale me ensinou a macerar estavam retardando esse efeito, mas algo me dizia que eu não tinha muito tempo. À medida que a mancha crescia, menos vontade eu tinha de viver. Menos necessário se tornava o ato de falar. Urgia a vontade de sobreviver, se movimentar. Mas agora, diferente de muitas outras vezes, eu sabia para onde estava indo.

Resgatava forças das profundezas do meu ser para continuar caminhando. Minhas roupas ainda estavam úmidas do orvalho da manhã recém-anunciada. Além do ardor do hematoma — que queimava como fogo sorrateiro em meu peito — todo o meu corpo gritava por descanso. Eu estava cansada. Mas seguiria em frente. Ou melhor: para cima.

As parcas indicações diziam que Séttimor estava logo ali. Mas, para alcançá-la, era preciso seguir por uma trilha estreita de terra que serpenteava ao redor de uma montanha alta, feita de formações rochosas tão escuras quanto o ébano. Ao menos, era o que dizia o mapa desenhado na página arrancada do livro de botânica. O terreno começava a se elevar gradualmente, e continuei subindo até encontrar o início de uma trilha estreita que parecia seguir para o alto da montanha. No início da trilha, uma placa de madeira desgastada em formato de seta, pregada sobre um cepo, apontava para cima. Tive de passar os dedos sobre ela para ler as palavras quase apagadas pelas intempéries: “Vila de Séttimor”. Segui pela trilha, animada por estar no caminho certo.

Ao contornar uma das curvas, rastreando o chão em busca da erva do descanso, não ouvia som algum — apenas o vento, cada vez mais cortante. Eu sabia que estava só. Procurava não olhar muito para cima; mantinha os olhos no chão pedregoso, até que decidi parar para descansar aos pés de uma conífera enorme. Minhas roupas não eram para aquele clima frio e úmido, e a temperatura caía à medida que eu subia. Então o frio se apoderou de mim, invasivo e cortante. Percebi que não deveria ter parado. Aquele frio me lembrou do dia em que a lareira se apagou após a morte de meu pai. Eu estava deitada sobre o corpo gélido dele havia horas, mas só começara a sentir frio quando o fogo se apagara.

Era inverno, e era necessário que a lareira fosse constantemente abastecida para nos manter aquecidos. Mas meu pai sucumbira à peste — e eu, com ele. Nada vagava pela minha mente, a não ser o desejo de morrer. Lembro-me do corpo dele perdendo o calor, e com esse calor se esvaía também toda a garantia de que eu estava segura no mundo. Eu não comera, não me levantara para urinar, não dormira... Tinha a impressão de que já não estava mais viva. Quem cuidaria de mim? Recordo-me apenas da sucessão de claros e escuros através do vidro embaçado da janela, marcando a solidão que durou dias.

Foi então que ele apareceu. Primeiro, batendo à porta e espreitando pelo vidro da janela de nossa humilde cabana. Como eu não fizera menção de me mover ou responder, abriu a porta, que estava desimpedida.

— Santo Deus, finalmente a encontrei! Estava preocupado. Você simplesmente não veio mais ao trabalho. Perguntei de você para os alunos e professores, mas ninguém sabia dizer. Parece que não é muito sociável com os outros, não é, menina? Venha... me dê a mão. Deixe-me ver o que posso fazer pelo seu pai.

Eu já conhecia o doutor, mas nunca imaginara que ele viria atrás de mim. Pois, antes de me levar para morar com ele, eu não era estudante de medicina — era apenas assistente de laboratório. Minha função era limpar os corpos doados para estudo e cuidar da manutenção dos laboratórios da faculdade de medicina. Mais especificamente, era assistente do Dr. Frankenstein. Ele não se acertara com nenhum outro, e isso, para mim, era formidável, porque me permitia perguntar, observar e aprender. Mesmo que a universidade não permitisse alunas — apenas homens podiam se matricular — eu alimentava a ilusão de estar mais próxima do meu sonho. Mas era apenas isso: uma ilusão. Eu nunca seria aceita como estudante. Eu era uma mulher pobre e fraca, filha de um simples camponês.

Talvez seja por isso que aceitei a oferta de Viktor, morar em sua casa, sob a desculpa de que seria sua assistente particular em projetos pessoais que não envolviam suas atividades na faculdade. Em troca, eu poderia continuar sendo sua assistente na faculdade e assistir a todas as suas aulas, contanto que ficasse quieta e perguntasse apenas ao final. A morte de meu querido pai fora traumática, mas foi o que me catapultara. Em alguns meses, eu não era apenas assistente dele. Graças ao prestígio e após entrevistas com os professores donos das bancas do alto conselho da universidade, eu me tornei a primeira aluna mulher do curso. 

Foi nesse mesmo período que Viktor passou a me chamar com frequência ao seu consultório, sempre com o pretexto de revisar gráficos e anotações de galvanismo. 

— Sibila, minha querida, conseguiu terminar de revisar os gráficos de ontem?

— Ainda não, Dr. Frankenstein. Fiquei até o término da minha aula e depois fui para casa, fiquei estudando até tarde. Mas prometo que hoje terminarei.

— Eu já não te avisei de que o trabalho aqui do laboratório precisa estar em dia, Sibila? — perguntou com a cabeça baixa, mas os olhos azuis cravados em meus olhos.

Eu me virei, tentando disfarçar a minha preocupação.

— É claro, doutor! Me perdoe, acho que posso deixar de assistir a minha última aula, para vir até aqui e revisar. 

