Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Sangro em silêncio, e a vida me devora,
sou mais ausência do que corpo, um fardo.
A cada passo o abismo me implora,
mas visto a máscara do riso pardo.

Meu ser é cárcere em noite sonora,
eco perdido em labirinto, aguardo.
A dor é carne, o espírito a devora,
e o nada sussurra seu hino bastardo.

Procuro em vão sentido que me una,
mas a existência é lâmina e me fere.
Tudo é penumbra, e o mundo, a minha ruína.

O ser-em-si se cala e me difere,
mas sigo — alma vazia, vaga, nua —,
na máscara de sangue que me confere.

Sangro.
Sangro por dentro como quem se desfaz de si mesmo.
Ser-para-a-morte, Heidegger murmura,
mas a morte não vem,
a morte não vem!
e eu permaneço,
eu permaneço preso à minha própria carne trincada.

A máscara… ah, a máscara é tudo que resta.
Sangue coagulado que pinto sobre o rosto do espírito.
Riso falso.
Lágrimas costuradas.
O mundo não pode ver que, por baixo,
sou um corpo oco,
um eco oco,
um dasein fraturado.

“A angústia desvela o nada”,

dizem os mestres.
Sim.
Mas o nada me abraça como um amante ciumento,
e suga meus ossos até que só reste
o som de um coração
que bate para ninguém.

Caminho pelas ruas como um espectro com nome.
Carrego as palavras que já não me pertencem.
O ser-em-si me devora.
O ser-com-os-outros me apodrece.
O ser-para-a-morte me observa do canto da sala,
com seus olhos vazios,
pacientes.

E eu — poeta ou coisa —
cavo túneis dentro de mim
à procura de algo que não existe.

(há silêncio, depois grito, depois silêncio de novo)

A máscara escorre.
O sangue seca.
E ainda assim coloco outra por cima.

Para quê?
Para quem?

Não sei.
Talvez para a plateia invisível
que um dia vai aplaudir
quando finalmente eu tombar,
rasgado,
sem máscara.

Sonho-vos nos corredores de cinza,
phantasma talhado de osso ao luar.
Vossa pele alva — porcellana, perfeita, intacta —
persegue-me como cathedral devorada por fogo.

Vossos olhos d’azul são tormentas
que me desnudam a alma,
rasgando a medulla de minhas noites,
inda que jamais vos tenha tocado.

Saboreio-vos no sangue em minha língua,
imaginando vossos beiços, frios como sepulcros d’inverno,
a pregarem-se nos meus em beijo
que me perderia, e tal perdição cobiço como lobo famélico.

A distância é lâmina torcendo-se em minhas costelas,
cruel mar tragando cada brado.
Romperia a terra em pedaços,
queimaria cidades até se fazerem esqueletos negros,
por estar uma só vez — só uma —
no eclipse de vossa sombra.

Beberia a luz de vossas veias,
se apenas assim vos guardara,
por dar carne a vosso espectro,
sentir-vos tremer ao quebrar
toda a cadeia que nos aparta.

Mas quedo-me aqui,
escrevendo vosso nome em sangue
nas paredes que ninguém jamais verá,
enquanto vossa formosura me devora vivo
desde mil léguas de distância.

As cortinas de veludo rubro abrem-se com um ranger que parece o suspiro dos ossos.
Korzavéll surge no palco.
Sua máscara está rachada.
O trono de ossos o espera, mas ele não se senta.
Ele fala ao vazio, aos espectros, aos vivos fingidos.

Ah, plateia de mortos disfarçados, de corações que fingem pulsar! Vede-me! Vede o miserável!
Sou o último tecido niilista de humanidade costurado ao peito de um daemon cansado.
Eis-me aqui, cuspindo palavras como se fossem sangue coagulado,
no palco onde os espelhos só devolvem rostos partidos. Ergue os braços, como quem invoca um deus ausente.
Riem de mim?
Riem de Korzavéll,
lágrimas negras?
— Pois saibam: cada gargalhada que lançais é um prego a mais em minha carne!
E que carne é esta?
Esta ruína que palpita ainda porque eu a amo...
Sim, amo-a!
A bruxa de olhos azuis que toca minha face em astral projeção,

Caminhai devagar sobre os espelhos, cortando os pés descalços. O sangue escorre.
Ele ri, com um som quase infantil.

Oh, como ferem e enfeitiçam esses olhos!
Safiras lapidadas pela própria Hékate!
Olhos que me arrancam a medula,
que me dilaceram sem nunca ter me visto!
Ah, minha feiticeira distante...
Tu és o veneno que bebo com devoção.
Tu és a lâmina que me arranca a última esperança e, ainda assim, eu imploro por mais cortes, rasgai a própria máscara e revela um rosto manchado de lágrimas e sangue.

Dizei-me, plateia de espectros:
O que resta de um homem quando a beleza que ele adora lhe é inalcançável?
Resta-lhe o delírio.
Resta-lhe o teatro.
Resta-lhe a dança na beira do abismo, enquanto a razão se desfaz como cera ao sol.

Korzavéll ajoelha-se diante do trono de ossos.

