Mar Espectral
Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula
Um assobio cortava os corredores do castelo, como sempre escuro e esquecido. Aquele assobio dominava e transpassava seu eco junto de uma ventania estranha que dançava pelas paredes de pedra e roçava na poeira, erguendo um cheiro de umidade e pó. Em uma das câmaras de retiro do castelo, Minerva escrevia em seu livro negro, posicionada sob uma mesa de escrever. Ela aguçou os ouvidos, atenta àquele som ritmado que ecoava cada vez mais perto.
O som deslizava pelo ar, suave e contínuo, como um sussurro levado por uma brisa forte ou o farfalhar de um tecido escorregando sobre uma superfície lisa. Era fluido, mas inconfundivelmente presente enquanto se movia, sussurrante e rápido, arrastando o pó do castelo pelos ares e emitindo notas como Dó, Mi e Sol.
Hummmmmm Hummmmm hummmm hummmm...
Ela parou, pousou a pena sob a madeira da mesa cautelosamente ao direcionar o olhar atento para onde o som ecoava quando aquilo adentrou pela porta do cômodo, que se abriu de leve como se alguém a destrancasse, aquele vento soprou a vela erguida pelo candelabro ao lado de Minerva e a apagou, sob a mesa. A escuridão dominou e ela ouviu apenas o som de seu espirro após inalar o pó que aquela brisa trouxera, que exalava um aroma de terra molhada.
A esfera luminosa de Minerva brilhou no ambiente acima de sua cabeça, afugentando um pouco do breu e elevando à penumbra a marca dos objetos ao seu redor. Com cuidado, ela fechou o livro e, com um sussurro, o encantou para que ninguém mais o pudesse ler. O pó sob o chão era levado por aquela brisa fazendo círculos ao seu redor e aquele som podia ser ouvido como às vezes mais longe e às vezes bem mais perto, como se estivesse indo e vindo até ela. Aquele era um dos sinais de algo que a chamava mais uma vez para os lugares mais ermos e lúgubres que se escondiam nas reentrâncias dimensionais do castelo.
Minerva avançava pela galeria silenciosa, guiada por uma intuição que pulsava em seu coração. A brisa, cada vez mais intensa e carregada de poeira, soprava sua direção, também lhe indicando o caminho. A cada passo, seus pés ecoavam suavemente sobre o chão de pedra, e ela percebia uma mudança sutil, quase imperceptível, na atmosfera do castelo. Havia um murmúrio distante de água corrente deslizando pelas paredes e pelo chão. Ao seu lado, a esfera de luz que a acompanhava brilhava com um tom inusitado: o azul-cobalto substituíra o habitual tom de safira, como se até mesmo sua magia estivesse sob influência de algo diferente.
O vento empoeirado mudou repentinamente de direção, arrastando Minerva para uma ala do castelo que lhe era completamente estranha. A escuridão era tão densa que o teto parecia ter deixado de existir, e todos os objetos ao redor surgiam apenas como vultos distantes, como se ela caminhasse por um vazio absoluto, desprovido de tempo e espaço. Vista de longe, se alguma alma pudesse enxergar naquele abismo, ela seria apenas a silhueta de uma dama envolta em negro, recortada contra o brilho pálido de uma luz fria, um vestido longo de mangas justas a cobria como um véu de sombra, os tecidos pesados ondulando suavemente ao compasso do vento oculto, como se a própria escuridão se moldasse ao seu corpo.
O sussurro ecoou mais uma vez, baixo e arrastado, como um segredo sendo revelado gota a gota nas paredes. À frente, Minerva vislumbrou um alto portal, duas portas monumentais, cravadas no chão e fundidas à rocha das paredes. Eram feitas de jacarandá escuro, e exalavam uma presença inquietante. Reunindo toda a força do corpo, ela empurrou as portas pesadas, que rangeram com um som áspero e profundo ao se abrirem.
Do outro lado do portal, Minerva encontrou uma paisagem emoldurada pela desolação: uma praia fria e cinzenta, açoitada por rajadas de vento cortante, sob nuvens espessas que mergulhavam o mundo em penumbra. As ondas do mar, negras e revoltas, quebravam com fúria sobre a areia pálida, como se tentassem devorar a costa. Ao erguer o olhar, ela o viu o castelo Drácula erguendo-se com imponência sobrenatural no alto de uma formação rochosa, cercado por montanhas escuras como carvão.
As torres do castelo se projetavam contra o céu como lanças de pedra, adornadas por gárgulas de olhos ocos e asas abertas, como se estivessem à espreita. Vitrais rachados e sujos, mais parecidos com feridas do que com janelas, manchavam suas fachadas, lembrando igrejas amaldiçoadas, esquecidas pelos deuses e devoradas pelo tempo. A atmosfera era densa, elétrica, como se algo além da compreensão, habitasse aquele cenário. E Minerva sabia, ela estava numa das dimensões ocultas onde o castelo Drácula existia, um reflexo sombrio entre realidades na encosta da praia da melancolia.
