Capítulo 12: Seu Raro Rubi — Rubi Áurea
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
O céu era como a De Sterrennacht, embora em tons azúleos, opacos e cinéreos — sombrio além, n’um mistério lôbrego. O vento soprava apenas no alto, ondulando as nuvens e distorcendo os astros. Gotas de orvalhos límpidos e luminescentes flutuavam no silêncio, como se pairassem à espera de um instante preciso para se desfazerem em si mesmos. Observei, do alto vitral de minha alcova, uma paisagem de névoa índigo-gris e tão logo vi que a escuridão em seu interior era grave, tornando as velas e suas flamas em pobres pontos oscilantes, símeis aos orvalhos que pairavam. O breu daquele antro, era causado por mim, eu sentia; entretanto, lá fora, estava tão símil... ou será que as trevas estão em meus olhos?
Sentei-me; meu corpo nu sobre o veludo negro e a nutrúrnia em meu peito, vívida. Sob tamanho êxtase... fui capaz d’esta insanidade? Por quê? Eu me lembro, mas não compreendo. Eu me questionava enquanto mantinha meus olhos nas veias que se criaram entorno do caule sob minha tez; tocava-as e sentia pulsar o que poderia ser sangue ou a seiva da planta. Sob tal estranha luz anil-acinzentada, a pele tomava um tom símil, embora mais escuro, demarcava o hematoma do corpo estranho que se alojava no meu torso. A respiração melhorara, porém, ainda era mais parca do que outrora.
Ao velutum cabinet guiei-me na lentidão própria do tempo frígido que espargia ao derredor; em seu interior, observei as roupas que não eram minhas, a quem pertenceram afinal? Meus tecidos, eu acreditava, jaziam sob a terra úmida ou protegidos na solidão da saudade por aqueles que um dia amei. Vasculhei as peças, nenhuma me parecia correta diante da necessidade de manter exposta a nutrúrnia de meu torso e, ainda, proteger-me do álgido clima. Em um lance tênue de segundos silentes, senti profunda sede. Sede? Era-me tão rara, entretanto, emergiu como exigência imediata. Quiçá pela nutrúrnia... consumindo-me o sangue...
Escolhi uma peça negra, com ornamentos em ouro envelhecido; tive, no entanto, de rasgá-la sutilmente no torso, de modo a permitir que a nutrúrnia permanecesse livre. Havia mais espinhos do que o comum em suas pétalas, entretanto, pareciam curvar-se diante de meu toque; impedindo que uma ferida se abrisse em meus dedos. Pouco antes de libertá-la da renda, ouvi algumas batidas em meus umbrais, as quais ressoaram no tangível silêncio. Um adequado e quente cálice de sangue humano? Um alguém desconhecido para um banquete ao deleite da besta obscura que me tornei? Tão só mais um enigma d’este lugar terrífico? Abri a porta, pesada e rangente.
— Liliana! — Surpreendi-me. Convidei-a para adentrar meu lúgubre recôndito e a abracei, com carinho; sua pele se translucidava, eu via todas as suas veias e artérias.
— Amada Áurea, demorei para encontrar-te n’este mausoléu! — Senti-me turva enquanto sua mélea voz se alastrava. — Quão escuro está aqui! Ah... uma.... flor? — Segurei em uma das mãos de Liliana.
— Venha... — Segui para fora d’alcova, precisava de sangue... embora não soubesse como consegui-lo. Meus olhos transmutavam o azul-gris em um escarlate mórbido conforme meus passos apressados percorriam os corredores. Levava comigo parte da luz que adentrava os vitrais e parte das que queimavam nas flamas das velas nos candelabros. Eu evitava olhar para Lil, eu sabia do grave risco que pendia entre nós. Entretanto, ela estava firme em minhas mãos, céleres, seguíamos. — Hohrriss esstt! — Murmurei, uma interjeição diabólica que amaldiçoava a condição que eu me encontrava; um murmúrio baixo como um rosnar intrínseco. O rubro morbígero se acentuava.