Escutai-me, ó deusa dos cães e dos encruzilhados!
Hékate, senhora da noite que me moldou neste grotesco invólucro!
Tomai minha alma, já nada há que possa salvá-la.
Que eu me torne espectro, fera, poeira — o que quiserdes!
Mas deixai-me tocar sua pele uma vez...
Uma vez apenas!
Nem que eu tenha de beber o mundo inteiro em sangue para comprá-la!
Um silêncio mortal se instala.
Ele ergue a cabeça, com os olhos vidrados e vazios.

Mas vós sabeis, vós todos sabeis:
Eu permanecerei aqui, minha consciência estilhaçou,
rasgando meu próprio peito, escrevendo seu nome nas paredes que nunca verão a luz.
Ele se levanta,
tropeçando nos espelhos, deixando rastros de sangue.

Olhem bem para mim, malditos!
Olhem bem, pois eu sou o retrato do vosso destino:
a fome sem fim.
A espera que não conhece aurora.
O aplauso que não salva, apenas adia o silêncio.
A luz da lua cai sobre ele, fria, cortante.
Ele abre os braços como um crucificado.

A cortina descerá um dia.
Então, como eu, chorareis.
Como eu, vos sabereis ridículos.
Como eu, suplicareis por um olhar,
um beijo,
um toque de um amor que jamais vos alcançará.
Ele ri, um riso rachado,
ecoando no teatro vazio.

A luz se apaga.

Ah, permiti que as cortinas se descortinem em véus de sombra e suspiros — pois eis que surge Korzavéll, o cômico das lágrimas negras, habitante do palco onde o riso e o pranto se abraçam numa dança macabra e sublime.

No coração do teatro antigo, em pedra fria e madeira rangente, repousa um cenário que é sonho e pesadelo entrelaçados.

O teto, outrora inteiro, agora ostenta uma fenda descomunal — ferida aberta nos ossos do edifício — por onde a luz gélida da lua escorre como prata morta, pincelando os cantos com silêncios estelares.

As estrelas, testemunhas mudas da ruína, espreitam o palco com olhos de condenação, e a brisa da noite varre o salão como um sussurro de promessas quebradas.

O ar, espesso como o hálito de um morto-vivo, traz o odor metálico da melancolia e o doce azedo da ironia.

Lá, candeeiros de bronze, talhados em formas retorcidas de gárgulas que parecem espreitar os próprios espectadores, lançam uma luz trêmula — um fogo bruxuleante que se torna sombra, sombra que se torna lamento.

O chão é um mosaico de espelhos partidos, cada fragmento refletindo um rosto que se perde e se procura, um sorriso que fenece antes de nascer.

As cortinas, vestidas em veludo escarlate enegrecido pela fumaça das velas, respiram com a mesma tristeza que um prisioneiro antes da sentença.

Sobre o palco, um trono de ossos entrelaçados, feito não de poder, mas de promessas quebradas, espera o Cômico em seu reino de desespero teatral.

Quando Korzavéll pisa nesse tablado, o ar se adensa — e o tempo se curva ante sua presença.

Sua máscara, de porcelana fina rachada, sorri com os lábios de uma ironia que dilacera.

Cada passo seu ecoa como o tambor de um coração que bate na desesperança, e sua voz, rouca, se derrama como um cálice transbordando de lágrimas petrificadas.

“Ó vós, plateia de espectros e vivos ensaiados, quão frágil é o véu que vos separa do abismo!

Riam, chorem, pois tudo é um ato e eu sou o último suspiro antes do silêncio.”

Dançai — não como um homem, mas como a própria alma do teatro que se desfaz em cinzas.

As paredes sussurram antigos segredos em línguas esquecidas, e o vento, agora tocado pelo luar, parece carregar o lamento de mil risos jamais ouvidos.

O relógio, parado, acusa a eternidade de um instante em que a esperança perece, e Korzavéll, com sua máscara quebrada, é o maestro dessa sinfonia de desventura sob a luz fria da lua. Com as estrelas refletidas nos olhos de porcelana, ele murmura, como quem cospe uma profecia:

“Aqueles que se escondem no riso, hão de chorar quando o aplauso cessar — pois a alegria encenada não salva, apenas atrasa o cortejo.”

O teatro respira sua dor.

E Korzavéll reina — não para destruir, mas para mostrar que, no palco da vida, somos todos meros atores, condenados a representar a dor vestida em risos, até que a cortina final caia, e o escuro reine, silencioso e absoluto.

Revisão de Sahra Melihssa
Codex Sangria
Arale Fa’yax, de uma realidade cibernética, atravessa o tempo e encontra-se no Castelo Drácula. Em sua busca por vingança e por pergaminhos esquecidos, ela se depara com horrores proféticos através de sua máquina de escrever feita de ossos. Arale registra cada descoberta e cada revelação que a aproxima de sua verdade. Em meio a memórias fragmentadas e mistérios mórbidos, ela enfrenta confrontos épicos, determinada a vingar-se e a libertar-se, embora, talvez, sua condenação seja a única certeza. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Marcos Mancini

Marcos Mancini é um escritor, artista e criador cujo trabalho transcende as fronteiras da literatura convencional, mergulhando nas profundezas da psique humana e explorando as complexidades da condição existencial. Sua obra reflete uma busca incessante por significado, através de uma escrita visceral que combina poesia, filosofia e uma rica variedade de estilos literários... » leia mais
18ª Edição: Theattro - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa

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