Em sua mente, ela considerou aquele acontecimento por alguns segundos, tentando entender onde estava e por que o castelo a trouxera ali. Ela sentou-se na encosta da praia. Seu longo vestido negro foi consumido pela areia e seus cabelos tornaram-se esvoaçantes com as rajadas de vento. Em seu interior, se instaurava um medo vestal como se sua magia fosse se esvair, ela não tinha fé única, mas cria principalmente em sua magia.
Por um instante fugaz, tão breve quanto o piscar de olhos, Minerva tentou racionalizar o que via. Por que o castelo a convocara para aquele limiar de mundo esquecido? Que propósito obscuro havia naquela travessia? Sem respostas, deixou-se cair sobre a encosta pedregosa da praia, onde a areia, fria e úmida como cinzas de ossos antigos, começou a engolir as dobras de seu vestido negro. O vento, cada vez mais impiedoso, fustigava-lhe os cabelos, fazendo-os dançar em espirais caóticas como serpentes presas na cabeça da medusa.
Ela afundou as mãos na areia pálida, desejando ancorar-se ao mundo físico, sentir algo que não tremesse sob o peso do abismo. Foi então que seus dedos roçaram algo rígido e frio, uma estrutura metálica soterrada sob os grãos. Puxou-a lentamente, revelando um objeto soturno: uma cruz de tungstênio escurecido, com uma safira profundamente cravada no centro. Gravadas em seu corpo metálico, inscrições arcanas serpenteavam em uma língua extinta, como se tivessem sido gravadas por mãos que já não pertenciam há nenhuma era conhecida. Era um encantamento, um aviso, talvez. Ou uma chave.
Ofegante, os olhos de Minerva vasculharam mais uma vez as inscrições entalhadas no artefato, buscando um sentido oculto nas curvas tortuosas da escrita. Então, com um murmúrio quase imperceptível, lançou um encantamento que fez a cruz flutuar diante de si. Os símbolos arcaicos despertaram, acendendo-se com uma luz azul e girando lentamente no ar. Uma única frase reverberou, clara como uma sentença final: aquele que habita na escuridão, Lwccirtt, livre de sua prisão.
Mal as palavras cessaram, as rajadas de vento emitiram urros furiosos, e no coração do oceano caiu um raio etéreo de luz antinatural, impossível de nomear, que desceu rasgando os céus. O clarão golpeou as águas como uma lâmina divina, e o mar respondeu. Minerva tentou erguer-se, tentou fugir da costa maldita, mas o tempo já não lhe pertencia. Das profundezas abissais, ergueu-se a onda. Não uma onda comum, mas uma muralha de água e trevas, uma maré de natureza arcaica e brutal que não pertencia àquele mundo. Era como se o próprio mar, consciente e vingativo, se levantasse para apagar tudo. Ela não apenas engoliu a praia, ela perfurou, arrastando com ela a matéria que Minerva conhecia ou cria ser o mundo.
O castelo Drácula, em sua imponência amaldiçoada, foi tragado inteiro. As gárgulas se despedaçaram como bonecos de sal; os vitrais explodiram num mosaico brilhante de pontos escuros, e as colunas góticas se retorceram sob o peso de um oceano que não devia existir. A água salgada invadiu corredores e criptas, afogando histórias e horrores adormecidos naquela dimensão. Minerva, engolfada pela força inominável, foi arremessada contra as rochas submersas como uma folha sem destino e ali seu corpo flutuou, inerte, entre as sombras. E então ele surgiu. Lwccirtt.
Uma criatura feita de névoa viva e substancial, pairando sob as ruínas submersas como um presságio, dançando imerso nas águas escuras. Era amorfo, uma nebulosa sólida e escura, líquida, pulsante como tinta cósmica derramada sobre o fundo do oceano perto da zona abissal. Sua anatomia desafiava a mente: tentáculos espectrais sem origem serpenteavam em direções paradoxais, oscilando entre matéria e vazio.
Minerva submergiu sob as águas que devoraram o castelo, envolta em silêncio. Seu corpo repousava imóvel, e apenas o tangível frio das águas lhe despertava as extremidades dormentes, sabia que estava machucada, mas não conseguia sentir onde. As sombras que avançavam no escuro levavam consigo destroços do castelo Drácula; numa quietude súbita, as correntes agitavam-se num balé funerário, como se o próprio mar reverenciasse uma queda tão grandiosa.
Foi então que algo se formou nas profundezas e ela pôde ver e aproximar-se do que deveria ser a superfície, só que não conseguiu alcançar. Não era fera nem fantasma, mas um vulto indecifrável, a entidade Lwccirtt, uma massa de nébula quase sólida e insólita; era escura e se desenrolava sem pressa. Suas bordas não tinham consistência firme; eram como brumas antediluvianas, densas como breu, mas compostas de uma estranha luz opaca e cobalta.
Aquilo flutuava indiferente no véu escuro aquático, com curiosidade pacífica, observando Minerva, que ainda presa entre o limiar do sono e da vida, não sentiu medo. Pelo contrário, mesmo sem respirar, ela despertou do seu transe turvo com uma curiosidade silenciosa, a falta de ar por hora não a incomodava. Era como se aquele ser tocasse sua mente sem a tocar fisicamente, e impressões e sensações fluíam diretamente em seu ser. Não havia voz, apenas um eco distante, um sussurro que animava sua consciência. Os olhos vermelhos da bruxa enxergavam, turvos, os dentes afiados daquela estrutura nebulosa que a faziam lembrar de um peixe-ogro.
