7 - Um rastro de luz vívida atravessa a morte
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Após revirar o laboratório de Viktor, ainda restava toda a casa a ser vasculhada. Minha mente era um mar revolto; preocupado com ela, eu tentava relacionar as pistas que encontrara no laboratório. Aqueles frascos com nomes de mulheres vazios, o aroma forte de éter, o caderninho repulsivo de Viktor… Havia algo ali que eu ainda não conseguira decifrar. Era como colar os cacos de um vaso que, mesmo restaurado, jamais voltaria a ser inteiro.
Decidi subir as escadas para continuar a procurar por pistas que me levassem até ela. Mesmo que o vaso nunca mais pudesse ser o mesmo, eu precisava reconstruí-lo. Eu nunca encontraria a paz caso não o fizesse. Talvez, antes de morrer, Viktor a tivesse matado e escondido o corpo. Há coisas desagradáveis pelas quais temos que passar, que nos forjam; então, se eu tivesse que descobrir que ela estava morta, assim seria. Mas, antes disso, eu tinha de ver o corpo e tocá-lo. Sim, eu não poderia morrer sem saber que toquei sua pele, ainda que gélida, ao menos uma vez. Então optei por investigar no quarto dele, que não fora mais aberto desde a noite em que removeram o cadáver do casarão.
Girei a maçaneta lentamente, com hesitação. A figura de Viktor gritando comigo com os olhos arregalados de pavor e asco, ordenando que eu fosse embora com palavras afiadas como um facão amolado, na noite em que me criou, ainda oprimia meu coração. Apesar de, após o meu nascimento, eu sequer ter entendido o que estava acontecendo, há gestos que não precisam ser ouvidos para serem compreendidos; eles cortam fundo e permanecem esculpidos nas retinas da memória. Mas eu não podia recuar. Ao abrir a porta, meu coração parou, talvez porque eu não soube que reação ter.
O quarto estava pouco iluminado, pois as pesadas cortinas de veludo vinho permaneciam quase totalmente cerradas, permitindo que apenas um fiapo de luz solar atravessasse o tecido espesso. Um cheiro metálico e de carniça ascendeu com o movimento da porta. Era quase o mesmo odor que senti ao resgatar o saco que Sibila jogara no rio Spree. Era o perfume horrível da morte, de carne putrefata, de sangue envelhecido. Desta vez, porém, ele estava seco.
Mirei a cama. Os lençóis, fronhas, travesseiros e toda a parafernália sem a qual os humanos não conseguem dormir não haviam sido trocados desde a morte dele. Como novo proprietário do casarão e de toda a fortuna que Viktor deixara, não permiti que nada fosse tocado ou limpo antes de uma análise minuciosa feita por mim. E logo a hesitação foi substituída pela certeza: Viktor estava realmente morto, e alguém o matara. A cama estava empapada, com uma grande mancha marrom sobre ela e muitos respingos ao redor. Era uma cena dantesca. Não consigo imaginar como a polícia escondeu isso dos jornais. Como suposto filho bastardo, claro, eu soubera que a morte dele não fora por causas naturais, mas me importava tão pouco com sua vida que sequer havia parado para pensar nisso. E Sibila? Por que a polícia não a colocou no rol de suspeitos? Será que ninguém sabia?
Retirei o lenço do meu bolso para poder respirar com mais conforto, apesar do cheiro forte de carniça. Abri as cortinas e as janelas, permitindo que a luz do sol entrasse e se apossasse do quarto. Achei que aquele quarto, tão tomado pela morte, merecia que um pouco de calor e vida o invadisse. Por mais que eu mesmo não me considerasse vivo — nunca fui. Fui feito de morte, de partes de diferentes cadáveres… Um experimento que Viktor, antes de completá-lo, julgava que iria criar um ser perfeito, melhor do que a própria raça humana. Quando ele me viu pela primeira vez, apenas se horrorizou com a minha aparência; Frankenstein nunca quis olhar para me conhecer verdadeiramente. E… nós tememos aquilo que não conhecemos.
