Ordam Noctam
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
E N W
No céu, a Lua pairava sobre as torres alongadas do castelo tenebroso como um farol prateado. Sua esfera irradiava um cintilar frio e cristalino. Ao seu redor, um halo perfeito, um arco circular de luz diáfana que parecia emanar do satélite, como um diadema mágico flutuando na noite. O pano de fundo da visão era um azul-marinho profundo que tingia o céu noturno, quase aveludado, salpicado em milhares de estrelas, cada uma cintilando em matizes de branca luminosidade, dispostas em constelações desconhecidas. A névoa tênue que serpenteava pelos beirais góticos das ameias realçava o contraste entre as sombras do castelo e o esplendor etéreo da Lua.
Uma densa névoa cobria os corredores de pedra do Castelo Drácula, escorrendo pelas paredes como um véu e também encobria os pensamentos de Minerva, mergulhados em águas profundas e insondáveis. Naquela noite, a Lua que pairava no céu marcava o momento sagrado em que a própria Lua, a Mulher e a Noite se tornavam uma só entidade arcaica.
Minerva sentia, em seu íntimo, o chamado da escuridão reverberar no peito, como o bater de um tambor antigo anunciando o inevitável. A hora se aproximava, talvez a mesma que a visitara no sonho da clareira dos láparos. Sua magia pulsava sob a pele como eletricidade contida, e seus olhos, já tingidos pela essência da loba, brilhavam em azul ardente, como safiras em chamas anis.
Minerva caminhou lentamente pelos corredores de pedra, onde a luz das tochas tremeluzia. Seus passos ecoaram ao atravessar o umbral da galeria dos espelhos, um santuário onde o silêncio parecia respirar. Ela usava um vestido preto e longo, feito de linho. Os cabelos cacheados estavam presos em um penteado elegante: duas tranças delicadas unidas atrás da cabeça, firmadas por um broche de mariposa prateada. A cada passo, alguns cachos soltos escapavam e saltavam como se tivessem vida própria, dançando na penumbra.
Seus dedos trêmulos apertaram a cruz de Lwccirtt, pendurada em seu pescoço por uma corrente de prata. O artefato parecia pulsar sob sua pele, emitindo um calor que desafiava o frio do castelo. Minerva parou diante do maior dos espelhos, onde seu reflexo começava a distorcer, como se o vidro refletisse além da carne.
Minerva sentia a sua aura lupina estremecendo e uivando dentro de si, enquanto seus olhos marejados perdiam o brilho, tornando-se escuros. A sombra de Lwccirtt não a deixara. Ela sentia a entidade chamando por seu nome, era estranho como uma coceira no interior de seu cérebro. Ela inclinou o corpo sob o próprio reflexo frio, arquejando. Não desejava ceder à vontade daquela criatura, já não sabia se era ela quem clamava por ele ou se ele era quem chamava por seu nome. Irritada por aquela sensação desconfortável, ela iniciou um pequeno ritual de banimento na tentativa de se proteger contra as influências da entidade em sua mente.
Com a voz firme, porém baixa como uma prece murmurada à meia-noite, ela pronunciou o Tetragrammaton: "Ateh... Malkuth... Ve-Geburah... Ve-Gedulah... Le-Olam... Amen." A cada palavra, sua aura lupina se expandia. Ela estendeu o braço diante de si e com os dedos desenhou no ar o primeiro pentagrama flamejante, visualizando linhas incandescentes surgindo do vazio, traços de luz azul anil que cortavam a escuridão como lâminas. Virando-se lentamente para cada ponto cardeal, ela repetiu o gesto e invocou os nomes sagrados com precisão ritualística, cada entonação carregada de intenção:
"YHVH" — ao leste, onde o vento ouviu a prece.
"ADNI" — ao sul, onde a chama tremeluzente da vela cresceu.
"EHEIEH" — ao oeste, onde um espelho estalou, como se algo ali respondesse.
"AGLA" — ao norte, onde o farfalhar de asas foi ouvido.
A cada nome entoado, uma presença se manifestava. Minerva não as via com os olhos comuns, mas sentia-as com a alma: os Arcanjos Raphael, Gabriel, Michael e Uriel alinhando-se ao seu redor, como pilares de luz velada que sustentavam o mundo oculto. Ela ergueu os braços ao alto, a cruz ainda pendendo em seu peito, e declarou:
— Diante de mim, Raphael; atrás de mim, Gabriel; à minha direita, Michael; à minha esquerda, Uriel; e ao meu redor brilha a estrela flamejante, e no centro... Eu a filha da Noite, demando que minha mente seja protegida do chamado de Lwccirtt!
