Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Lancei-me contra as sombras do corredor, apressei cada um de meus passos enquanto minha mente atordoada se alimentava de sua própria angústia. Covarde. Vi o lume lunar se extinguindo e o silêncio se aguçando como o adentrar no fundo de um oceano mortal. É assim que farás justiça em nome de teu único amor? De algum modo inexato, tracei o caminho ao meu aposento, embora o Castelo parecesse um labirinto. A aragem soprava uma mórbida invernagem e conduzia, com sua extensão bizarra, todo o meu terror. Quanta tolice. Atravessei os umbrais semiabertos, e vi, como outrora, o meu leito. As sete vozes do abismo permaneciam, enquanto meu coração era um frenético pêndulo. Volte e acabe com isso! Em alguma instância, as lágrimas passaram a liderar minhas emoções. “Silêncio! Silêncio!” — Bradei, em busca de serenidade. Ele é mais forte, ele vai te encontrar. Eram límpidas e douradas, pois vertiam e desciam pelo meu rosto, a nascente de meus olhos, contornando meu queixo e morrendo na curva de meus seios. Então vi a cor. E vi que também ruíam coralinas. A morte dele seria um alívio. Vesti-me em busca de aquecimento e considerei cavar o túmulo de minha solidão perpétua. Todavia, eu não partiria antes de reter a minha missiva, decerto que possuiria valiosas verdades acerca de meu passado. “Lëvri… por quê?” — Pensei, ele não saía de minha mente. Traidor facínora, esqueça-o! Não havia escolha, era preciso encontrar Drácula. 

Amável Áurea, teu semblante plácito incita minha esperança, aquém da morte encarnada, corroendo minha existência. Não conto com a tua lembrança, porque sei que Pherhesí, se mal manipulada tal como fora, poderá resultar em angústias de inominável poder. Perdoe-me, minha dócil, perdoa este que amou a tua humanidade e tirou-a de ti sem considerar as consequências. Não sei no que te transformaste... e anseio, com tudo o que há de mais humano em meu cerne, que sejas uma nova Illitan e que possas recomeçar a nossa raça em nome de quem sou, aquele que te amou e há de amar-te além-vida. Não anelo, sob o estado em que me encontro, considerar o pior. Áurea, amante minha, dulcífera criatura; encontre a quem amar e, se fores Illitan, dê à luz. Se não o fores, te recordes do último Illitan, honre meu nome à posteridade, de alguma forma. 

Sinto a morte em minhas entranhas, ela é lenta e profunda; como um invadir de raízes dentre as minhas veias, alimentando-se do poder que me faz ser quem eu sou. Quão amargo não mais dar-te um primogênito; tampouco a pequena cabana aos pés da neve, com o oceano mórbido ao horizonte. Eu sinto muito. Ao despertares, não te aproximes desta belíssima flor que vês em meu peito, reluzente em carmim, com pétalas abertas como um lírio e outras semifechadas como as rosas mais sublimes, não toque nas raízes âmbar, tenha cuidado com os espinhos. Um toque bastará para que o veneno lhe adoeça à morte sôfrega. Fuja, Áurea minha, e agora que não mais lhe posso privar do hediondo saber, tenha cautela... e não pise, em hipótese alguma, seja o que for ou quem for que te guie, no império de Krvier, tampouco pelas terras de Vonssihren; vá para as Ruínas e em algum lugar de lá, crie seu próprio reinado. 

A carta terminava com palavras ininteligíveis enquanto minha astenia súbita se alastrara por todo o meu corpo. Lorrt morrera, decerto, enquanto redigia; sua dor parecia atravessar meus ossos e o papel em minhas mãos tinha aroma de sangue. Quando a li, fui soterrada por uma tortura pontiaguda no coração, agulhas abruptas no âmago meu, entre lágrimas e temor — era insuportável. Prostrei-me, de joelhos, na alfombra de algodão sob meus pés e desejei a morte para ser digna do descanso eterno, sem as vozes abíssicas, sem a dor da lembrança, sem tudo o que parecia compor minha desgraça. Naquele recôndito, nenhuma luz lunar reluzia nas janelas; a noite, na verdade, parecia-me outra e essa confusa sensação temporal, atordoava-me. Só pude retomar minha sanidade, quando o mal que me doía destilou-se e o vi em névoa cinérea pelo lado de fora do Castelo, através dos vitrais semiabertos. 

