Canto para meus tormentos

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Abracei o teu convite e vim prestigiar a ópera. A Vida, a Morte e o Tempo estarão presentes no teatro das sombras. Abram vossas mentes para as experiências que farão um por um transmutar e viajar por entre os planos. Será uma noite inesquecível...

A dádiva da arte é para mim um novo sopro do ânima. É a força motriz que me sustenta longe da dor que é viver sob esta forma decadente. Agarro-me à esperança de que tal ópera seja uma ode ao meu escapismo. Perdoem-me, almas ancestrais, bestas viajantes, apreciadores de uma boa taça de sangue: em mim habita a angústia que dilacera tal qual os malditos raios do sol.

Lencastre está prestes a confrontar seus próprios demônios...

Na penumbra do teatro, sou fragmento suspenso entre dimensões. A matéria que compõe este receptáculo vampírico vibra em frequências ancestrais, pois em minhas veias corre o tempo líquido, essência primordial dos navegantes da eternidade. O palco diante de mim não é mero tablado — é portal onde as esferas se tangenciam, onde o Limiar permite vislumbrar os segredos que habitam o âmago do ser.

As cortinas se erguem, e eis que reconheço: sou aquele que desperta as criaturas, sou o convocador inconsciente de meus próprios tormentos. A orquestra entoa acordes que ressoam no ventre do caos, cada nota uma navalha a gerar carnificina em minha alma fragmentada.

No centro do palco, materializa-se a primeira visão: meu eu humano, tessituras de luz dourada emanando de sua forma. Vejo-me quando ainda pulsava em sintonia com o ritmo cósmico, quando o sol era bênção, não maldição. A criatura que fui estende-me as mãos, e em seus olhos habita a pergunta eterna:

— Por que escolheste navegar pelas sombras, quando podias dançar na luz?

Mas o Limiar rejeita respostas simples. O tempo sob seu comando é serpente que devora a própria cauda, e compreendo: não houve escolha, apenas o desenrolar do destino.

O palco transmuta-se em arena cósmica. Na fenda mais profunda de minha consciência, criaturas se gladiam — são deuses de suas histórias, manifestações dos medos que habitam o âmago do vampiro que me tornei. Cada demônio empunha lâminas forjadas nas essências da culpa, do remorso, da solidão infinita.

Vejo-os duelarem: a Nostalgia, de armadura dourada, combate contra a Sede Eterna, de garras escarlates. O Medo da Eternidade, gigante de olhos vazios, confronta a Culpa Ancestral, que chora lágrimas de sangue. Em cada golpe desferido, fragmentos de minha essência se desprendem como pétalas negras no vento cósmico.

Sou espectador e arena simultaneamente. Em meu peito, o coração que não bate ressoa como tambor de guerra. As criaturas lutam por domínio sobre o receptáculo que me tornei, mas todas ignoram uma verdade fundamental: sou o gladiador supremo, aquele que deve enfrentar a si mesmo na batalha derradeira.

Em minhas veias corre mais que sangue alheio — corre o poder dos navegantes primevos, daqueles que primeiro caminharam entre os mundos. Sou herdeiro de linhagem que remonta aos tempos quando a separação entre vida e morte era mera ilusão criada pelos mortais.

Ergo-me da poltrona, mas não sou mais Lencastre. Sou entidade que carrega em si a sabedoria das eras, receptáculo onde predador e protetor são um só no tecer dos destinos. Minha forma física começa a transmutar — não em destruição, mas em transcendência.

A carne se dilata, expandindo-se além dos limites mortais. Cada poro torna-se portal, cada célula uma estrela pulsante no cosmos interior. O sangue que jorra não é perda — é oferenda sagrada ao altar da transformação. Cada gota que toca o palco germina em flor de luz sombria, criando jardim onde o belo e o terrível dançam em harmonia.

Não há dor — apenas êxtase da dissolução consciente. Sou chuva de meteoros atravessando o véu entre os mundos, sou canção que ecoa nos corredores do tempo.

Minha voz, agora multidimensional, entoa o cântico final:

— Do sacrifício nasce a aliança sagrada... do receptáculo fragmentado emerge o navegante eterno... nas essências derramadas, a continuidade...

O teatro desaparece, e na sinfonia infinita que permeia o universo, minha nota ressoa eterna — não como lamento, mas como hino à transformação que aguarda todos os navegantes do tempo.

Revisão por Sahra Melihssa

Escrito por:
Carlos Conrado

Carlos Conrado nasceu na Bahia e hoje vive em São Paulo. Suas formações estão em Designer, Publicidade e Psicanálise. Escritor, ilustrador e poeta, um amante do soturno inspirado em grandes nomes, os quais: Álvares de Azevedo, Lord Byron, Edgar Allan Poe, Baudelaire, entre outros. Identifica-se, portanto, “como um ‘neo simbolista’, colocando o cosmos como meu principal tema de expressão”. Seu livro “Os Segredos da Maçã” está disponível... » leia mais
18ª Edição: Theattro - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 18ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de agosto de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa

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