Capítulo 13: Nada além da verdade — Rubi Áurea

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Sussurros de uma antífona elegia percorriam aquelas terras intricadas. E, por trás deles, um som denso, contínuo e tátil arrastava-se como a nota grave de um órgão profano — era a própria frequência do desespero, da solidão e da orfandade existencial. Uma salmodia vibrante de abandono, alojada sob a soturnía do medo persecutório, vibrava nas camadas hialinas do ar, no calor do mármore e nos lagos de lava escarlate. Sim, tão inextricável e abissal quanto estas lôbregas palavras que descrevem cada detalhe.

Reintegrei-me em corpo — ou no simulacro que me restava dele — envolvida por um fogo que fazia parte de minha tez e alma. Reintegrei-me ali, naquele vasto e montanhoso domínio, onde céus de nuvens negras em fugaz cinesia deslizavam, guiadas por um vento atroz e fastígio. E, além delas, ardia um firmamento escarlate, imóvel como um presságio. Eu via — e saberia que jamais poderia deixar de ver — um reino de edificações negras, cuja arquitetura parecia construída na linguagem do luto, à sombra de arbustos altos e secos, esqueletos de entidades vegetais. Ruínas de uma civilização obliterada pelo próprio peso da existência.

De essência aterradora, sim, entretanto, algo íntimo cingia-me, acolhendo minha desgraça. E o reino todo alcançava meus olhos absorvidos e fascinados. “Lindo...” — murmurei, talvez para mim mesma, talvez em silêncio. Logo notei meus pés descalços e meu corpo envolto a uma peça que esvoaçava pelo álgido ar que vinha dos céus; era estranha, parecia rasgada em retalhos, queimada, feita de um tecido fino e semitransparente. E para meu corpo olhei quando senti calor em meus pés; vi que o chão era mármore negro, cálido, com fissuras em um vermelho intenso — como uma pedra bruta proibida... que sangra.

Olhei para trás, portanto, buscando compreender o derredor... o que veio às minhas retinas, então, deixou-me estarrecida. Era um imenso palácio de mármore negro e rubi, uma inconcebível arquitetura... e inominável. Seus altos e colossais umbrais abertos poderiam ser-me um convite, entretanto, neles estava um ser sublime que me observava atento e imponente. Sei que minhas pupilas se contraíram ao enxergá-lo, pois quão fascinante o esplendor eterno da sua luz perfeita. Eu intuía... e, por isso, tão logo caí-me aos seus pés porque o que eu intuía conduzia meu ser... aquela criatura era nume, celestial, perfeita. Era uma divindade. Eu compreendia. Prostrei-me porque nunca vi tamanha beleza... nunca senti tamanho embevecimento.

— Levanta-te, pois que não tenho servos, tenho aliados. — ouvi. A voz daquela divindade era o universo ecoando em seu próprio abismo constituinte... eu já o havia ouvido antes... eu já conhecia o seu idioma. Obedeci-o prontamente e fitei a sua graça magnânima. Era mesmo de uma beleza surreal e continha grandiosas asas e vestia-se com vestes régias e negras, com detalhes em rubi, tal como o seu palácio. Era como um homem, entretanto, seu corpo era forte e decerto possuía mais de três metros de altura; além disso, eu intuía, mais uma vez, que não havia gênero em sua estrutura... ele era quem ele quisesse ser... quando ele quisesse ser...

Lussifferr... — sussurrei... reconheci...

— Tenho vários nomes, este é um deles. Seja bem-vinda ao meu reino. — ouvi. Eu sabia que estar ali era um privilégio de poucos...

— Não temas. — disse ele e convidou-me, com um gesto, a adentrar a sua residência sublime.

Caminhei sem pressa e vi, no interior do local, um lago que reluzia carmim e colunas de rubi que tinham, esculpidos em si, rostos de homens e mulheres de magnífica pulcritude. A deidade sentou-se em seu trono portentoso.