“À direita” ouvi, era minha própria voz... em minha mente. “Quarta porta” ela disse... eu disse... eu sabia que era a Corphidrae... ou eu mesma. Um tipo de sala-de-estar se apresentou aos meus olhos; um cravum cabinet próximo tão logo chamou minha atenção. Deixei a mão de Liliana e segui ao móvel, abrindo-o. Havia cálices e taças; nos rótulos, títulos inelegíveis; frascos e vidros com seiva carmim. Dentre tantos, um deles reluziu aos meus olhos, n’um era vivo e parecia possuir nuances em dourado. Sem pensar, apenas o verti sobre o cálice e bebi até o fim de todo o frasco. Era docílimo, poderoso, mel aos lábios, fascínio e prazer rapidamente s’ergueram no meu âmago. Minha visão entorpecida se alinhava à sanidade e, no rótulo, um único nome: Olga Nivïttz {RHNulo}.
— Áurea? — Ouvi. Olhei para Liliana que parecia assustada.
— Perdoe-me, Lil; eu estava precisando de... sangue... — Eu já havia contado a ela o mais importante sobre mim, um resumo, enquanto seguíamos para o Oráculo. Dentre as minhas verdades, o vampirismo ela soube sem delongas. Algo entre nós se estabelecia, um emocional identificatório; não sei se pela gratidão dela em receber uma previsão de morte; se pela verdade de meu olhar sobre seu semblante encantador; se por alguma outra razão além do tempo...
O escarlate ao derredor minguou-se, portanto, dando lugar ao cinéreo-azulescido que outrora ordenou meus sentidos à melancolia sepulcral do silêncio e do orvalho luminescente que pairava somo poeira. Meus batimentos cardíacos amansaram.
— Muito ocorreu desde que nos vimos sob os cinco olhos do Oráculo... — Sentei-me no sofá próximo, Liliana fez o mesmo.
— Vim trazer esperança aos teus olhos tristes, minha Áurea. Antes que tudo me reveles, deixe-me dizer quem conheci. — Ela parecia empolgada, seus olhos eram dois esplendores âmbar. Mantive-me atenta e Liliana segurou minhas mãos nas suas. — Uma sublime mulher veio ao meu encontro, estava a refletir sobre o ocorrido no Oráculo, bem como a cerca de Luíre... enfim... esta mulher, de nome Morgana, tem estudado sobre os sonhos e, porventura, ela possa levar-te à Somníria outra vez! — Respirei fundo diante da revelação. Soltei das mãos de Lil e levantei-me, caminhando à esmo pelo cômodo. Fui à fenestra semiaberta, observei o horizonte enevoado.
— Não sei se quero retornar à Somníria... — Confessei. Liliana levantou-se, um tanto incrédula.
— Como não? Lorrt é a chave de tudo, Áurea! Ele sabe de tua vida, do teu poder...
— Eu o traí, Lili... eu não... não saberia fitá-lo em seus olhos... eu não saberia ficar outra vez em frente ao amor que ele externa a mim com seu semblante gentil e austero. — Um silêncio espargiu, sôfrego... Liliana se aproximou.
— Como assim? — Indagou e eu a fitei no mais profundo de seus olhos âmbar. Senti a tristeza, íntima, nascendo como garoa na imensidão.
— Eu... encontrei Seth... no entardecer de ontem... quando um carmesim-opaco e escuro direcionava a luz do pôr-do-sol às folhas secas... e eu... — Era impossível desvelar com as palavras que cabiam dizer. — Senti... eu o senti... no inominável prazer... da carne e do cerne... uma intensidade lasciva que traz o tremor às minhas entranhas só de recuperar a lembrança... — Voltei-me à janela, deixando de olhar para Lili e ela, por sua vez, afagou meus cabelos e abraçou-me, delicada.
— Tu ainda amas o Dom Lorrt? — Questionou, serena.
— Não... — Respondi, precípite. — Quero dizer... eu acho que não... entretanto... sinto culpa.
— Estranhas que a culpa advenha sem haver, pois, amor?
