Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Data: 5 de outubro de 1374

A voz sempre esteve lá, não como um grito, nem como uma ordem, mas como um sussurro paciente no fundo da minha cabeça, sugerindo e esperando sua vontade ser feita. Quando eu era mais jovem, acreditava que todos ouviam algo assim, que todos sentiam um vazio que precisavam preencher de qualquer forma, mas percebi que o que para os outros não passava de um pensamento momentâneo, para mim era uma vontade constante que precisava ser saciada. Irmã Teodora percebeu, ela sempre percebe tudo com aqueles seus olhos argutos; desde que entrei para a Ordem, ela me observa, medindo cada ação minha. Minha última missão, um tanto chamativa, só confirmou o que ela já desconfiava, e quando chegou à conclusão, não demonstrou medo ou repulsa, apenas veio até mim e me falou das regras.

“As leis da Ordem são a lógica em sua forma mais pura”, ela disse calma. “Elas existem para orientar aqueles que precisam de orientação”. Então ela criou um código, diretrizes adaptadas dentro das leis da Ordem, limites que eu deveria respeitar para uma boa convivência dentro da abadia e fora dela. Não era por moralidade que ela fazia isso, mas por necessidade de me fazer escolher entre um impulso sem propósito e um propósito que serviria a algo muito maior. Se eu fizer a vontade da voz, seguindo as regras obviamente, a voz se acalma, não desaparece, ela sempre está lá, mas fica satisfeita. Sei que irmã Teodora confia em mim para segui-las, sei também que se eu quebrá-las, ela será a primeira a me punir e com razão. Ainda tenho dúvidas se é pelo propósito que continuo aqui ou se pela facilidade de matar sem ser punida; talvez seja por isso que ela continua a me observar.

Data: 15 de outubro de 1374

Hoje fui acompanhar os moribundos, tarefa da Ordem que acho tediosa. Irmã Teodora me levou até um quarto onde jazia a irmã Anatólia; seu corpo estava definhando e sua mente se agarrava à vida, ela não queria partir. “Não podemos impedir a morte, mas podemos torná-la suportável”, disse irmã Teodora. Sentei ao lado da irmã Anatólia e segurei sua mão; sua pele era fina ao toque e seu pulso estava fraco. “Ouça-a”, irmã Teodora ordenou e saiu do quarto, nos deixando a sós. Passei horas ali; ela me contou sobre missões antigas, arrependimentos, desejos que não se realizaram e então, finalmente, ela fechou os olhos e aceitou a morte. Saí do quarto e a irmã Teodora estava à minha espera. “A morte para alguns deve vir como uma amiga e não como uma vingadora e nós somos quem a apresenta”, ela disse. Ainda não entendi muito bem que lição ela está querendo que eu aprenda, mas já entendi que é uma punição.

Data: 29 de outubro de 1374

Nem toda morte é sagrada como a da irmã Anatólia; algumas são roubadas ou profanadas. Aprendi que há criaturas que desonram esse ciclo: os necromantes, ladrões de almas, parasitas do além e tantas outras criaturas que não aceitam o fim e tentam se agarrar à vida de maneiras profanas, e a tarefa da Ordem é destruí-los. Hoje enfrentei um profanado; havia nele um parasita do além que se recusava a sair, usava dele para se alimentar dos vivos. Eu aprendi a matar sem causar sofrimento, mas também aprendi a prolongar o sofrimento se fosse necessário. Então o torturei até que ele saísse do profanado e eu pudesse destruí-lo. Ele se foi, mas o que restou estava um trapo e não merecia piedade; o matei sem hesitar, algo nele implorava por descanso. Ou algo em mim implorava para que ele fosse morto.

Data: 3 de novembro de 1374

Hoje fomos levadas a uma casa onde havia um homem que estava agonizando há dias devido a uma maldição. Sua família havia nos implorado que fizéssemos algo. Irmã Teodora se ajoelhou ao lado dele e perguntou baixo: “Você quer ajuda para atravessar?” O homem, com os lábios secos e os olhos assustados, confirmou com a cabeça. Seu peito subia e descia em pequenos espasmos. Ele tinha medo, e isso ainda o segurava à vida. Irmã Teodora olhou para mim para que eu tomasse seu lugar, então me ajoelhei ao lado dele e repeti as palavras que aprendi: “A morte não é sua inimiga, ela vem para levá-lo ao descanso.” Irmã Teodora olhou para mim. “Faça o que é necessário.” Então dei a ela a bebida que o livrou da dor da maldição e também do fardo da vida e com isso o medo se foi.