Ao finalizar, ela traçou um círculo ao seu redor, selando o espaço entre os mundos. A energia no ar parecia viva, como se o próprio véu entre as realidades tivesse sido rasgado. O banimento estava completo e Minerva pedia em seu interior que a proteção funcionasse. Ela deitou dentro do círculo mágico que havia projetado no chão, aflita, pedindo que sua prece fosse ouvida. Seu peito dolorido parecia ainda sangrar e a cruz parecia tão pesada que ela evitou segurar.
A bruxa percebeu que o tempo tinha passado quando olhou de relance no espelho e viu que sua aura lupina estava mais tranquila, aninhada ao seu lado. Ela se ergueu, desfazendo o círculo sagrado. Sua mente parecia mais aliviada, mas algo ainda chamava por ela, algo bem mais familiar. Mais uma vez, ela se aproximou de um dos espelhos, sentindo-o vibrar como se algo estivesse prestes a saltar de dentro dele. Uma imagem encapuzada se formou à sua frente.
Sua mãe, a rainha Nuara, se apresentava diante dela no reflexo do espelho, envolta por um manto negro que cobria sua cabeça. No braço esquerdo, ela segurava uma tocha acesa. Minerva tentou ver o que estava por trás, mas além de sua mãe, só conseguia ver a escuridão. A rainha removeu o capuz, revelando seu rosto pálido e olhos sulcados repletos de sabedoria. Elas eram como irmãs gêmeas. Uma luz reverberou no fundo do espelho. Minerva estendeu a mão para Nuara, que atravessou o vidro como um portal.
As duas se entreolharam e Minerva deu um sorriso saudoso, se aproximando para abraçá-la. No centro do grande salão circular dos espelhos, Nuara removeu o seu manto negro sagrado completamente, o símbolo triplo da lua em sua testa era vívido. Ela viera para buscá-la.
As duas se entreolharam por um instante que pareceu suspenso no tempo. Um sorriso suave, carregado de saudade, curvou os lábios de Minerva antes que ela se aproximasse para abraçá-la. O símbolo da lua tríplice, marcado como prata na testa de Nuara, parecia reluzir na luz das pequenas chamas das velas.
— Filha da sombra, núrida, filha minha... — disse Nuara. — As deusas exigem teu parecer. Não podes mais te esconder neste castelo.
— O castelo não me aprisiona. Eu escolhi ficar. — Minerva respondeu. Os olhos dela estavam faiscantes. — Respeito nosso poder, respeito as deusas, mas este lugar... este lugar é onde pertenço.
— Somos filhas da escuridão, Minerva. — retrucou Nuara, dando um passo adiante. — Não me espanta que te sintas em casa num lugar infestado por forças caóticas e criaturas soturnas... tão soturnas quanto nós. Mas os “incidentes” com as entidades cósmicas que encontraste... não são meros desvios. Primeiro foi Ttyphrssett, e agora... o outro. Espero que não cometas o mesmo erro.
— Sei que não fui cautelosa, mas aqui, neste castelo, meu poder pulsa com mais vida. — murmurou Minerva, apertando a cruz de Lwccirtt contra o peito. — Sinto a força crescer em mim.
— A última entidade... aquela que agora sussurra em tua mente... — Nuara olhou fundo nos olhos da filha. — Ela é quase tão antiga quanto as próprias deusas. Sentimos que ela busca uma brecha entre os mundos... por meio de ti.
— Mesmo assim, não desejo partir. — insistiu Minerva. — Aqui é onde me sinto em paz.
— Minerva... — a voz de Nuara suavizou, mas seu tom era grave como um presságio. — Venho como mãe para aconselhar, mas como sacerdotisa, trago o aviso: as deusas te reivindicam. Elas te nomeiam filha da Noite e te chamam para cumprir os votos. Vais continuar recusando a fonte de onde teu poder emana?
— Eu não recuso as deusas... — disse Minerva, com uma sombra de dor. — Mas não desejo me curvar a nenhum dogma. Não quero ser moldada. Quero escolher.
Nuara suspirou. Por um instante, pareceu mais velha do que o tempo.
— Minerva... Minerva... — sussurrou, com pesar e respeito. — Como mãe, te compreendo. Como sacerdotisa, anuncio: se ignorares o chamado, virá uma punição breve... mas inevitável. — As feições de Nuara estavam mudando quando Minerva se aproximou e, com curiosidade, perguntou: — Mãe?