— Estranho... — Voltei-me a Liliana e ela afagou meu rosto. — Talvez, em alguma instância profunda, o amor ainda exista e, quiçá, eu saiba... no plano intuicional, talvez... eu... eu sinto içar um caos hórrido em meus sentires, Liliana... outrora estive desperta, buscando tão somente minhas memórias... até este tempo... onde laços tornaram-se nós e nós se quebrantaram na estranheza e no desejo... — Suspirei, deitando-me no abraço de Liliana. — Quão injusto é dar uma traição àquele que tanto me respeita... lembro-me do sonho... o sonho recorrente que escapara de mim desde que me despertei este monstro que sou... no sonho... as crianças aos meus pés... e os pés de um homem... eu sei que era Lorrt, eu sinto... eu sonhava com ele... formando ao seu lado uma família. Agora, contudo, vês? Dormi com dois homens e nenhum deles era o homem que habitava meus sonhos mais próprios...
— Áurea, não te culpes. Teu oblívio adveio em razão do mau acaso. Nem Lorrt, nem ti, decerto que até mesmo nem Lëvri, detém a culpa pelo acaso em sua manifestação orgânica, ainda que um tanto perverso e obscuro seja tais vicissitudes. Mesmo assim, tu não podes permitir que estas contingências te façam ficar contra ti mesma. Guarda no peito o que te aflige, minha doce, mulheres sempre possuem segredos em seu coração e não devem revelá-los aos homens, pois, eles não entenderiam.
— E Seth? — Era agradável e apaziguador deitar-me daquela forma, n’um amável abraço aquecido.
— O Demônio? Bem... ele não me soa confiável, querida.
— Eu sei... — Soltei-me de Liliana, sem bruscos movimentos. Voltei-me à janela, as nuvens volutais e o azul-gris ainda despertavam minha melancolia. — Ele é, porém, tão intenso... ele me aquecera com a calidez de seu inferno. Eu não o amo... entretanto, como um súbito clarão na tempestade mórbida, eis a minha paixão manifesta; ora fere, ora cura, brincando com a minha mente.
— Mais razões eu vejo para que reencontres Lorrt, minha amada. Para que tenhas certezas sobre teus sentires. Se a paixão por Seth machuca e se desvela sempre na veemência atordoante, esteja atenta. Amor é paz e, portanto, pode ser perene. Paixão é volátil demais para perdurar... e pode ser até mesmo perigosa.
Ao seu lado, fiquei por um tempo em silêncio. E entre afagos nos cabelos e mãos, fui ajustando meus pensamentos conturbados. Era inegável que fugir de Lorrt resultaria em mais angústias e, de fato, havia tanto o que ele sabia sobre mim... talvez do lugar de onde vim, das coisas que eu apreciava. E saber dele resultaria em compreender o vampirismo Illitam, algo que me pertencia, portanto.
— É hora, querida. Vou te levar à Morgana. — Liliana me olhou com um sorriso único e eu concordei em seguir os seus planos. Eu não sabia o que esperar, entretanto, estava disposta. Enquanto percorríamos o destino incerto, foi compartilhado comigo algumas das angústias de Lil, acabei por não lhe revelar sobre os poderes demoníacos, permite-me apenas ouvi-la. — Chegamos. — Era um dos quartos do Castelo. Liliana adentrou, sem precisar bater à porta.
Dois olhos verdes lumiaram em nossa direção, vindos de um rosto feminino. Ela se levantou com elegância. O cômodo era menor, símil ao de Monm. Vestia uma peça sublime, negra como a noite de lua nova, com detalhes em alguma pedra escura, talvez ônix. Ela tinha os cabelos presos em um véu sútil que recaía até os seus ombros. Sua pele era de um marrom intenso, sim, marrom; castanho-escuro, pouco mais claro que seus cabelos.
— Prazer, sou Morgana Sttrattan. — Cumprimentei-a e me apresentei. — Sentem-se, por favor. — Assim o fizemos nas poltronas próximas à escrivaninha que Morgana estava ao chegarmos. Além destes móveis, um velutum cabinet e um leito de cedro escuro complementavam o aposento. Uma tapeçaria ornamental no mesmo tom cobria o assoalho. Do vitral à direita, para o oeste, uma vista para o precipício.
A partir daquele ponto, Morgana relatou sobre a sua vida e a razão pela qual buscava Somníria. “Em minhas pesquisas” ela disse “eu soube de uma lenda a respeito desse lugar e tinha o intuito de encontrá-lo forçando o sonho lúcido. Era a única maneira possível de saber se era real ou apenas uma fábula”. Eu a ouvia com uma admiração irrefutável, até que vi seu corpo sutilmente desvanecer, como se fantasmagórico. “O que viste, Áurea, é a instabilidade da minha atual condição. Eu estou dormindo. Forçada por um aparelho de nome soníer, capaz de captar e traduzir ondas oníricas. Coloquei-me vinculada ao aparelho, com algumas modificações e, crendo alcançar Somníria, encontrei este Castelo umbrífero”. Eu ouvi e fiquei incrédula.
