25. Cada um, porém, é tentado pelo seu próprio desejo, sendo por este arrastado e seduzido
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Diário de Rute Fasano
Data incerta - Achei que havíamos conseguido escapar por um momento da lembrança do castelo. Que naquele vilarejo, mesmo que estranho, conseguimos respirar um pouco. Pelo menos por uma noite, só uma, poderíamos nos sentar e assistir algo que não tivesse relação com o castelo. Quase acreditei que teríamos tempo. A peça era sobre nós, era sobre o castelo, cada palavra, cada movimento, cada pensamento como se tivesse sido arrancado dos nossos ossos e costurados com precisão ali naquele maldito palco, com aquele final que parecia fora do roteiro, um tanto improvisado talvez. Quando a peça acabou eu não senti alívio, mas um calafrio subir minhas costas como aqueles que eu sentia no castelo e já faziam parte da minha rotina lá. Quando cobri Mara com o manto para sairmos do teatro, senti olhos nos observarem mais intensamente do que qualquer outros ali.
Roupas escuras e presença quase fantasmagórica, mas havia algo mais, olhos treinados e corpos que sabiam matar e fazer isso com perfeição. Elas não estavam ali para aplaudir, estavam ali por ela, por Mara, que agora estava inteira. E antes que eu ou Mara pudéssemos reagir, fomos cercadas, um golpe seco, um cheiro de ferro e tudo escureceu. Acordei em uma cela de concreto úmido, tubulações vibrantes e luzes mortiças, Mara estava ao meu lado, sentada.
— Elas são da ordem — ela disse quando me viu acordar — Eu fiz parte disso, antes do castelo.
Depois de horas de espera fomos arrastadas até uma sala cheia de símbolos estranhos e um cheiro forte de ozônio. A ordem me olhava com desprezo, quantas mulheres haviam ali? Quinze, vinte? Eu não saberia dizer. Eu ouvi o plano delas, eliminar o elemento estranho, ela é descartável, um peso morto, um risco, então uma delas puxou uma faca e veio até mim, senti a morte chegando, a presença daquela mulher que vinha em minha direção era como a presença mortal, mas Mara se colocou entre nós, com uma fúria igual a de uma fera encurralada ela lutou com as mãos nuas com a motivação de quem já matou mil vezes e poderia matar muitos mais. E a beleza de Mara furiosa era aterradora, essa é a palavra que melhor descreve a sua aparência, com aquela pele de um tom quente, um âmbar escuro, sobrancelhas e olhos escuros muito intensos e ferinos, nariz levemente aquilino e lábios cheios, marcados e cerrados, olhá-la tão de perto, tão real, despertava em mim aquela sensação de quando se vê de frente a um grande felino selvagem, belo e mortal, e não se sabe se o acaricia como um pequeno gato ou se corre sabendo que não irá tão longe. Ela quebrou ossos, rasgou carne e assim que conseguiram contê-la, ela gritou:
— Se matarem ela, morremos as duas.
O silêncio foi total, todas elas olharam para Mara.
— Estamos ligadas — ela disse arfando — por uma magia do castelo, por algo que eu não entendo, mas que é real, se uma de nós morrer a outra morre também.
E contra minha vontade e a vontade da ordem eu entrei num plano que colocaria mais dificuldade em minha vida. A base da ordem, pelo que soube depois, era em um templo abandonado protegido por símbolos e amuletos que escondem a presença delas de outros membros da ordem. O mesmo amuleto foi dado a nós, um fragmento de obsidiana envolto com prata com uma runa estranha. E agora faço parte disso, uma ex-cientista cética amarrada ao destino de uma assassina de uma seita estranha. E o pior de tudo era que parte de mim agora quer saber até onde essa loucura vai. Uma reunião foi convocada, a qual Mara fez questão que eu estivesse presente, pois agora eu fazia parte disso, ela mantinha um olhar firme. A líder da ordem, que se apresentou como irmã Iridia, uma mulher de feições duras e olhos sem emoções, nos conduziu até um salão, com paredes de pedra, cadeiras e mesas grandes de madeira, castiçais com velas na cor magenta e algumas flores vermelhas aqui e ali. As outras mulheres estavam bem posicionadas ao redor dela em silêncio. Todas elas com capuzes baixos paradas como soldados esperando uma ordem, mas que não ocultavam totalmente seus rostos. Eram mulheres de idades e corpos diferentes.
Iridia falou com uma voz clara e calma.
— O castelo está morrendo e quando ele morre, não apenas ele perece, mas morre também aquilo que o sustenta e ele sustenta, todas as histórias que contêm dor e revelação, os livros que contêm vida, e os espíritos que ainda não foram lembrados pelo nome certo. Se ele morrer, o tempo aqui se contorce e leva tudo com ele. Devemos impedir que a antiga ordem faça isso acontecer.
Ela caminhou em círculo, os pés nus tocando as pedras frias daquele templo com uma familiaridade.
— Nossa função, como sempre, é garantir que o ciclo não se complete. Que os que chegam aprendam, que os que resistem escrevam e vocês — ela olhou para nós — estão presas a isso.
— Presas? — Mara sussurrou, como se a palavra tivesse um gosto ruim na boca.