— Pergunto-me a razão pela qual há uma nutrúrnia fincada em teu torso... enraizada em teu coração... — senti-me enrubescer ao ouvi-lo. Lembrei-me de Seth. Ponderei em como eu poderia me explicar.

— Não me conte. Aprecio mistérios. — proferiu com um sorriso perverso e sombrio.

— Tu sabes o que és, Áurea Lihran? — meu nome em sua voz de matéria escura. Um deus sabe todos os nomes daqueles que encontram seu reino?

— Eu não sei se sei. — respondi, murmurando.

— Tu és um demônio. Um demônio que nunca caiu. Diferente de todos aqueles que residem em meu mármore... que raridade. — eu o sentia cada vez mais sombrio, suas palavras naquele idioma ancestral me deixavam turva e com um tipo de admiração que beirava o temor.

— Entretanto, ainda és humana e, para minha surpresa, vampira e animal mítico. — engoli minha saliva como se fosse espinhos. Algo me dizia que Lúcifer sabia muito mais de mim do que eu mesma.

— E como se não bastasse, senhorita Lihran, carregas o Olho do Oráculo como pingente e quatro sigilos pherhesistas repousam em teu pulso. — olhei para meus pulsos, revivi aquele momento tão perigoso.

— Portanto, posso convencer-me de que também és Magista e... vidente. Que fardo! — olhei para os lados, a paisagem nas paredes translúcidas era esplêndida; por fora, nada se via no interior do palácio; por dentro, tudo do exterior se via. Eu não sabia o que dizer, eu estava em êxtase.

— Fardo... — repeti como se internalizasse aquele termo.

— Há conhecimentos que somente uma criatura rara como tu pode alcançar, e é por isso que te proponho um pacto. — fitei seus olhos escarlates.

— Tenho más experiências com — hesitei — vínculos a entidades poderosas... — segredei, incerta de recusar algo de um ente tão superior. Lúcifer sorriu outra vez.

— Não sou uma entidade poderosa, Áurea. Sou um deus. — tremi ao ouvi-lo; um estranho frio espargiu e minha tez se arrepiara.

— Posso dar-te quase tudo o que quiseres, em absoluto; sem entrelinhas. Desde que me dê o que quero. É justo para todos os envolvidos.

— Podes trazer todas as minhas memórias à consciência? — instiguei, quase o interrompendo.

— Não posso. — surpreendi-me.

— Não sou capaz de quebrar o poder do livre-arbítrio. — senti-me confusa. — Tu queres manter tuas memórias ocultas, Áurea; teu querer inconsciente é maior do que o teu desejo racional. — tremi mais uma vez. Eu estava me sabotando? Pensei, silenciada.

— Entretanto, tenho algo de teu interesse... algo mais significativo... e tudo o que peço em troca é a tua devoção ao conhecimento que me é valioso... domine-o e traga-o para mim.

— Pherhesí... — intuí e murmurei. Lúcifer sorriu.

— Isso... agrada-me que tua intuição já esteja vinculada a mim, o teu deus.

— Não posso... não posso... quais serão as consequências? — meândrica, o questionei. Lembrei-me de Olga dizendo-me dos riscos daquela magia.

— Muitas. Entretanto, serão consequências diferentes daquelas que terás que arcar se não aceitares minha proposta. Tudo o que fazes traz frutos; a resultância emerge mesmo quando nos recusamos a existir.

— Não... não posso aceitar... — olhei para os umbrais e vi o inferno em sua imensidão. — Por causa da nutrúrnia eu... sou obrigada? Eu devo algo a ti? — entristeci-me.

— Não, criatura. Mas a consequência é a que vês. Estamos vinculados. Há um elo que te trará ao meu reino quando bem quiseres ou quando for do meu interesse. Os poderes demoníacos estão em tua posse; és capaz de compreender minha linguagem. És um anjo que nunca caiu, porém, está caído. E não há como retornar. — Lúcifer fitou meus olhos com precisão.

— Factum est! — conjurou. Um selo para a minha nova verdade. Um selo do meu espírito diante daquele deus..., mas, o que isso significava para além de sua significação?