— Como é possível? — Indaguei.
— Não sei como, entretanto, na noite anterior, decidi replicar soníer n’este plano, acreditando ser possível haver níveis de sono REM. Para minha surpresa, eu o encontrei em um dos cômodos enquanto perscrutava o local. Não posso vos afirmar tratar-se de um item pertencente a outrem ou se foi construído através da minha intenção...
— Sugere que estamos adormecidas? Pertencemos a um sonho teu? — Interrompi-a.
— Creio ser improvável. A imersão de vossas histórias pessoais, conduzem-me à percepção de que, ao induzir meu sono com o aparelho modificado, usando-me como a cobaia do experimento, fui levada a outra realidade. Estou adormecida, entretanto, projetada, de forma astral, aqui. Talvez, com soníer acionado, em nós três, possamos induzir um sonho lúcido para o local, pois, já estou no sono REM, em hipótese, e tu, Áurea, já estivesse em Somníria. — Ficamos em silêncio. Eu pensava sobre aquela insanidade narrada com tamanho fundamento. — Eu não tenho muito tempo, devo dizer. — Morgana continuou. — Meu corpo tem desvanecido cada vez mais, pois o tempo está passando lá onde estou sobre o meu leito, ligada ao soníer. Uma profunda instabilidade, além disso, rege minha condição astral n’este plano. Eu despertarei, a qualquer momento.
— Eu... pouco compreendi, entretanto, devemos tentar, certo, Áurea? — Perguntou Liliana. Eu a fitei, hesitante.
— Sim. — Eu não poderia discordar.
Assim, iniciamos o processo. Morgana compreendia muito sobre o que estava fazendo, sobre soníer e seu universo onírico. Enquanto nos preparava, contou-nos sobre Morgion Sttrattan, seu pai, que sofrera com sonhos lúcidos bizarros desde sua infância e, quando adulto, passou a estudar os fenômenos vinculados ao âmbito sonial. Morgana nasceu cingida por um ambiente de estudos acentuados e seu pai fora uma figura de extremo exemplo e imoderada admiração, por isso, ela seguiu seus passos, embora fizesse tudo o que Dom Morgion considerava perigoso e arriscado. O contexto de sua vivência pessoal, trouxe-me uma saudade que sequer imaginei pertencer ao cerne que possuo; eu decerto tenho ou tive uma família e, talvez, um pai para admirar. Senti que a determinação de Morgana me atravessava como um indício de que era preciso continuar tentando encontrar-me em mim mesma.
Sorvemos de um líquido hialino com nuances escuras, era doce e enjoativo. Tratava-se de um indutor de sono profundo. Adesivos com um tipo de metal frígido, um metal de nome unorom, foi adicionado em nossas têmporas e conectados, por cabos, à máquina soníer. Morgana fizera questão de explicar as minúcias. Fui instruída a focar meus pensamentos e lembranças no instante em que estive em Somníria, portanto recordei de cada detalhe. Confesso que Lorrt era a principal imagem à minha mente... seus olhos amáveis, suas palavras afáveis... sua tristeza. Queria amá-lo, queria tanto amá-lo... e o sono vinha sólido a mim, meus olhos se fecharam, permitindo a lágrima velada verter, morrendo sobre o travesseiro qual repousava minha cabeça.
Aos poucos, a imagem de Lorrt se estabelecida com mais nitidez; a escuridão granulada das pálpebras cerradas se expandia em palidez, pouco a pouco, onde nuvens impassíveis conduziam uma brisa que aclarava um céu alvililás em todo o entorno. Senti o toque dele, em meu rosto, n’uma carícia tenra e amorosa. “Encontre-me em teus pesadelos... zelarei por eles...” — ouvi, num murmúrio pertencente a ele, sua viril voz se expandia... eu estava recordando e, ao mesmo tempo, buscando pelos umbrais que precisava atravessar para alcançar o reino dos sonhos. “Eu vou cuidar de ti, Áurea...” — Ouvi, dessa vez com mais limpidez sonora. A visão estava mais refúlgida, entretanto, toda a paisagem enegrecia em súbitos átimos, a partir do ponto em que eu estava mais adentro daquele onírico plano.
