Velian: Sob o Chamado de Nix
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Voltava do Rio de Janeiro, onde estivera com Cassandra — e, embora não quisesse nomear a saudade, ela se insinuava, discreta, como aquele odor residual que permanece na pele mesmo depois de muitos banhos. O que fora dito, o que fora silenciado, tudo seguia reverberando dentro dele, como as ondas mansas do mar que vira na partida, batendo sem pressa na memória.
Agora, Fortaleza o recebia novamente, com suas ruas quentes mesmo à noite, onde o suor se misturava ao sal do ar, e os prédios se erguiam como colossos cansados, com as fachadas descascadas pela maresia e pelo tempo. A cidade vibrava em outra frequência, mais bruta, mais nua, mais próxima da pele.
Velian caminhava pelas calçadas irregulares da Aldeota, depois cruzou lentamente o Centro, onde vitrines fechadas refletiam sua figura alongada, espectral, entre restos de lixo e placas enferrujadas. Não tinha pressa.
Procurava sangue, sim — como sempre — mas não apenas para se alimentar ou tentar saciar-se, e sim como quem deseja, ainda que secretamente, sentir-se parte de alguma coisa: um olhar, uma troca de palavras, um encontro improvável no meio da noite suada de uma cidade que parecia tão alheia quanto qualquer outra.
A cada passo, sentia a carne mais densa e o espírito mais leve, como quem se desloca gradualmente entre dois mundos. O Rio ainda latejava nele, com o cheiro doce das manhãs à beira-mar e as conversas enigmáticas com Cassandra, aquela que sempre o fazia sentir-se ao mesmo tempo mais forte e mais vulnerável. Ela ficara — e ele voltava a vagar, como sempre.
Havia ironia nisso, claro: uma criatura tão antiga, tão cheia de histórias, e, ainda assim, eternamente condenada a buscar um sentido nas ruas de cidades modernas, iluminadas por néons decadentes e com o asfalto rachado expondo raízes velhas que insistiam em romper a ordem dos homens.
Mas, naquela noite, algo o atravessou.
Não foi uma voz, nem um clarão súbito. Foi uma espécie de tração invisível, como um músculo antigo que, mesmo atrofiado, ainda sabe se mover.
O Castelo Drácula o chamava.
Velian reconheceu o chamado não com surpresa, mas com aquela espécie de resignação cúmplice, como quem sabe que não poderia ser de outro modo. Sempre que retornava a Fortaleza, era assim: primeiro vagava, depois era puxado — nunca sabia ao certo quando ia acontecer, mas sempre acontecia. A cidade nunca o retinha por completo.
...vazios e, ao sair dali, sentiu que o ar se rarefezia, como se os elementos conhecidos do espaço urbano começassem a se dissolver.
Em poucos passos, já não estava mais na cidade.
O limiar era tênue, quase imperceptível: o concreto quebrado do calçamento cedia lugar ao solo úmido, coberto de folhas mortas, e o som abafado do trânsito se extinguia, substituído pelo sussurro grave das árvores e o canto noturno de pássaros invisíveis.
A floresta sagrada que envolvia o Castelo Drácula o recebia como sempre — sem alarde, sem cerimônia, mas com a gravidade de quem reconhece um de seus.
As ruínas esquecidas surgiam entre as folhagens como espectros de um passado ainda mais antigo que o seu: colunas tombadas, altares carcomidos, fragmentos de deuses anônimos soterrados pelo musgo e pelas raízes. Velian passava a mão sobre uma dessas pedras frias, como quem saúda um irmão adormecido.
E ali, sem necessidade de invocação, a presença se fazia sentir: Nix.
Desta vez, a senhora da noite não apareceu personificada, como figura, nem como entidade delimitada, mas como princípio. A Senhora da Noite. A vastidão que acolhe e engole tudo, a mãe e o túmulo, o véu e o abismo, Mas, Velian sabia que ela estava lá.
Velian ergueu os olhos. O céu, opaco, parecia mais uma pele translúcida do que uma cúpula infinita. Entre os galhos entrelaçados, as estrelas apenas sugeriam sua existência, veladas pelo manto de Nix.
“Salve, Senhora”, disse, quase como quem saúda uma velha amiga — com respeito, mas também com uma ponta de ironia que não conseguia extirpar nem mesmo diante do mistério absoluto.