Factum est!

Nada mais. E um silêncio perdurou enquanto minha mente estava em ebulição de pensamentos apavorantes. Mais um pacto? Com um ser bem mais poderoso? Uma falha, o livre-arbítrio, usado por mim para apartar-me do que fui? Aquela mulher que eu era precisava ser esquecida?

— Eu preciso crer? — questionei, ainda em torpor de meus pensamentos. Lúcifer não me respondeu de imediato.

— “Precisar” significa acender a faísca de um desejo sob argumentação tendenciosa. E “crer”, ah, esta sim... esta é a palavra... a mais irrelevante palavra. A crença é tão só uma mentira, afável mentira. Induz a razão pela veia da ignorância. Se almejas a verdade, nada além da verdade, não creia... beije os lábios da factualidade... lide com as consequências... e que a única calidez advenha do mármore sob teus pés e nunca do teu coração.

Lúcifer se levantou, caminhando ao redor, devagar.

— Mas... quão humana ainda és? Quão ávida estás pelo amor olvidado? Pela paixão proibida? Pela dor e pelo prazer de amar? Ah sim... eu sei... — meu imo ardia ao ouvi-lo.

— A humanidade ainda pulsa na tua carne, não é? Tu sentes o deleite... o vigor... a intensidade. Algo que apenas um humano pode sentir. — Ele continuava me cingindo com seus passos sorrateiros, como um lobo faminto. Parecia um pouco mais próximo, em tamanho, como um ser humano; metamorfoseava-se para que eu não sentisse estranheza, talvez; Lúcifer dominava, persuadia, hipnotizava.

— A fé é tão símil à excitação venérea... induz ao gozo precipitado ou ao tântrico estado perpétuo de realização afrodisia, em ambos os casos, é idealização projetada. Aceite a verdade... as coisas que são como são; e, então, faça do teu sentido aquilo que ele deve ser e não uma deformada efígie dos teus ideais.

Abracei-me com minhas mãos, como se me comprimisse em mim mesma.

— Tenho toda a eternidade para que aceites o pacto que ofereço. Pense, eu estarei sempre aqui... e eu não estarei sozinho...

Eu intuía algo, profundamente brumoso, na última frase de Lúcifer. Voltei a admirar o horizonte do inferno.

— O que me ofereces? — inquiri. Lúcifer sentara-se outra vez.

— Esta é a pergunta certa, e ela te será respondida no momento certo. — argumentou, e eu, devota à sua grandiosidade, apenas assenti. — Ouça bem, esta flor em teu peito, se retirada, levar-te-á para a Morte Rubra. Aquele que tentar contra suas pétalas, sorverá da tormenta; aquele que tentar contra as suas pétalas, será mortificado pela escuridão. As pétalas da nutrúrnia poderão ser arrancadas, entretanto, seu caule tem a força destas colunas lapidadas em carmiantte, e está enraizado, envolto a todas as tuas veias. Só poderá ser retirado, portanto, se tu fores dissecada. — intimidei-me sob assombro silente, quase plangi de súbito por tão somente imaginar tão horrífico fim.

— O que é a Morte Rubra? — indaguei, incerta de que saber fosse preciso. A deidade sorriu, apontando para as colunas lapidadas.

— Carmiantte é a fundamentação d’este reino; um mármore negro-carmesim, de dureza mais acentuada que o diamante vestal. Se lapidado, assemelha-se ao rubi, dado seu esplendor escarlate. — Lúcifer levantou-se, tocando os lábios de um pilar-estátua feminino. — Cada escultura vive suportando o peso de si mesma, senciente. Ou ainda, brutas, sob teus pés aquecidos pela lava vermelha. Onus aeternum. Tudo aqui é carmiantte, e carmiantte é feito de Morte, e é rubro porque sangra.

— Demônios sangram carmesim? — lembrei-me da seiva negra de Seth.