— O castelo não permite que saiam, ainda não — Iridia respondeu — …vocês devem nos ajudar a fazer o castelo sobreviver.
— Mas como? — perguntei sentindo a pergunta me doer a garganta.
— Com tudo o que vocês têm, culpa, ódio, amor, luto, medo, desejo, e também com a matéria sombria presente no castelo.
Mara cruzou os braços, estava inquieta e percebi que ela observava cada membro da ordem com um olhar avaliador. Até que seus olhos pararam em uma delas, uma mulher de postura altiva, ombros largos e maxilar marcado.
— Eu lembro que o propósito da ordem nunca foi interromper o ciclo, e também achei que somente mulheres faziam parte da ordem — ela disse isso sem malícia, mas com a franqueza quase ríspida que era típica dela. — não sabia que tinham começado a aceitar homens agora.
Houve por um momento um silêncio constrangedor, a mulher ergueu o queixo e respondeu sem alterar o seu tom de voz.
— Eu sou uma mulher e a ordem nunca aceita homens.
O olhar de Mara hesitou por um breve momento, talvez de surpresa ou talvez vergonha, não sei ao certo, mas a mulher não esperou que ela se desculpasse ou se consertasse e continuou:
— O que a ordem aceita são mulheres que estão dispostas a sangrar de verdade. Não o gênero imposto, o nome que nós próprias enterramos não importa, mas o nome que escolhemos usar para renascer para a ordem.
Mara murmurou algo que não entendi e seu rosto se contorceu de raiva. Então, depois dessa interrupção Irina retomou:
— A ordem se ramificou e uma parte dela entende que certos ciclos não devem ser encerrados, então se desejam sobreviver, vocês terão de lutar e escrever, mas não basta contar o que viram, vocês precisam contar o que sentem, o que temem. A história só vive se for honesta e o castelo só respira se for alimentado com o que vocês não querem lembrar.
Depois de toda a conversa Iridia disse às outras que estavam liberadas e pediu que eu e Mara esperássemos no salão para poder jantar e depois nos levaria a nossos aposentos para que pudéssemos descansar. Nos sentamos em uma grande mesa com diversas comidas e bebidas, as freiras, pois era o que elas pareciam para mim, caminhavam pelo salão como sombras, descalças, sem fazer barulhos com seus movimentos leves. Diferente de horas antes que estavam vestidas todas de cores escuras, agora vestiam vestidos leves que roçavam nas coxas, deixando escapar vislumbres de pele sob as luzes trêmulas das velas na cor magenta que iluminavam aquele salão. Não havia aquela disciplina que observei antes, aqui agora elas riam entre si, bebiam vinho em longos goles e algumas trocavam beijos demorados, mas discretos, diante de todas, mãos que deslizavam por tecidos frouxos, como se aquele comportamento fosse parte da ordem. Aquele magenta profundo das velas, era uma cor que me lembrava carne, feridas, dor, prazer. Eu observava aquilo no começo incomodada, mas aos poucos me aceitando como parte daquilo. Mara crispava os lábios, seu semblante sério e sua rigidez era um contraste estranho com aquele ambiente e entendi que ela pertencia a um tempo que a ordem não era assim.
— Isso não é devoção — ela murmurou baixo para que só eu a ouvisse. — isso é fraqueza. A ordem é feita de silêncio, lâminas, dor e jejum. E agora o que vejo diante de mim? Uma geração que reza através de beijos e carícias e matam com o que? Perfume de flores venenosas? O propósito da ordem é manter o ciclo e destruir aqueles que o interrompem…
Ela reclamou por bastante tempo e falou mais do que eu já a tinha ouvido falar e com suas queixas eu descobri que a ordem era como uma seita que mantinha o ciclo natural da vida intacto e que destruía tudo e todos que quisessem ultrapassar o ciclo natural, isso incluía Drácula, mas a ordem que víamos agora e que, não por escolha, fazíamos agora parte, queria manter o castelo vivo. Seu olhar endurecido e sua irritação por aquela nova ordem me incomodou mais que a cena diante de nós e me senti um pouco culpada, pois em segredo eu invejava aquelas mulheres, a forma como riam sem medo, como se permitiam tocar e serem tocadas, como se o mundo fosse apenas aquela noite e o único mandamento que seguiam fosse o de se deixar sentir. E eu senti, contra a minha vontade, uma chama lenta se acender dentro de mim. O cheiro do vinho e das peles suadas misturavam-se ao cheiro de ozônio daquele lugar. O som dos sussurros, dos risos contidos e dos lábios encontrando beijos, me faziam recordar Hadassa, minha amante perdida, aquela cuja ausência ainda me doía o peito.