As feições de Nuara estavam a se contorcer como cera derretendo sob uma chama invisível. Seus olhos tornaram-se completamente negros, vastos como o espaço entre as estrelas. A pele da sacerdotisa parecia agora feita de mármore translúcido, pulsando uma luz que não vinha deste mundo. O salão dos espelhos mergulhou em penumbra.
As velas arderam azuladas, despertaram as chamas como vulcões e os reflexos nos espelhos evaporaram, apenas o vazio ficou. Um vento atravessou o salão, trazendo um incenso antigo, fazendo Minerva arquejar, sentindo um nó na garganta e um peso nos ombros ao cravar os olhos no rosto inóspito de Nuara.
Nuara já não estava mais ali, algo mais antigo e sombrio se instalava em seu corpo. Algo que desejava se comunicar com Minerva e o fez.
— Filha do crepúsculo... do sangue e do limiar. — disse uma voz múltipla, entrecortada e vibrante, como se ecoasse de três bocas ao mesmo tempo. — Tu, que carregas o símbolo dos mundos, ouve agora o chamado do Trino Lunar.
As palavras reverberaram pelas paredes como um cântico sendo entoado. A primeira a se manifestar foi Hekate. A voz tornou-se mais grave.
— Eu sou Hekate, guardiã das encruzilhadas, dos véus e dos segredos esquecidos. Tu despertaste Lwccirtt com tua sede de poder e tua recusa ao chamado. Mas o castelo o sente. Ele se ergue e se corrompe por tua presença e teu toque. — Minerva, com a boca entreaberta, estava com a respiração agitada. Uma pausa foi feita.
— Se não reconheceres o Trino, se não curvares tua alma diante da Noite que te fez, serás devorada. Se Lwccirtt não te encontrar, outros te encontrarão. Caninos longos repletos de sede de sangue.
Hekate estendeu o braço e a cruz de tungstênio no pescoço de Minerva flutuou e brilhou com uma luz ofuscante e cobalta. O calor atravessou sua pele por dentro do vestido. As sombras se movimentaram atrás de Nuara, dançando, sussurrando, contorcendo-se em espirais. Quando Hekate silenciou, foi a vez de Nix assumir. O corpo de Nuara relaxou e a voz tornou-se suave, fria como o orvalho em uma cripta de pedra.
— Eu sou Nix — sussurrou ela — a noite que antecede todas as noites. Berço das sombras, véu da origem. Lwccirtt encontrou uma fenda em ti, Minerva. Ele não te tocou, ele te viu. E no espaço entre um pensamento e outro, plantou raízes. — O chão sob os pés de Minerva pareceu oscilar, como se ela fosse cair.
— Tu não és apenas filha de Nuara. És filha da noite. Da escuridão que acolhe, que vê, que cala. Não negue mais o trino. Tuas recusas rasgam os limites do real. Reconhece-nos ou teu corpo será abrigo para o que nem os espelhos ousam refletir!
Minerva estava incrédula e relutante, exibia seus dentes afiados e sua aura de sombras lupina erguia-se por trás dela. Ela arquejava, buscando a calma que havia perdido. Em um momento, fechou seus olhos, buscando silenciar a mente e, quando os abriu, encontrou a face da última deusa.
Com o corpo ereto, mas a alma afundada, Minerva ainda sentia o coração pulsando não só no peito, mas nas pontas dos dedos, nas têmporas, na cruz de tungstênio em seu pescoço. Aquela presença era mesmo real? Eram as deusas... ou algo fingindo ser?
Então, a última voz ecoou — mais baixa, como uma canção esquecida, cantada para embalar o mundo.
— Eu sou Selene, a que dança com a lua e vela o sono dos vivos e dos mortos. A luz que brilha apenas para os que sabem ver no escuro, aquela que guia a carruagem da luz prateada da noite! Não viemos como donas de teu destino, mas como espelhos daquilo que tua alma esconde. Não somos uma prisão de dogmas. Somos a tua força, criança!
As velas tremeluziam em tons leitosos. A sala girava devagar à percepção da jovem bruxa. Minerva manteve-se em silêncio, olhos arregalados. Dentro de si, o turbilhão de perguntas: eram mesmo elas? Ou seria Lwccirtt, sorrindo por trás das máscaras? Selene parecia ouvir seus pensamentos.