Illitan era a raça vampírica de Lorrt e seu falecimento acontecera durante, ou talvez depois, do ritual de transmutação vampírica — o qual me fez o que sou. Os Ohrmons, decerto, foram os que o mataram, como na visão que tive, vampiros da raça inimiga, com seus olhos negros sem esclera; eu jazia inconsciente em meu leito naquela noite ao lado de Lorrt, no entanto, não em completude, pois a dor mórbida que tomara meu corpo advinha da lembrança do momento em que os Ohrmons invadiram o local e vi Lorrt matar um por um até ser infectado pela Rosaemori no movimento último de um dos inimigos. O amor acima de sua própria vida. Ainda não compreendo a totalidade do que é a Rosaemori e o porquê ela existe, mas sei que um dos Ohrmons possuía uma adaga dourada imersa em seu veneno, ele a fincou, por fim, em meu único amor. Parte da revelação da carta fora dada a mim por meio de Lahgura, tudo fazia sentido. Quiçá, portanto, ali naquele Castelo misterioso, residisse a última vampira da raça Illitan — assim o compreendi. Notei, pela missiva de Lorrt, o quanto isso tinha valor para ele; lutou até o fim para não extinguir a sua raça e pensou nisso até o último instante de sua trágica morte, encorajando-me a procriar para dar à luz a novos vampiros de sua estirpe. O amor abaixo do curioso egoísmo de promover o próprio legado?  

Embora eu lembrasse, por fim, de nosso vínculo, de seu heroico cuidado sobre meu corpo inerte naquele leito e de toda a sua nobreza; nada confortava meu espírito. Quando tive em mãos o papel, observei-o com longa demora, hesitei em lê-lo, pois, este desconforto enraizara-se desde que deixei Lëvri e fui guiada pelo cântico sombrio. “É parte de quem tu és, Ennehris; não temas a tua história” dissera Olga Nivïttiz. Fora ela quem me encontrara à esmo pelo Castelo, em busca de Drácula; sua feição era bela, como uma impactante mulher; tinha olhos de um azul pálido e era plácida como as nuvens de verão, carregava a carta em suas mãos enquanto andejava à minha procura — embora eu tenha pressentido o saber dela acerca do local em que eu estava naquele momento; a mulher que emanava algo obscuro e oculto — o que desejei não saber a respeito — tinha um tipo visível de elo com cada parede de pedra a nos cingir; cada vela e candelabro; cada escuro canto; ela parecia dominar as sombras e as luzes, e o fremir do silêncio. Seu sorriso singelo, ao fitar-me sob intranquilidade, aqueceu-me um pouco, na frialdade do meu amargor. Apresentou-se, formal e afável. Não a interroguei sobre o local, meu desgosto e confusão mental em razão daquelas mórbidas vozes deturpavam minha racionalidade e impediam-me de tomar as decisões mais corretas. Porém, tive a calmaria de ser convidada por Olga a recorrer ao seu aposento caso eu precisasse de quaisquer favores e esclarecimentos, assim, em razão do convite, não me senti na obrigação de prolongar, naquele átimo, a nossa conversa. 

Todavia, quando a dor cessou e a solitude beijou novamente os meus lábios; uma das mórbidas vozes, única e mais grave, em meu sepulcro mental, antevira um instinto obsceno que eu jamais vivenciei; ecoou em meu crânio enquanto minha visão se encarnava. Sangue... Sangue... Sangue... Tudo, as tapeçarias, as pedras, o mobiliário do aposento; tudo era puro e negrume rubi, a cor mais vermelha e sanguinolenta que um dia imaginei existir. Senti-me sufocada, com todos os sentidos atormentados e, com uma sobrenatural rapidez, uma célere e monstruosa cinesia, tracei os claustros e passagens do Castelo Drácula, abandonando a carta que, até o momento que decidi abri-la, não a havia soltado. Aos meus ouvidos conduzia-se, tão somente, minha respiração afoita, meu coração pulsante frenético e o silêncio sombrio da minha sede. Temi a morte, no ápice da agonia. Então, n’uma caça qual nem eu mesma compreendia, avistei um homem adentrar um cômodo há pouco mais de dois metros de mim. Segui-o lentamente e vi-me transfigurada em sombras que tomavam cada canto daquele aposento, conduzindo o olhar do rapaz a um semblante de insegurança. 