Naquele instante percebi que a sensualidade não vinha apenas dos corpos das freiras, estava em tudo na cor das velas, no templo, nas flores, na comida, no vinho, no ar saturado com cheiro de ozônio, luxúria e morte que me faziam sentir um sabor forte na boca, um sabor que depois de leves movimentos da língua se desfaz e traz com ele pequenas mortes. A sensualidade estava também em mim e ao meu lado, Mara não percebia que o seu desprezo por tudo aquilo não faria mudar nada naquele lugar. E talvez essa fosse a intenção do local, a intenção dessa ordem, nos fazer sentir até doer. Acabamos de comer e fomos levadas por Iridia a um pequeno quarto com colchões improvisados, Iridia nos deixou nos lembrando que no outro dia tínhamos mais a conversar. Me deitei naquele colchão improvisado e tentei encontrar algum descanso, mas o sono fugia de mim. Mara estava deitada em outro colchão ao meu lado ainda desperta e percebi como estava impaciente pela forma que batia os dedos na faca que tinha sobre si, faca essa que não sei onde ela tinha conseguido, ela estava impaciente como se estivesse à espera de um inimigo invisível que precisasse atacar.
Ela se ajeitou no colchão, com os olhos ainda fixos no teto, seu silêncio pesava como de costume, cortante e incômodo como a lâmina que agora carregava consigo. E imagino que cada riso, cada beijo das freiras era um insulto, uma afronta à disciplina que ela tinha. Porém dentro de mim, algo se movimentava, eu via um pecado bem-vindo onde ela via fraqueza e esse contraste me devorava por dentro. E comecei a pensar nas velas que queimavam lentamente, nas freiras que se acariciavam sem pressa, que bebiam sem pudor, que faziam Mara desviar o olhar furiosa, mas eu não conseguia desviar o olhar, meus olhos me traíam e quanto mais eu tentava afastá-los mais eles se voltavam. E o desejo e culpa se confundiam em mim, tanto que fizeram meu peito começar a doer só de imaginar. Virei meu rosto discretamente para Mara, seu perfil duro e impiedoso, mas também belo, mais belo ainda agora em carne e ossos, parecia tão alheia ao que talvez eu estivesse sentindo e pensando, ou talvez soubesse e por isso se mantinha em silêncio. Eu sentia que eu estava cedendo ao abismo, enquanto Mara construía uma muralha entre nós e nada continuava sendo dito, e eu queria dizer algo ou que algo fosse dito, e percebi que o desejo faz doer mais quando não se encontra as palavras certas.
Adormeci sem perceber, como se estivesse sendo engolida pelo abismo que eu já queria ceder, quando abri os olhos já não estava mais no quarto, meu corpo nu aquecido por uma água de cor fúcsia-brilhante, paredes que pareciam como carne viva e acima de mim um teto escuro com flores carmim que pingavam sangue naquela grande piscina com água quente. As freiras estavam lá, mas seus rostos eram véus escuros sem feições, e mesmo assim me olhavam, suas mãos estavam estendidas em minha direção delicadas e suaves e quando tocavam minha pele eram frias como ferro, beijavam-se ao meu redor com seus rostos sem feições, riam baixo e cada riso era como uma lâmina penetrando meus ouvidos. Mara emergiu do centro da piscina, vestida de branco, tecido molhado colado ao corpo, o vestido salpicado com o sangue que pingava do teto, ela não falava, não sorria, apenas me olhava e eu não sabia dizer se aquilo era uma censura ou um convite. Eu tentei ir até ela, mas meus braços e pernas estavam presos por raízes cheias de espinhos que se cravaram em minha carne causando feridas que sangravam demais. As freiras acariciavam minhas feridas com gestos delicados e cada toque trazia dor e êxtase ao mesmo tempo.
Quando finalmente consegui me soltar das raízes e das freiras, cheguei perto de Mara e quando toquei sua pele quente, ela dissolveu em pó e dela surgiu um esqueleto perfeito, como o que eu vi quando Drácula a reconstruiu no palco. O esqueleto sorriu um sorriso insano e se cobriu de sangue, que fez a piscina transbordar e sua água fúcsia ficar em um vermelho vivo. Do fundo ouvi palmas, lentas e pesadas e quando olhei em direção a elas vi Drácula sentado na plateia do meu sonho, sorrindo, como se fosse um crítico que estivesse observando e analisando cada detalhe da peça. Foi nesse instante que acordei com o coração disparado e o corpo suado. Mara dormia no colchão ao meu lado de costas para mim e dentro de mim eu desejava que aquilo fosse apenas um sonho e não um presságio.
Castelo Vampírico
Entre as paredes sinistras do Castelo Drácula, Rute Fasano registra em seu diário as angústias de uma alma consumida pela perda e pela culpa. Assombrada por memórias que recusam o descanso eterno, ela mergulha em abismos existenciais enquanto busca sentido numa fé já desfeita. Para Rute, a única certeza parece repousar na própria morte ou, talvez, numa reversão obscura dela. Seu relato é um testemunho de saudade e consequências, onde a linha entre a vida e o fim torna-se tênue como um último suspiro. » Leia todos os capítulos.
Valesca Afrodite
Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), formada em Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica chamado "Morcegos na Praça". Escrevia com frequência, mas afastou-se da prática ao... » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa
                        
            
  
  
    
    
    
  
  
    
    
    
Diário de Sibila von Lichenstein. (Sem data - que dia é hoje?) A partida de Arale deixou um vazio em meu interior. Era curioso — talvez até contraditório…