— Dúvida é também parte do caminho. A fé cega é tão perigosa quanto o poder não reconhecido. Mas o que há dentro de ti, Minerva, não pode mais ser adormecido. Nós somos o que sempre foste. A trindade que gerou tua alma nas sombras da floresta. A Noite, a Morte, a Vida. A mulher. A loba. A sacerdotisa!
O rosto de Nuara travou-se em uma única expressão até que seus olhos retornaram ao que eram antes e sua cabeça pendeu para frente, ocultando a transformação. Um espelho às costas de Minerva trincou. A fenda serpenteou o vidro como uma raiz e a cruz de tungstênio em seu pescoço esquentou de novo.
Num rompante final, as sombras se recolheram e a pele de Nuara retomou seu tom natural. Seus olhos negros recuperaram o brilho materno, e o contorno de seu rosto, antes esculpido pela presença tripla, amoleceu-se em traços de calor humano. Ela piscou, como que despertando de um sonho, e estendeu a mão para Minerva, num gesto doce e pesaroso. Uma lágrima cintilante verteu do olho esquerdo de Minerva. Ela baixou os olhos e, sem segurar a mão de Nuara, se distanciou com um passo para trás.
Sem uma palavra, Nuara voltou-se para o maior dos espelhos ao fundo do salão. Com dedos firmes, traçou no vidro um símbolo antigo, um círculo entrelaçado por outros círculos. O espelho vibrou, a superfície ondulou como água, e um portal prateado abriu-se diante delas.
Nuara lançou um último olhar à filha, um misto de amor, urgência e saudade, antes de atravessar. O portal se fechou num estalo surdo, deixando apenas o sussurro das velas e o eco distante de um chamado lunar que prometia voltar. Minerva, sozinha novamente, apoiou a mão no espelho frio, sentindo, ainda, a presença das deusas desaparecer e permaneceu ali firme, em sua mente, buscando uma saída para não se entregar a nenhum dos caminhos dispostos. Ela desejava desbravar o próprio caminho, ela era o próprio conhecimento. Sua natureza de loba urgiu em seu interior.
Tomada por um impulso, ela cravou as unhas sobre os próprios braços e rasgou a pele junto da roupa. A carne dela se desdobrou em fiapos elásticos, se soltando do corpo enquanto seus ossos se remodelavam com um estalo, os dedos alongaram-se em patas firmes, a coluna arqueou, tornando-se a lombar lupina, e os músculos se rearticularam abaixo do pelo negro como breu. Em seu lugar, ergueu-se a loba de pelagem espessa e lustrosa e olhos de um azul frio. No chão, ficaram espalhados os pedaços de suas vestes e, ao lado, o broche de mariposa e a cruz de Lwccirtt, abandonados.
Sem hesitar, a criatura correu e saltou por uma das janelas do castelo, rompendo o vidro em estilhaços. Cada pata pousou com leveza sobre o chão após a alta descida. Ela galopou feroz, em disparada, rumo à floresta obscura. O vento noturno assobiava por entre os pinheiros, arrastando consigo o som ritmado de seu tropegar; em poucos instantes, Minerva-loba sumiu na penumbra das árvores, deixando apenas o farfalhar da mata para trás.

Minerva, uma bruxa de alma inquieta, carrega como fardo uma maldição perversa e encontra no Castelo Drácula um refúgio para sua incessante busca por conhecimento e poder. Entre vivências intensas e, por vezes, terríficas, ela confronta os espectros de seu passado enquanto desvenda os enigmas que o presente lhe impõe. A cada passo, aproxima-se de uma verdade arcana — e sente que sua maldição é a chave oculta desse segredo. Sua rapsódia é o confronto entre sua alma e o destino que lhe foi imposto, enquanto revela uma sensibilidade de essência rara, há muito tempo privada de se expressar. » Leia todos os capítulos.

Júlia Trevas
Júlia Graziela Pereira Trevas é uma escritora de 29 anos, natural de Campina Grande, Paraíba. Formada em Letras - Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), também atua como professora de inglês. Sua paixão pela escrita começou ainda na pré-adolescência, quando compunha pequenos versos. Mais tarde, ao ingressar na faculdade, aprofundou-se na literatura gótica, que hoje é uma de suas principais influências criativas. Uma curiosidade interessante é que... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
O licor havia se impregnado em minhas papilas gustativas. Meus dedos agitados fazem o líquido viscoso balançar com inquietação dentro da taça…