— Não, mas humanos sim. Por isso é rubinegro. Alguns virão para o inferno em razão de seus pecados; outros encontrarão a Morte Rubra por quebrarem o pacto que comigo fizeram. — compreendi, e antes que eu lhe pudesse questionar tanto mais, senti novamente meu corpo transfigurar-se em fogo cetrino, como papel queimando.

— O que...? Por que...? — senti-me confusa e ardente.

— Desejas retornar ao teu Castelo, e a intenção intuitiva do desejo se basta para que o fogo efetive o retorno. — eu queimava, e o medo outra vez tomou-me como um amante febril. — Assim será quando quiseres voltar para meu reino, ainda que não sejas capaz de ouvir o teu intuitivo desejo. — olhei para os olhos de Lúcifer. Ele estava incólume. Olhei para as estátuas de carmiantte; pareciam me observar. — Logo saberás fazê-lo racionalmente. — afirmou a deidade, proferindo o que não pude ouvir em seguida. Senti-me desmaterializar pouco depois de ser preenchida por uma estranha inquietude.

Então, eu estava de volta. As mesmas paredes de pedra, o mesmo silêncio e solidão. Envolvida pela escuridão que me pertencia, ainda tomada pela incerteza e instável verdade da minha existência. Entardecia. Nuvens em bege profundo se espalhavam nos céus simulados; ao derredor, folhagens em marrom-outono dançavam ao vento enfraquecido. Eu estava em casa, a vicissitude do lar ao qual eu pertencia era a ilusão perfeita do espaço-tempo, eu sentia. O inferno era mais real do que o Castelo Drácula — ou seria Castelo Nivïttiz?

Andando a esmo, sem esperanças a conduzirem meus passos, sem razões para direcionar meu comportamento. Toquei a algidez das pedras úmidas, senti o ar rarefeito do dia lá fora; visitei túmulos daqueles que jamais saberão sobre a Morte Rubra e que talvez estivessem, naquele instante, suportando o peso de si mesmos, sendo pilares lapidados do palácio de Lúcifer. Ou eram carmiantte bruto, debaixo dos pés dos residentes do reino que eu agora conhecia? Lembrei-me de Lúcifer e senti a liberdade do seu poder. “Não tenho servos, tenho aliados.” Lúcifer não era um pai, seus princípios de liberdade acima de tudo conduziam minha alma à verdade sombria: estamos sempre sós. Mas, por que estamos? Eu me perguntava nos caminhos irrelevantes daquele alcácer. Por que nos tornamos e agora somos?

“Divino é a criação, ou quem a criou? Fui criada por Lorrt na transmutação vampírica e, antes, criada por meus pais e, muito antes, por quem? Quem estivera antes da vida que agora, na vida, já não está? E se a liberdade é a verdade, junto à factualidade das imensidões subjetivas, então é tudo verdade, então é tudo mentira? Quão livre é estar livre, se há prisões que nos percorrem o corpo e alma, desde o próprio corpo até a própria alma? As indagações tão perenes não são prisões subjetivas tal como as respostas às indagações? Este Castelo, o que é? Por que é? E o que é sê-lo?”

Adentrei uma porta qualquer, irrisória para mim; mais uma dentre tantas. E continuava a pensar. Contudo, era um quarto com tapeçaria amarronzada e detalhes em dourado envelhecido. Vi um belíssimo leito com dossel de ouro translúcido e veludo marfim. Uma escrivaninha com papéis escritos, uma pena de ponta manchada de tinta negra e um cântaro com flores brancas. Isso foi tudo o que vi a princípio e, tão logo, aproximei-me curiosa. O local transmitia uma energia pacífica, embora os lumes de suas velas se ocultassem na minha escuridão. Um canto gregoriano evidenciou-se quando os umbrais foram fechados por minhas mãos, vinha do interior do quarto, especificamente uma estreita porta à esquerda, ornamentada por uma cruz dourada, antiga.