Não é uma dádiva a memória daquele momento, confesso que desejava esquecê-lo de modo integral, pois, a agressividade do que me conduzia e a visão encarnada trouxera-me uma estranheza medonha, um horror íntimo que só pude notar no fim, quando se dissipou. Até lá, no entanto, eu era apenas um títere escoltado pelas mãos do instinto daquilo que me tornei, refém do meu próprio poder. Uma vampira... obcecada pela seiva acerejada... doce liquor da vida humana. Consegui obscurecer todo o ambiente e ainda não era vista pelo jovem que estava cada vez mais amedrontado, embora sua feição não transmitisse horror em si, mas sim um encanto imerso em medo e angústia. Eu vislumbrava-o, cada artéria de seu corpo, cada veia; sua pele parecia translúcida e seu coração estava tão convulso quanto o meu, eu o sentia. Da névoa negra dissipando, fiz meus olhos serem vistos e, depois, meu corpo. Não sei como eu estava, contudo, através daqueles olhos por detrás dos óculos de grau, aquele rapaz avistava uma mulher sedenta e desta maneira, ébria e ávida, aproximei-me de seu corpo humano, ele não se afastava de mim, estava sendo conduzido por algo meu que eu mesma desconhecia. De perto pude ver um brilho pulcro em suas retinas, e as pupilas dilatadas e trêmulas, em estado de transe. 

Então toquei-lhe o rosto empalidecido, descendo minha mão pelo seu pescoço viril enquanto fitava seu sangue ardente, quase fulgurante ao meu olhar, esplendoroso e acelerado. Aquele homem exalava vida, um tipo de vida que eu não tinha mais. Sei que o sorri naquele momento, porque mesmo dominada pelo inferno da minha condição, eu ainda era eu. Segurei sua cintura, lentamente; e próxima, por fim, de seu pescoço, finquei-lhe meus dentes que afundaram em sua carne sem dificuldade; o tórrido líquido entornou-se pelos meus lábios, inundando minha garganta gélida. Sorvi de seu éter com uma morosidade diabólica... embriagava-me em exultação perniciosa... e senti a estrutura física de meu mártir vibrar, ele gemia, lamúrias baixas, murmúrios de pavor e deleite. O licor vital escorria, traçando curvas pelo meu queixo e pelo corpo de minha vítima, manchando sua camisa branca, eternamente assinalada por minha atrocidade. Pouco a pouco a visão carmim se extinguia e eu voltava à sanidade, o suficiente para parar o meu ato e olhar para o corpo pálido daquele rapaz inocente. Seus olhos se fecharam devagar, eu não o havia matado, no entanto, retirei de seu corpo parte de sua vida, o qual carregarei para sempre em mim, mesmo que de modo tão simbólico. Deitei-o desacordado na cama, beijei-lhe o rosto frígido. “Eu sinto muito...” — sussurrei e olhei-o mais uma vez para, por fim, fugir. E fugi para o mais longe que pude, sem saber o que me esperava fora daquele lúgubre templo de morte. Corri na mesma urgência de outrora, quando dominada por minha bestialidade, e vi as torres altas do Castelo transmutarem-se, pouco a pouco, a um horizonte de névoa erma. 