Nos instantes que esta escuridão, n’um índigo opaco, se distendia entre as nuvens, nos átimos de segundos, um piscar de olhos, meu coração doía e eu sentia medo outra vez. Quando o tato se tornou o sentido mais claro, entendi que estava em Somníria. Senti meus pés caminharem sobre as nuvens e a brisa arrepiar a minha tez. A visão, outrora embaçada e rarefeita, tornou-se explícita em seus detalhes mais infinitesimais... assim vi imensos cristais negros e belíssimas ametistas, pairando na imensidão como ínsulas. Senti-me profundamente vinculada ao lugar e, portanto, sussurrei o nome de Lorrt, fechando os olhos. Assim que os abri novamente, estava em frente ao homem que amei.
Seus olhos estavam n’um tom violeta escurecido, não tão vívido como da primeira vez. Seu semblante estava um pouco mais melancólico, embora um lumiar tímido lhe tenha envolvido quando eu proferi seu nome. Era lindo... um anjo de asas negras, com austeridade em sua fronte. “Eu precisava...” — murmurei. Queria explicar-lhe que minha intenção não era desestabilizar Somníria, entretanto, era inestimável encontrá-lo outra vez. A sensação de fraqueza foi apaziguando e, após um silêncio acolhedor, eu senti que, finalmente, eu estava consciente em Somníria. Olhei para os arredores, buscando Lil e Morgana, mas apenas eu e Lorrt estávamos na paisagem alvililás.
— Eu... precisava te ver outra vez... — Proferi, tímida e hesitante. — Espero não estar... perturbando demais...
— Tu não és uma perturbação para mim... — A voz de Lorrt não era feita de som: era feita de reminiscências. Parecia emergir de mim poeiras de lembranças jamais acessadas. Era grave, sim, mas de uma gravidade que não pesava; antes, ascendia, tal qual a sombra de uma constelação inalcançável e colossal que, ao invés de lançar temor, imerge o âmago n’um anseio irreprimível, por admiração e fascínio. Um tecido de som entrançado de saudade e soberania, tão profundo que nem os mortos teriam coragem de esquecê-lo.
— Sinto que estou errando em todas as minhas escolhas... e não recordei mais de minha vida antes do despertar... estou abraçada às sombras hostis... — Confessei, lacrimosa. Lorrt ia tocar minha face, entretanto, não o fez. Pareceu-me consternado e olhou para o lado, talvez desejasse um alívio da visão que tinha de mim. Senti receio. — Ainda... reside amor por mim... no teu peito? — Seus olhos se voltaram aos meus, pareciam menos violeta. Fitaram meus lábios. Lorrt se aproximou.
— Intenso como fogo... fluído como o oceano... profundo como um abismo... sempre. Sempre aqui. — Sussurrou, próximo. Meu coração se comprimiu, embora eu sentisse uma quietude plácida em meu ser.
— Aquela que fui ou a que sou? — Indaguei, abaixando a cabeça. Fitando suas grandes mãos, firmes como as de um cavaleiro da morte, capaz de carregar a foice do destino e, ao mesmo tempo, segurar um crisântemo sem despedaçá-lo.
— Aquela que serás... carregando a que foste e a que és, com o fascínio do que há de ser... — Respondeu, inabalável. Eu estremeci pela beleza de suas palavras.
— Apesar do quanto eu possa errar? Dos pecados que eu possa cometer? Das dores que eu possa te causar? — Eu não entendia minhas perguntas, elas vinham de mim sem nenhum vínculo racional... tudo o que pensei em saber, sobre minha história e sobre os Illitan, parecia nunca ter sido pensado, parecia irrelevante. Lorrt respirou fundo, fechando seus olhos por alguns segundos e abrindo-os em seguida. Parecia pensar em algo muito além da minha indagação.
— Teu amor por mim foi sempre vestal. Qualquer pecado, erro ou dor que dele advenha, é por descuido recíproco, pois não há falha de caráter em ti. — Disse, um pouco frio, um pouco mais distante, mas ainda atento.