— Mas por que não revisa agora, já que está aqui, minha cara? —

 Aproximou-se sorrateiro, e falou próximo a mim, baixo e em tom professoral: — Entendo que dê valor aos seus estudos, mas espero que entenda também que nenhuma mão que nos estende algo, sairá vazia... Tudo tem um preço, ainda que não seja dinheiro. Por exemplo... 

Senti seus dedos deslizarem da base do meu pescoço para o topo da nunca, enquanto fazia isso, terminou de falar:

— Eu dou a faculdade destaque com minhas pesquisas inovadoras no campo da medicina. O galvanismo pode ter aberto as portas, mas serei eu, o primeiro médico a fazer o ser humano a... Bem, não preciso falar sobre minhas pesquisas, você as conhece bem. O que queria dizer é que dei prestigio a essa casa de ensino e em troca pude cobrar favores, como exigir que a faculdade oficializasse o que já fazíamos, oficializando-a como minha aluna. Ou acha que, se você viesse bater à porta deles, como uma camponesa órfã de pai e de mãe, eles te dariam ouvidos? Eles sequer abririam as portas para te receber.  Portanto, você deve se dedicar aos estudos, mas não se esqueça de que também me deve algo, certo minha pequena? — Agora a mesma mão que passeara pelo meu pescoço, enlaçando as pontas dos dedos nos cabelos finos e quentes da minha nuca, agora tentavam enlaçar a minha cintura.

Afastei-me um pouco assustada, mas mantive o rosto e o meu tom sério:

— Claro, doutor. Eu irei me dedicar.

Ele sorriu satisfeito. Olhou por cima das lentes dos óculos, o olhar cortante como gelo:

— Claro, querida, tenho certeza de que não vai me decepcionar, não é mesmo?

Seria aquele o primeiro sinal? Será que eu deveria ter percebido que Viktor era muito mais do que apenas um professor bondoso tentando ajudar uma órfã, filha de um velho conhecido seu? Naquele dia eu não percebi nada, eu nem sabia porque aquele toque me incomodara tanto. Mas, de alguma maneira, ele fizera os sinais de alerta do meu corpo tocarem: pelos eriçados, o coração acelerado, a respiração no limiar de se descontrolar, não fosse o meu foco nos gráficos de galvanismo.

— Quando terminar, cara aluna, venha para casa. Aguardarei você para o jantar. 

Viktor saiu, não sem antes me lançar um olhar de contentamento. Sorri de volta,  mais por educação do que por vontade. Eu sabia que não podia desagradá-lo; qualquer deslize poderia colocar em risco o meu futuro promissor na medicina. Após terminar de analisar os gráficos e deixar os resultados sobre a mesa do seu escritório, atravessei os corredores em direção à saída.

No corredor, dois retratos enormes dominavam as paredes: Bismarck e Humboldt, erigidos quase como ícones de devoção. Diante deles, dois alunos discutiam as teorias mais modernas. Lembro-me de ouvir as palavras galvanismo e eletricidade, mas, à medida que me aproximava, percebi que a conversa rapidamente se inclinava para a política, que definitivamente não era o meu foco. Eu não compreendia como aqueles homens jovens e privilegiados poderiam alegra-se tanto com a perspectiva que a guerra trazia, eles se consideravam os “soldados do conhecimento”. A meu ver: tolos. De qualquer forma, quem era eu para mudar alguma coisa nesse mundo, se nem senhora da minha própria realidade eu era? Eu sabia bem como me viam: uma mera trabalhadora, igual a tantas outras…

Ao longo dos outros corredores, as vozes se multiplicavam e ecoavam contra o mármore frio das paredes. Jovens exaltavam a promessa de uma Alemanha unificada sob a força de Bismarck, outros comentavam sobre as campanhas militares iminentes, como se a guerra fosse apenas mais um experimento inevitável. Entre eles, alguns exaltavam os avanços da medicina e chamavam Viktor de “o futuro da ciência prussiana”. Eu caminhava em silêncio, absorvendo cada palavra como quem ouve o cântico de um templo ao qual nunca pertenceria. 

Um galho caiu próximo de mim, me despertando do transe em que as lembranças sobre Viktor me colocavam. Estava exausta, mas parar, naquele frio significava morte. Não precisava ser estudante de medicina para saber disso, eu precisava levantar. Então, para colocar o corpo em movimento, decidi colocar a mente para funcionar primeiro. Coloquei o meu diário sobre as minhas coxas e comecei a escrever. Eu ia escrevendo e transmitia as palavras de meu íntimo para o papel, as letras saíam trêmulas, mas não vacilantes:

“Hoje, pensei em Viktor novamente. Me surpreendi ao sentir falta dele. Antes dele, eu era uma camponesa órfã e desempregada. Depois dele, eu era a assistente estudante de medicina do Dr. Frankenstein. Eu era a mulher, dentre tantos homens, eu era a grande escolhida, o mais novo prodígio que se sobressaíram aos olhos dele. Assim eles diziam, mas eu sabia que era só órfã e útil. Hoje eu sei, ele se achava um deus e eu era seu sacrifício.”

As Últimas Rosas Vivas de Séttimor
Mergulhe em um mundo suspenso entre a morte e o delírio. Sibila desperta em um castelo cercado por campos de lavanda e vozes sussurrantes, sem saber como chegou ali, tem apenas a certeza de que matou Viktor Frankenstein. Mas naquela terra onde o tempo se desfaz e os mortos sussurram, certezas são as primeiras a apodrecer. Inspirado no universo de Frankenstein, este romance gótico reinventa personagens clássicos que desafiaram a morte e pagaram o preço. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Aryane Braun

Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?... » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa

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