A cinérea bruma era densa, turvava-me o senso de direção. Caminhando com cautela, perscrutei o silêncio e a palidez anuviada, uma cerração quase tangível que, de forma sutil, pressionava minha alma, oprimia meu espírito, imergia-me na insólita sensação de dissipação existencial. Com delicadeza e, sobretudo, lentidão; a névoa parecia desgastar minha pele, mesmo não havendo nenhuma mudança visível; da mesma forma, conforme meu caminhar se prolongava sob a tortura daquele fenômeno, ouvindo corvos no horizonte, fui submetida a uma queimação, como o fumegar de meus órgãos e um fervilhar de minha seiva, embora o crocitar doasse-me tenra esperança por existir, naquela vastidão nuviosa, algum tipo de vida além da minha. Ainda assim, era um cruel suplício onde meu único alívio advinha do absoluto silêncio das sete vozes do abismo. Não sei, contudo, por quanto me inundaria de paz aquele vazio, pois um sonido fantasmagórico preencheu a falta de minha maldição e parecia-me sussurrar o inaudível, símil à chuva e à respiração ecoante, no longínquo e, ao mesmo tempo, ao meu lado. Um medo aterrador ascendeu meu pânico à uma fobia de toda aquela ausência de visão, contornada pela névoa, minha respiração tornou-se ofegante e comecei a correr outra vez até ver tudo lentificado, como dezenas de espectros no meu olhar, embaçado e tardio, completamente turvo e confuso. Assim caí de joelhos no que me parecia restos de uma densa floresta, com flores e folhas secas. Busquei pelo ar, mais e mais, toquei meu torso, como que para segurar meu coração que, estranhamente, parecia parar, embora continuasse pulsando. 

Quando ouvi passos, temi em maior aterramento e olhei na direção do som. Mais passos. Por todas as direções. Mais e mais passos. Ofegante, estremeci em um horror conturbado, mas não havia força alguma em meu corpo, não havia como esgueirar-me dessa vez. Pensei em toda a culpa que carregava e supus ser o meu carma por sorver, sem permissão, daquele sangue. Então fui pega por criaturas com faces sombrias, pareciam humanos, pareciam pessoas com feições distorcidas. Demorou para que eu pudesse vê-los de fato, pois, toda a minha visão tornara-se palidez pura, enquanto eu me conduzia apenas pelos sussurros da névoa. Como fluíam as coisas... há pouco devorando uma frágil criatura humana, sendo apinhada de energia e poder sobrenatural, tendo em meus olhos encarnados o luzir da glória, o sabor quente do sangue nos lábios e, logo depois, ser a presa da densa névoa, uma vítima da natureza insondável daquele lugar. Não havia quaisquer possibilidades diante do que eu sentia, em meu peito havia, decerto, um relógio e, naquele instante, não só estava em perpétua paralisia, como duplicava-se e distorcia-se adulterado e violento — e triste, lúgubre, toldado de sua própria existência. 

Quando restaurei meu precípuo sentido, enxerguei incontáveis casas em uma longa estrada de pedra. E vi mais daquelas pessoas com rostos estranhos, elas atentamente curiosas ao meu respeito, traziam consigo itens, dentre eles mantas, cálices de frutas. E notei casas com luzes trêmulas, das velas em castiçais de prata. Fui carregada a um dos lares, sendo posta em uma cama com frondosas cobertas cujo tecido assemelhava-se a um veludo estufado como um pedaço de algodão puro, conduzia um calor próprio; muitas as vestes daquele povo assemelhavam-se a este tecido, intrigava-me, porém, seus semblantes deformados e toda a sensação que transmitiam: pacificidade, solidão; um laço que os envolvia, a cada um deles. Os que me carregaram, prostraram-se diante meu corpo deitado, colocando artefatos e frutos trazidos pelos demais — alguns eram jovens, lembro-me de ver uma pequena criança carregando um frasco em suas delgadas mãozinhas. 

Trhe eroen virëhs! Eroen, eroen riamn! — Dissera o mais próximo de mim, pude confirmar a grafia de suas palavras a posteriori. Todos se retiraram do quarto e, daquele que permanecera, senti suas mãos tocarem minha fronte. — Ficarás bem, descansa-te. — Sussurrara, era uma voz feminina e o toque feminil fora tórrido e esmerado. Vi-a deixar o aposento, acendendo algumas velas apagadas pelo movimento fora do comum e fechando a porta em seguida. Som algum ressoou-se no perpassar dos instantes, inclusive deduzi que dormiam, quando os ouvi, ao que parecia, beijar seus rostos, eram como uma família, e repetiam a frase: “Nouen ehelun”, silenciando, todos eles, no suceder, quando lá fora, no nevoeiro, a noite se achegava — via pela fenestra diagonal do meu atual recanto. Assim que pude retomar a sanidade, sentei-me no leito e bebi da frígida água deixada na moringa sobre a mesa de canto próxima. Era água e não duvidei que seria; algo naquelas pessoas transmitiram-me profunda confiança, ainda que o terrífico de suas faces me assombrasse. 