Mas na noite da minha criação, ao invés de respeito, admiração e curiosidade pela própria obra, Viktor me concedeu unicamente o seu desprezo, provando que a única coisa que importava a ele era o seu próprio ego. A partir do momento em que eu — vamos ilustrar assim — saí de dentro de sua mente e passei a fazer parte do mundo real, ele passou a me ignorar. O afã, a paixão que existira, era por suas ideias; nunca fora por mim, por ninguém.
Então pude ver com mais clareza. Através dos fachos de luz, muitas partículas de poeira podiam ser vistas, iluminadas e dançando pelo ar, alheias ao que ali se passava ou se passara no quarto, feito retalhos de almas perdidas pelo espaço-tempo. A visão delas sempre me acalmara — exceto naquele dia. Porque, naquele instante, tive a certeza: a pequena chance de mudar minha aparência horrenda morrera com ele — o único homem com conhecimento suficiente para fazer isso.
Meu criador e meu algoz. Como suportar essa verdade inconveniente? Senti o rosto aquecer, rubro de ódio. Éramos semelhantes — quiçá iguais? Talvez eu fosse apenas um fruto que não caíra longe do pé. Cegado por minha própria condição, não pus fim à moléstia que representávamos ao mundo. Estava condenado a viver eternamente só e recluso. Pior ainda: sem ela para amar. E amar… amar? Que presunção a minha. Quem eu penso que sou para almejar tal coisa? Um ser composto por cadáveres, com olhos amarelados, como se estivesse doente, moribundo... Mas alguma coisa em mim recusava-se a perecer, e esse algo era Sibila. Se me aproximo de qualquer ser, assim que sou visto, noto a repulsa. Por que com ela seria diferente? Mas algo dentro de mim recusa isso. Não posso ceder. Tenho de encontrá-la. Tenho de colocar à prova o que minha intuição me diz: que ela é diferente. Que ela é inocente. Que ela está viva!
Encorajado pelos últimos pensamentos, decido explorar cada centímetro daquele quarto. Aos poucos, começo a limpá-lo — não por piedade a Viktor, mas por proteção a ela. Se alguém tivesse que tocar naquele espaço, que fosse eu. Não uma faxineira curiosa e fofoqueira. Tudo o que vi até agora me leva a crer que quase ninguém sabia que Sibila morava aqui. E quem sabia… se calou.
O quarto tinha paredes meio verde-musgo, a metade de cima forrada com painéis de madeira entalhados, com flores enormes e estilizadas. Na parede de trás da cama, havia um brasão da família Frankenstein. Ele era subdividido em quatro partes, ornado com capacetes de guerreiro prata, trevos de três folhas vermelhos. Ao centro, um escudo de coração dourado; nele, um machado de batalha vermelho oblíquo em ouro. A cama de dossel era de carvalho escuro, ricamente entalhada. A cabeceira mostrava a cena de um caçador esticando o próprio arco, à espreita de um cervo. Nada me surpreendia. O que eu mirava era a expressão de um homem ensimesmado, profundamente ordeiro e devotado ao método, exceto pelos lençóis revoltos na cama.
Decido começar a explorar pela Nachttisch. Ao fitá-la, vislumbro o manto que Sibila usava em meu sonho. Estava dobrado sobre ela exatamente como ela o dobrara, antes de sentar-se ao meu lado à beira do precipício onírico. Estendo a mão, toco o tecido e o levo ao rosto. Ele ainda guarda seu perfume, aquele perfume humilde. Mas há respingos de sangue nele — isso me leva a crer que ela esteve aqui e, mais: esteve envolvida com a morte dele. E o mais intrigante de tudo: como era possível eu ter sonhado com um manto idêntico ao que segurava agora em minhas mãos? Isso significa alguma coisa. Significa que, de alguma forma, nós realmente nos cruzamos em alguma realidade existente além deste mundo, dos meros sonhos.
Empolgado, abro a pequena gaveta da mesinha de cabeceira e encontro uma pasta de um couro tão puído quanto o caderno de Viktor, as páginas com os cantos meio sujos e desgastados — decerto de tanto ele as manusear. Naturalmente, ele havia feito muitos estudos sobre tuberculose, a doença que matou sua esposa. Depois dos estudos sobre a doença, havia outros sobre como o cérebro humano se comportava durante o sono… Eram assuntos tão divergentes que eu não consegui desvendar a ligação entre eles. Algumas continham símbolos arcanos ao lado de estudos de uma linguagem desconhecida por mim: traduções do que Viktor chamava de língua Séttimoriana. Séttimor deve ser algum local, então.