Continuou caminhando entre as ruínas, sentindo a umidade das folhas sob os pés, o aroma profundo da madeira apodrecida e da terra revirada. Aquelas eram as relíquias que verdadeiramente o comoviam — não os objetos das cidades, não os monumentos de concreto, mas esses sinais silenciosos de uma eternidade que se consome lentamente, mas nunca desaparece por completo.
O Castelo Drácula ergueu-se, enfim, diante dele, imponente e mutilado, com suas torres fendidas e os vitrais quebrados deixando entrar feixes aleatórios de luar que se desfaziam como fumaça.
Velian parou um instante antes de cruzar o limiar. Respirou fundo, não por necessidade — a respiração, há muito, perdera o sentido biológico — mas, como quem deseja ainda sentir o ar, como quem quer lembrar que ainda é corpo, mesmo sendo, sobretudo, espírito.
Sentia-se vazio e cheio ao mesmo tempo.
Carregava a melancolia inevitável de quem já vira demais, perdera demais, desejara demais. Mas também uma esperança tênue — um traço de luz sob as cinzas do tempo, um resíduo de fé na possibilidade de que, ainda assim, pudesse encontrar um outro, ou um outro sentido, ou apenas o próximo capítulo de sua própria errância.
Sorriu sozinho, ali, diante do portão entreaberto, como quem reconhece o paradoxo: a busca infinita, a travessia interminável, mas, ainda assim, o desejo de continuar.
Adentrou o castelo, as paredes úmidas absorvendo sua figura como um líquido escuro.
E ali, naquele breve intervalo entre o fora e o dentro, o antes e o depois, percebeu mais uma vez a estranha maleabilidade do tempo.
Para os homens, o tempo é linha, é flecha, é cronologia. Para ele, o tempo era mais: um tecido espesso e ondulante, ora nó, ora fenda, ora espiral.
As noites de Fortaleza e do Rio de Janeiro sobrepunham-se agora como véus transparentes: o mar ao longe, o cheiro das frutas na calçada, o calor da pele de Cassandra, a textura úmida das ruínas, o hálito frio de Nix. Tudo coexistia, simultâneo e indistinto.
Não havia passado que se encerrasse, nem futuro que prometesse redenção. Apenas camadas, justapostas, ressoando umas nas outras, como ecos infinitos numa caverna sem fundo.
E, contudo, havia ali, naquele excesso, uma espécie de melancolia mansa: a constatação de que nenhum instante se perde, mas, também, de que nenhum pode ser plenamente revivido.
Velian sabia que continuaria a atravessar cidades, florestas, corpos e séculos, sempre tocando o tempo com a ponta dos dedos, mas, sem jamais poder retê-lo entre as mãos.
Essa percepção, contudo, não o paralisava. Ao contrário: alimentava aquela esperança sutil que, como uma lâmina fina, cortava a densidade da noite.
Ainda que tudo fosse transitório, ainda que tudo fosse simultâneo e indomável, ele continuava.
E esse continuar não era desespero, mas, uma escolha — ou talvez, mais honestamente, uma necessidade inscrita em sua própria natureza.
Sorriu sozinho, ali, diante do portão entreaberto, como quem reconhece o paradoxo: a busca infinita, a travessia interminável, mas, ainda assim, o desejo — sempre o desejo — de seguir adiante.
Adentrou o castelo, as paredes úmidas absorvendo sua figura como um líquido escuro.
E ali, sob o olhar invisível de Nix, senhora do mistério e do silêncio, Velian seguiu.
Como sempre.
Como nunca deixaria de ser.

Velian, sob a maldição ou bênção da imortalidade vampírica, percorre as ruas de Fortaleza, mergulhado em reflexões sobre sua existência eterna. Em meio a angústias e silêncios, ele confronta os dilemas do tempo, da vida e da morte, questionando o sentido e os limites da razão. Ouvindo um chamado visceral do Castelo Drácula, Velian mergulha em divagações introspectivas, onde a busca por respostas é ainda mais complexa e a solidão, ao lado da melancolia, levam-no a vivências atormentadoras. » Leia todos os capítulos.

Weslley Cunha
Weslley Cunha é um escritor cuja obra mergulha nas profundezas da existência humana e nos labirintos da mente, explorando temas que dialogam com a filosofia existencial e fenomenológica e psicanálise. Graduado em Letras, especialista em Literatura e mestre em Ciências da Linguagem, ele combina seu conhecimento acadêmico com uma sensibilidade única para a narrativa. Suas paixões literárias incluem a investigação das fronteiras entre o real e o imaginário... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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