Dessarte, na penumbra, o calmo cuidado deixado pelos residentes, metamorfoseou-se na mórbida sensação de abismo, onde o medo e escuridão são as veredas por onde posso me orientar. Olhei à direita e vi mãos masculinas segurando bagas de um pequeno fruto de envoltório negro, como uvas ou mirtilos, porém maiores. Fitei, por fim, a face do indivíduo, possuía uma aparência adônia com olhos azuis, conspícua expressão, sem embargo ao seu tenro sorriso pontiagudo. Vestia-se de um negrume noturno, roupas de inverno intenso, embora não pesadas e em cortes oblíquos; assemelhava-se a couro, no entanto, não reluzia como tal. Diferentes os que me receberam, os que pronunciavam palavras de um idioma ancestral, este, em evidência, era como eu e não pertencia àquela cultura dos que não possuíam faces completas. Indaguei-me no súbito momento se, por acaso, tratava-se de um vampiro. Hesitei em pegar o fruto que me oferecia, pois, sua aura era funérea e instável. 

Não temas teu Arcanjo, bel donzela.Voz de voragem, tom cruel; dúbia existência indigna da minha compreensão. Hesitei em respondê-lo. Levou uma das bagas à sua boca, mastigou-a com elegância, deixando as restantes sobre a ânfora destinada a frutas. O homem — se era mesmo um — sentou-se à cadeira de balanço, próxima à porta, e fitou-me pacífico, ainda, todavia, obscuro. 

Quem és tu? — Fui obrigada a questioná-lo. 

Tua maldição. — Respondera intenso. Confundi-me por instantes. — Ou apenas Seth, se preferires. — Decerto demonstrei ainda mais do conflito mental, o distúrbio da incompreensão, pois que ele, Seth, ajustou-se em seu acento, olhando-me fixamente — Sou teu Arcanjo, Áurea. Destinado a impedir que quaisquer males afetem a tua preciosa existência, pelo preço de conduzir tuas ações com as sete vozes do abismo, as quais são minhas, como podes notar. — De fato, sua voz era familiar, embora mais grave. Respirei fundo, olhando para a janela, indagando-me o porquê de todas as coisas. Senti-o se aproximar. Sentou-se ao meu lado, em meu leito aquecido. Olhei-o. 

Então te personificas humano... e, pelo visto, sabes tudo sobre mim. Andas, como a hialina aragem e estás ao meu lado como um gárrulo das sombras. — Ele sorriu, parecia mesmo um Arcanjo, dada a beleza viril que o preenchia da pele à barba rala, das veias aos olhos, dos poros à totalidade.

Não. Geralmente estou... dentro de ti. — Silenciamo-nos por um tempo. 

Há como revogar minha aspiração? Olvidar todos os horrores, tal como outrora? 

Não, Áurea... Lahgura é uma perversa magista, manipula suas vítimas com maestria. 

Serves a ela, pelo visto, Senhor Arcanjo; tendo o trabalho norteado como uma tábula resignada, obrigado a fenecer ao meu lado a favor da minha existência. 

Errado, que previsível... — Olhei-o com mais atenção, seus olhos reluziam gentis, mesmo e apesar de seu poder ocultista e de sua ironia. — Existo dentro da tua alma... e corpo. Sinto o que tu sentes, ouço o que tu pensas... Tua morte, portanto, significará a minha. Não conheço todo o poder de Lahgura, tampouco sei como é possível que ela faça o que fez. Mas sei que estou vivo agora, através de ti. 

Se te personificas, por que não te ausentas do meu corpo? Se não tens vínculo com Lahgura, por que apenas não cala as tuas vozes abissais? — Outro sorriso, dele para mim, e um apoiar-se na cama, como se a ela pertencesse. 