Abeirei-me em silêncio, no mais insano, conduzida pelo enlevo das vozes em coro, ecoando como se fossem donos da eternidade da existência. Lá dentro, espreitei pela porta: uma mulher ajoelhada sobre um pulvinar castanho, costurado com loura lã, tinha suas mãos unidas e seus olhos fechados em um semblante de mansuetude. Seus longos cabelos ondulados eram símeis às folhas secas do outono, pela cor; e em evidência, tão macios quanto o veludo marfim do leito outrora observado. Seu vestido mantinha o tom castanheiro, como se os carvalhos mais ancestrais habitassem o cômodo; tudo era madeira marrom, tudo era entalhado no ouro.

A mulher rezava. Eu sentia. E sua oração me perturbava. Não pelo som que sequer saía de seus lábios, mas pela fé que resplandecia dos poros de sua tez cor de cravo-da-índia. Reluzia sutil a sua tez, azeitada pela natureza própria que a fundamentava. E a cruz-pingente no colar que segurava em suas mãos enfurecera-me, como se fosse um insulto à minha vida. À sua frente, nada além de diversos vasos com flores secas, galhos de árvores, pinhas, velas, água corrente. Havia, também, argila em formas incompreensíveis e, também, um tipo estranho de aparelho por onde as vozes saíam naquele salmo em coro religioso.

Abri a porta um pouco mais, mas aquele fulgurar estranho, feito de pequenos pontos de ar pairando no ambiente, como se crepitasse devagar, constituídos de pura energia de fé, impediam-me de me aproximar. O som da porta despertara, em seguida, a concentração da mulher que, célere, olhara-me atenta. Toda a luz que afrontava minha existência se espargiu como poeira levantada pelo bater intenso de um tapete. A mulher sorriu para mim e perguntou-me se eu precisava de ajuda. Eu precisava? Não sei. Mas aliviada estava por não mais ouvir, ver e sentir aquele obscuro agravo, coberto por fervor espiritual, capaz de me sufocar à Morte Rubra.

— Não sei como encontrei este... altar... — proferi. Minha voz estava diferente, mais séria, mais persuasiva. Sequer parecia ser minha.

— Talvez o tenhas encontrado porque assim foi preciso. Deus pode tê-la direcionado a mim, por suas razões celestiais. Assim acredito, pois que nunca recebi outra visita que não de meu amado pai. — proferira com a voz mais mélea do que qualquer outra que já ouvi. Era como um anjo egrégio, embora compará-la a tal era-me estranho, pois que nunca vi anjo algum, não daqueles que decerto teriam a essência insigne que transpassava, dela a mim, através daquela voz e daquele rosto e de toda aquela luminosidade feita de fé e devoção.

— Devo duvidar, pois que qual deus poderia guiar um coração demoníaco como o meu? — indaguei sem buscar por uma resposta, ao menos não racionalmente.

— Acabo de vir do inferno, o deus que conheci não guia ações, não interfere em minha vida, apenas propõe pactos e vínculos essencialmente convenientes.

— Tenho certeza de que o deus que viste não é o verdadeiro Deus de Todas as Coisas. Tenho certeza, caríssima, que a tua vida é por este Deus Maior guiada e cuidada como deve ser para todas as criaturas debaixo do céu.

— E debaixo do céu carmesim do inferno profundo também?

— O Deus de todas as coisas é piedoso e bondoso, é capaz de tirar uma criatura de seu inferno sob a condição de rendição. Rejeite tudo o que não vier d’Ele e, então, terás a salvação eterna.

— E de quem me salvarei eternamente senão de mim? E se me sou sempre a me ser, como posso salvar-me de mim enquanto me sou? — a mulher fez silêncio.

— Feche teus olhos, dama. Feche-os e profira no teu silente coração amaldiçoado pelo inferno: “Deixe-me sentir-te, Deus, fala comigo, eu rogo!” e Ele falará contigo, se for preciso, se for o momento. — compreendi sob o véu do ceticismo e intensamente enjoada.

“Deixe-me... sentir-te... Deus...”, ponderei. O vazio nunca foi tão vazio quanto o tamanho do vazio que senti ao pensar em tal ridícula oração. “Fala comigo, eu rogo!”, insisti, sentindo vontade de gargalhar e chorar ao mesmo tempo.