— Estou desestabilizando Somníria? — Perguntei, pois, sua sutil frialdade me sugeriu que uma preocupação o estivesse envolvendo.
— Não só Somníria... — Revelou, e ficamos em silêncio por um tempo. Senti uma tristura implacável... eu certamente o estava machucando, com minha presença e minhas perguntas.
— Então me acorde... eu compreendo... eu sei que não posso ficar aqui... — Murmurei, mesmo querendo falar mais, ouvi-lo mais.
— Eu... não posso... — Murmurou Lorrt. Eu o olhei, surpresa.
— Por que não? — Intriguei-me. Ele se aproximou um pouco mais.
— Porque, Áurea, teu perfume me agrada... — A voz de Lorrt tornou-se mais intensa. — Porque prefiro manter meus olhos em teu belo semblante... — Senti meu rosto aquecer, o olhar de Lorrt era de profunda paixão; envergonhava-me um pouco.
— Sempre me chamaste de Áurea? — Sem saber a razão, continuava lhe indagando o que não fazia sentido... talvez eu acreditasse que, me aproximando do que vivi ao lado dele, as lembranças aflorassem. Para o meu deleite, Lorrt sorriu... O sorriso de Lorrt era uma fratura no rigor de sua existência: uma fissura pela qual, brevemente, se vislumbrava o homem que ele poderia ter sido se o mundo lhe houvesse sido mais justo. Eu não compreendia, mas sentia, intuía... seu sorriso contornava sua face austera com uma suavidade viril, revelava-me em silêncio a sua essência que me fora outrora tão familiar...
— Não... Preferia chamar-te de Meu Raro Rubi. — Desvelou. Eu sorri e meu sorriso o fez sorrir um pouco mais.
— Raro Rubi? Por quê? — Indaguei, com uma felicidade inenarrável em meu coração vazio. Era quente poder ver a mesma alegria no olhar de Lorrt, e saber que ele não se abrigava tão somente em insondáveis mágoas.
— Porque nos conh...
Eu... daria tudo para ouvir a história por detrás de tal alcunha tão gentil... eu senti que daria minha vida, naquele átimo, quando minha pele começou a queimar tal qual papel em brasa e meu corpo era absorvido por um fogo crepitante.
Fogo... intenso. Meu corpo estava queimando.
Eu faria tudo tão só para ouvir Lorrt... e vê-lo sorrir... mesmo que não, o amasse mais... mesmo não me recordando do amor; havia algo... sabe? Apesar dos pesares, havia algo que me envolvia em alento, algo que vinha dele... da presença e da voz de Lorrt. Contudo, eu fui queimada viva naquele momento — assim eu sentia — meu corpo em brasas fulgurantes, meu rosto desaparecendo no estalar de nímias flamas, uma combustão. Olhei em desespero para Lorrt. Não doía, entretanto, assustava de modo terrível. E queimava... eu sentia o fogo no meu cerne.
— Não... não... ajuda-me Lorrt... eu não quero ir... deixe-me ficar aqui... deixe-me te ouvir... — Segurei no casaco negro que Lorrt vestia, pois no impacto da súbita combustão, abaixei-me de horror apavorante. Lorrt segurou minhas mãos, sua feição era de profundo tormento.
— Áurea!!! — Ele clamou por mim... Abraçou meu corpo e sentiu o fogo queimar sua tez. Gemeu de dor repentina e, por instinto, se afastou...
— Não... não... por favor... Lorrt... — Foram minhas últimas palavras...

Áurea Lihran escrevera suas terríficas e fascinantes vivências após despertar em um antigo castelo, o Castelo Drácula. Sem memória alguma de seu passado, ela buscou encontrar respostas e sentidos que guiassem a sua existência, mas, para isso, teve de fazer escolhas sombrias e ainda lidar com a sua estranha sede por sangue e o seu desconhecido poder. Este seu manuscrito foi deixado por ela, como volume único, na biblioteca do Castelo Drácula e, agora, por razões obscuras, ele está em suas mãos. » Leia todos os capítulos.

Sahra Melihssa
Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
Símil a um olho, o obscuro pingente reluzia. A lótus negra decerto significava meu ainda existente vínculo com…