Tua inocência pode acabar com a nossa vida. — Seth aproximou-se súbito, segurando meu queixo e respirando próximo de meus lábios; meu assombro despertou o que outrora estivera conduzido pela estranha vertigem e nada mais. — Não tenho elos com Lahgura, mas tenho contigo. Personifico-me, todavia, como a noite se afasta sob o alvor do sol no horizonte, não sou capaz de permanecer fora de ti por mais do que algumas horas. — Explicou, retirando sua mão de mim e voltando à cama, apoiando-se. — É isso que sei, pois sinto; é o que determina minha existência. 

A consciência assimilada cingia-me sem pressa e o delíquio ascendia como o frio. À minha visão, um homem denominado Seth cuja personificação de minha maldição o significava, sendo, mais do que isso, uma criatura codependente de mim; convencida de suas palavras, lidava com a sensação de inabalável descrença, uma dualidade que me machucava — confabulado sobre Arcanjos, temia que ele fosse, em verdade, um demônio e, sendo um, dominador assíduo da mentira à vista disso. Silenciada, busquei refúgios em mim, esquecendo-me que a ele pertenço e provando do acre sabor dessa maldição ominosa. 

Áurea... — Fitei-o, odiava ouvir-lhe chamar-me pelo mesmo nome que Lortt em sua missiva inestimável. Prensei meus dentes como fuga do meu ódio. — Eu sei o que sentes... e o que pensas... — Reforçou, em razão de todas as verdades desveladas. Ele se levantou e tão logo senti sua mão em minha nuca, forçando-me a levantar. Assim pude notar sua estatura alta, ele não estava comprimindo o meu pescoço. — Irrita-me teu ódio contra mim, eu que sou o teu defensor; enfurece-me ouvir estas tuas afrontas silentes que atravessam meu crânio! — Seus olhos estavam ainda mais azuis e sua voz mais grave do que antes, seu rosto era como a noite mais mórbida dos mais medonhos pesadelos. — Tu achas que não estou sob a lôbrega coerção das tuas vozes abissais enquanto te vitimizas da maldição que tu escolheste? — Seth segurou meus cabelos com mais intensidade, aproximando-se de novo da minha face assustada. — Eu... diferente de ti... — Sua voz abaixava tanto que trazia o timbre do inferno, eu sentia fremer minha alma ao ouvi-lo. — Não tive escolha. 

Então, seus olhos que eram azuis começaram a empalidecer e sua pele translucidar. Todo o seu corpo tangível transfigurava-se em um fantasmagórico organismo etéreo e aquilo, como um tipo denso de névoa, penetrava meus olhos, boca, narinas e ouvidos. Doía em minhas veias, sim, cada artéria por onde deveria correr a minha seiva humana. Eu o sentia por todos os meus músculos, pele e carne; um tipo de energia corrosiva, súbita e poderosa. Quando findara, tudo o que ele era já não estava ali — ao menos não personificado; contudo, no meu âmago, eu sentia o peso da sua existência, ascendido de forma desmedida se comparado com antes de conhecê-lo, quando era apenas sete vozes e não Seth, o Arcanjo. A intensidade fora tão insondável, que caí sobre o chão de madeira, batendo minha cabeça sobre a mesa de canto e, com isso, derruindo a ânfora no chão. Vi seu quebrantar, estraçalhado; e a água vertendo nas curvas naturais da madeira. Algo naquela cena, em seus detalhes exíguos, despontava reminiscências próximas à minha consciência. 

 

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Texto publicado na 7ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de julho de 2024. → Ler edição completa

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Sara Melissa de Azevedo

Diga-me, apreciaste esta obra? Conta-me nos comentários abaixo ou escreva-me, será fascinante poder saber mais detalhes da tua apreciação. Eu criei esta obra com profundo e inestimável amor, portanto, obrigada por valorizá-la com tua leitura atenta e inestimável. Meu nome é Sara Melissa de Azevedo. Sou Escritora, Poetisa e Sonurista. Formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial. Sou a Anfitriã dos projetos literários Castelo Drácula e Lasciven. Autora dos livros “Sete Abismos” e “Sonetos Múrmuros”. SAIBA MAIS

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