Sensações de frio e calor envolveram-na num diálogo psíquico indescritível com os vórtices luminosos que deveriam ser os olhos daquela entidade. De súbito, o inconcebível se revelou em visões fugazes. Aquele ser conversava com ela e mostrou para Minerva um turbilhão de imagens e nem todas ela compreendia. Ela viu cidades submersas antes da era dos homens, rostos antigos esculpidos na pedra que jamais poderiam ser lidos submersos em águas profundas, florestas petrificadas sob um sol que ainda não nascera. Ela enxergou desertos de cristais negros e mares de trevas luminosas, espectros de constelações mortas e astros recém-nascidos girando num balé eterno. Cada fragmento destas cenas era um pressentimento de algo maior, um lampejo de conhecimento proibido, mas tudo lhe escapava entre a visão turva do vermelho rubro de seus olhos sangrentos que ardiam pelo sal. Suas forças e sua magia estavam sendo drenadas.
Ela apanhava vislumbres da geometria do cosmos, da quietude antes do tempo, sem conseguir nomear. Um som estranho, como um borbulhar, era ouvido por ela quando a entidade a mostrava as visões. Ela sentia que precisava adentrar em uma daquelas realidades, em seu âmago ela começou a chamar pelo castelo Drácula, pela dimensão que ela conhecia. Cada vez que ela buscava aquele vislumbre nas visões de Lwccirtt, o som do borbulhar aumentava; ela precisava respirar e não conseguia se desvencilhar daquele contato, não conseguia nadar em busca de uma superfície.
Sentia as suas energias sendo transferidas para a nebulosa lôbrega, mesmo assim ela insistia com todas as forças psíquicas em chamar a visão de seu grimório deixado lacrado na câmara de retiro entre as visões que Lwccirtt lhe mostrava. Quando seu coração despontava sem ar e seus pulmões quase sem vida, um relance do grimório surgiu e ela pode sentir a estranheza da entidade diante da imagem.
Quando o contato terminou, Lwccirtt retornou ao mar de sombras de onde emergira. Minerva conseguira retornar, porém, quase sem magia e a cruz de tungstênio perfurava seu peito. Pairava no ar, suspensa por um último fôlego da magia que agora a deixava, ela caiu sob o chão de pedra.
Seu corpo encharcado chocou-se contra o chão, pesado e exausto, como uma ânfora vazia. A cruz de tungstênio, que antes flutuava com poder, agora atravessava-lhe o peito, cravada como um selo. A dor era real, mas mais real era a estranheza de ainda estar viva. Ela arquejou, expelindo a água salgada dos pulmões pela boca, numa ânsia entre a morte e o renascimento ela arfou em uma tosse desenfreada. Sua mente ainda oscilava, presa à visão do castelo submerso, e da criatura que havia lhe mostrado o infinito. Ela invocou a esfera luminosa que, enfraquecida, piscava emitindo um som vibrante de energia.
Com um último esforço ela se ergueu sentando-se, segurou a cruz e a arrancou de si. O sangue misturou-se à água que escorrida de seu corpo sobre o chão, formando um reflexo escarlate. Minerva tombou outra vez, silenciosa, com os olhos abertos para o teto que não via, carregando em si um novo vazio, não de ignorância, mas de sabedoria impossível.
O mundo ao seu redor parecia mais vasto e menor ao mesmo tempo; o tempo não corria mais linearmente. Embora não pudesse nomear o conteúdo exato das visões, sentia que partilhava de uma sabedoria antiga. E essa certeza, por si só, já transformava sua existência fazendo-a se perguntar o que ela realmente buscava. A cruz continuava ali, ao seu lado, fria e cintilante, gravada com o nome daquele que habita na escuridão. Lwccirtt.

Minerva, uma bruxa de alma inquieta, carrega como fardo uma maldição perversa e encontra no Castelo Drácula um refúgio para sua incessante busca por conhecimento e poder. Entre vivências intensas e, por vezes, terríficas, ela confronta os espectros de seu passado enquanto desvenda os enigmas que o presente lhe impõe. A cada passo, aproxima-se de uma verdade arcana — e sente que sua maldição é a chave oculta desse segredo. Sua rapsódia é o confronto entre sua alma e o destino que lhe foi imposto, enquanto revela uma sensibilidade de essência rara, há muito tempo privada de se expressar. » Leia todos os capítulos.

Júlia Trevas
Júlia Graziela Pereira Trevas é uma escritora de 29 anos, natural de Campina Grande, Paraíba. Formada em Letras - Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), também atua como professora de inglês. Sua paixão pela escrita começou ainda na pré-adolescência, quando compunha pequenos versos. Mais tarde, ao ingressar na faculdade, aprofundou-se na literatura gótica, que hoje é uma de suas principais influências criativas. Uma curiosidade interessante é que... » leia mais

Esta obra foi publicada e registrada na 16ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de maio de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.
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