Data: 11 de novembro de 1374

Fui enviada para capturar um homem que vendia sangue de vampiro para feiticeiros. Um traidor do ciclo natural. Ele fugiu para as florestas, mas a Ordem é paciente e eu sou paciente. Passamos três noites esperando, observando cada movimento. E quando ele sentiu que estava seguro, cheguei silenciosa enquanto dormia. “Eu sei quem você é”, ele sussurrou, acordando antes que eu o tocasse. “Vocês não são salvadoras, são carrascos.” A lâmina atravessou sua clavícula antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Eu deveria levá-lo vivo, mas naquela noite a voz precisava ser saciada. Seu corpo não merecia ritos; deixei o fogo levar o que restava dele enquanto eu observava. A Ordem nos ensina que os indignos não devem deixar rastros e eu o considerava indigno.

Data: 13 de novembro de 1374

Os vivos e os mortos correm de nós, isso é um fato. Fui enviada para outra missão: convencer um espírito que ele deveria ir. Uma criança morta há algumas semanas em um incêndio, que ainda brincava em um quarto que não existia mais. Irmã Teodora pediu para que eu lidasse com isso, mesmo que ela não dissesse nada, eu entendia aquela missão como uma punição. Me sentei ao lado da criança naquela casa invisível e por horas brinquei com ela até que perdesse o medo de mim. “Você não precisa ficar aqui”, sussurrei para ela. Ela me olhou com aqueles olhos negros e vazios. “Eu não posso ir, tenho que esperar mamãe”, disse ela. “Sua mãe está te esperando no lugar para onde você deve ir”, eu disse. Ela chorou: “Mamãe está morta?” perguntou. Confirmei com a cabeça sem ter certeza se isso era uma verdade. Então ela sumiu. A Ordem nos ensina que devemos libertar as almas, mas nunca nos dizem ao certo para onde elas vão.

Data: 19 de novembro de 1374

A Ordem julga em silêncio, mata em silêncio, mas às vezes também mata diante de todos. Hoje uma mulher que usava cadáveres para rituais proibidos foi trazida diante de nós e depois foi levada a uma praça pública a quilômetros da abadia, para que fosse um exemplo. Estava amarrada, sangrando e sem arrependimentos nos olhos. A praça estava cheia e muitos olhos curiosos observavam. “Ela perturbou o ciclo, ela roubou os mortos de seu descanso”, disse irmã Teodora. “Seu castigo será dado por aquela que está pronta para servir a Ordem.” Então ela olhou para Isolda e os olhares das outras irmãs foram em sua direção. A morte dessa mulher seria a aceitação final de Isolda, uma aceitação que talvez eu nunca chegasse a conseguir. Isolda parou diante da mulher e ela sorriu de modo desafiador. “Eu só roubei corpos, vocês roubam almas”, ela gritou. A lâmina de Isolda atravessou sua garganta, o sangue escorreu e a multidão ficou em silêncio. Isolda foi aceita, mas em que exatamente ela se tornou?

Castelo Vampírico
Entre as paredes sinistras do Castelo Drácula, Rute Fasano registra em seu diário as angústias de uma alma consumida pela perda e pela culpa. Assombrada por memórias que recusam o descanso eterno, ela mergulha em abismos existenciais enquanto busca sentido numa fé já desfeita. Para Rute, a única certeza parece repousar na própria morte ou, talvez, numa reversão obscura dela. Seu relato é um testemunho de saudade e consequências, onde a linha entre a vida e o fim torna-se tênue como um último suspiro. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Valesca Afrodite

Valesca nasceu no Rio de Janeiro (RJ), formada em Ciências Biológicas, encontra-se no último período. Tem paixão por ciências, subcultura gótica, livros, seres sobrenaturais, ficção científica, cemitérios, igrejas e morcegos, ela também é voluntária em um projeto de divulgação científica chamado "Morcegos na Praça". Escrevia com frequência, mas afastou-se da prática ao... » leia mais
19ª Edição: Revista Castelo Drácula®
Esta obra foi publicada e registrada na 19ª Edição da Revista Castelo Drácula®, datada de outubro de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula®. Todos os direitos reservados ©. » Visite a Edição completa

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