— Não sei encenar como tu... não há Deus Maior que me ouça. E se fosse do meu feitio, Deus algum a ouvia agora e eu poderia sorver do teu sangue vestal e te levar mais perto de Deus... ceifando tua vida...

— Mas não o fará... por quê? — questionou mais calma do que previ diante minha insondável ameaça.

— Porque não quero... não tenho sede... não tenho razão... nem sentido.

— Deus me protege de todo o mal. Ele é capaz de fazer o mal desistir do mal, para cuidar de mim, eu sei.

— Um Deus seletivo... entendo... cuida de seus preferidos e renega os que dele mais precisam, pois que estes que não lhe estão sob os princípios, desviados de sua salvação eterna, não são, pois, os que mais deveriam ouvi-lo? Não são, pois, os que mais precisavam de apoio? Intriga-me que sejas tão devota a um Deus assim.

— E quem disse que Ele não está dedicado aos que não o adoram? Sei que o Deus Maior não rejeita ninguém. Apenas é preciso um pouco de sensibilidade para ouvi-lo, mas Ele sempre diz e sempre quer se fazer ouvido. Ele não é racional, Ele está acima da razão, e Ele não pode obrigar-te a ouvi-lo tal como o teu desejo de ouvi-lo não pode trazer-te a capacidade de o fazer.

Silenciei e olhei para a luz tenra que advinha da janela ao lado da escrivaninha; a luz crepuscular dourada tocava as pétalas das lívidas tulipas e difundia-se nos soltos papéis. Um porta-retrato protegia uma fotografia de Monm ao lado da mulher imersa em sua fé inabalável. Sorriam, profundamente felizes, como Monm não parecera ser capaz de fazer quando o conheci.

— Este é meu pai, Abdalla... — olhei para trás, sequer notei que havia andado alguns passos em direção à luz. Hesitei. — E eu sou Siehiffar Monm... ou apenas Sieh. — senti sua proximidade, e isso me desestabilizou.

Havia, de fato, poder em sua crença — um tipo de poder que não poderia coexistir com a daemoniss que eu era, que eu me tornara, que sempre seria rejeitada pelo Deus Maior. Caminhei para os umbrais principais da alcova sacrossanta e, sem olhar para trás, sem proferir uma única sílaba de adeus, fui embora.

Havia uma dor em mim, que não doía... e uma desesperança tão amarga, que não amargurava... havia uma verdade apenas, dentre tantas, a única que me conduzia diante da solidão eterna: Eu não pertencia àqueles que seriam salvos, e eu não era mais humana.

Rubi Áurea
Áurea Lihran escrevera suas terríficas e fascinantes vivências após despertar em um antigo castelo, o Castelo Drácula. Sem memória alguma de seu passado, ela buscou encontrar respostas e sentidos que guiassem a sua existência, mas, para isso, teve de fazer escolhas sombrias e ainda lidar com a sua estranha sede por sangue e o seu desconhecido poder. Este seu manuscrito foi deixado por ela, como volume único, na biblioteca do Castelo Drácula e, agora, por razões obscuras, ele está em suas mãos. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Sahra Melihssa

Poeta, Escritora e Sonurista, formada em Psicologia Fenomenológica Existencial e autora dos livros “Sonetos Múrmuros” e “Sete Abismos”. Sahra Melihssa é a Anfitriã do projeto Castelo Drácula e sua literatura é intensa, obscura, sensual e lírica. De estilo clássico, vocábulo ornamental e lapidado, beleza literária lânguida e de essência núrida, a poeta dedica-se à escrita há mais de 20 anos. N’alcova de seu erotismo, explora o frenesi da dor e do prazer, do amor e da melancolia; envolvendo seus leitores em um imersivo, e por vezes sombrio, deleite. No túmulo da sua literatura gótica, a autora entrelaça o terror, horror e mistério com a beleza mélea, o fantástico e o botânico, como em uma valsa mórbida… » leia mais
17ª Edição: Dívanno - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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