Uma tradução, em especial, prendeu minha atenção. Era a descrição de um ritual destinado à transposição de almas entre planos — algo que, segundo o texto, só poderia ser feito através da abertura de fendas dimensionais induzidas em estados de coma profundo ou durante sonhos lúcidos. O processo exigia que o corpo estivesse completamente inconsciente e envolvia um pagamento em sangue, retirado da alma-alvo. À margem, Viktor deixara um comentário enigmático, quase como se falasse consigo mesmo:
“25 de junho de 1869 — Após o procedimento ‘1E’ não ter surtido o efeito desejado, tenho sido atormentado pela alma dela, que se tornou vingativa. Essa é a única explicação que tenho encontrado para os acontecimentos paranormais que vêm ocorrendo. Para os próximos testes, precisarei encontrar um meio de me precaver quanto a isso. Nenhum sinal de Elizabeth, nem em sonho. P.S.: desconfio de que não apenas um corpo saudável seja necessário; pareceu-me necessário algum tipo de compatibilidade. Só preciso descobrir qual.”
Se ele tentava abrir portais entre mundos durante o sono, talvez isso explicasse meus sonhos estranhamente vívidos com Sibila. Estava claro que ele havia testado o ritual em uma de suas vítimas; e, após a morte, ela o deixou com medo. Finalmente eu estava começando a colar os cacos do vaso, isso me fazia entrar em um estado de exaltação tal, que eu sentia o líquido vital correr com força e vigor pelas minhas veias. Apanhei o manto de Sibila, com seus motivos orientais. Ela parecia ter especial apreço por ele. Pretendia devolvê-lo a ela... Senti que estava começando a desvendar o mistério de seu desaparecimento. Voltei ao papel. O que seria essa “compatibilidade” mencionada? Uma condição física? Psicológica?
Senti que as respostas não estavam ali, mas em outro lugar. Havia mais peças desse quebra-cabeça nas profundezas ocultas do casarão — e eu sabia onde procurar. Desci de volta ao laboratório. O odor acre de álcool e ferro me envolveu enquanto me aproximava dos frascos vazios. Comecei a manipulá-los com cuidado. Só então percebi: além dos rótulos com nomes de diferentes mulheres, havia inscrições nas tampas. Em um deles, escrito na caligrafia de Viktor: 1E (Vazio). Mas… se o 1E estava vazio e os outros também, por que apenas esse frasco tinha essa anotação na tampa? Recoloquei o frasco de Eleanor no lugar. Minhas mãos suavam — eu estava curioso, e agora, com medo também. Ao contrário de Viktor, eu nunca fora cético. E ao que parece, ele deixara de ser nos últimos meses.
E se, de repente, Eleanor também viesse me assombrar?
Para evitar problemas, devolvi o frasco à prateleira. Mas, tomado pelo desejo de rever Sibila — e também por uma curiosidade mórbida — peguei o último frasco, o que trazia a etiqueta “Ava”. Na tampa lia-se: 30A. Ao aproximá-lo do meu rosto, levei um susto e quase o derrubei: um rosto ruivo, em agonia, apareceu lá dentro. Larguei o frasco de volta no lugar, ofegante. Seria verdade aquilo? Será que aquele rosto me viu?

Mergulhe em um mundo suspenso entre a morte e o delírio. Sibila desperta em um castelo cercado por campos de lavanda e vozes sussurrantes, sem saber como chegou ali, tem apenas a certeza de que matou Viktor Frankenstein. Mas naquela terra onde o tempo se desfaz e os mortos sussurram, certezas são as primeiras a apodrecer. Inspirado no universo de Frankenstein, este romance gótico reinventa personagens clássicos que desafiaram a morte e pagaram o preço. » Leia todos os capítulos.

Aryane Braun
Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
O licor havia se impregnado em minhas papilas gustativas. Meus dedos agitados fazem o líquido viscoso balançar com inquietação dentro da taça…