Imagem criada e editada por Sahra Melihssa para o Castelo Drácula

Onde estou? Qual o objetivo de tudo isso?

Pelo que estou lutando realmente?

Sinto no âmago do meu peito este chamado tão incinerante que me devora mas não consigo mais seguir esta luz, por quê? Ela me sufoca, me deixa confusa, sinto uma vontade enorme de chorar pois estou sozinha, estou completamente isolada e perdida...

Não sei mais para onde estou indo, não sei mais o que buscar. Quando eu finalmente consegui sair daquele limiar eu percebi: seria aquilo minha última luta? Minha última escapatória?

Ou o início de um umbral que devo mergulhar? Cansada de ser a sina de um povo esquecido, perecido pelo tempo nas cinzas tristes de uma memória distante e falsa que se derrete como lágrima que se desfaz no oceano, sinto-me com tanta dor e saudade do que não sei...

Não sei mais no que acreditar...

Talvez eu esteja tendo uma crise de fé, talvez eu esteja apenas cansada.

Arale não sabia dizer, com precisão, se aquele som de engrenagens gemendo vinha do corcel ou de sua própria alma. Era como se o tempo se estilhaçasse em cada passo metálico da criatura. O Limiar... ah, o Limiar. Um espaço sem lógica, onde até mesmo Deus parecia hesitar antes de entrar. Ali, tudo era sonho febril condensado, e a dúvida era a única verdade estável.

Ela apertava o cabo do machado de plasma como quem se apega a um último pensamento lúcido antes da loucura. O brilho da lâmina vibrava, emitindo um ruído agudo, quase um suspiro — um som que lembrava os delírios de um condenado prestes a ser esquecido pela História. Estava exausta, sim, mas também faminta de sentido, como um espírito que busca uma revelação em meio à miséria do caos.

No caminho, os gobelinus rugiam, grotescos, com suas bocas costuradas por fios de pecado e olhos onde habitavam pequenas constelações mortas. Arale os ignorava. Ela já conhecia aquele tipo de criatura: seres que viviam entre a dúvida e o desejo, entre o riso demoníaco e a oração abortada. Eram sombras que haviam esquecido como era ser inteiro. E ela... ela se recusava a se tornar uma sombra. Ainda não.

Ao longe, no cruzamento de duas montanhas que pareciam suspensas por vontade suicida, uma figura se projetava, como uma cicatriz no espaço: Allant Elirrahz, o cartógrafo. Seu semblante era um mapa da própria decadência do universo — olhos que já haviam testemunhado mais do que qualquer mortal deveria e dedos que tremiam com o peso dos caminhos esquecidos.

— O que buscas, viajante do abismo? — ele perguntou, sem mover os lábios, como se a própria paisagem tivesse falado.

Arale desmontou, sua armadura chiava em protesto. Ela não respondeu com palavras. Estendeu lentamente a mandíbula arrancada de um gobelinus, envolta em prata líquida — um símbolo. Um gesto. Um pacto.

Allant assentiu com um olhar que compreendia o desespero mudo das coisas que não se dizem. E então, do chão, ele arrancou um mapa. Mas este não era feito de papel, nem tecido, nem pedra. Era feito de lembranças — memórias fossilizadas dos que se perderam tentando entender o Limiar.

— Siga a trilha dos olhos enterrados. Lá encontrará o prisma-espelho. Mas cuidado... Citlalmiquiztli a observa. Ela julga os desequilibrados.

À essa altura, o vento começou a zumbir como um velho bêbado recitando maldições. E lá, no horizonte, a figura dela surgiu.

Citlalmiquiztli.

Não como inimiga. Não como aliada. Mas como juíza.

Seu semblante jovial se mantinha, mas seus olhos... seus olhos não perdoavam. Em cada passo, ela pisava em realidades desfeitas. Em cada gesto, o universo parecia suspenso por um fio de cabelo. Ela olhou para Arale como se olhasse para o próprio destino — não com piedade, mas com pesar.

— Procuras justiça... ou vingança? — murmurou, quase com ternura.

Arale não respondeu. Talvez porque não soubesse mais a diferença.

E assim, ambas se encararam:

Uma guerreira do plasma, ferida pela lucidez.

Uma guardiã do cosmos, ferida pelo equilíbrio.

O Limiar assistia.

O tempo chorava.

E o destino, como sempre, permanecia de olhos vendados.

O silêncio que se instaurou entre Arale e Citlalmiquiztli era tão profundo que parecia devorar o próprio som. Um silêncio denso, inquisidor, feito não de ausência, mas de peso — o peso do que não se pode ignorar. Arale sentiu o machado em sua mão vibrar. Não por ameaça. Mas por dúvida.

E foi então que Citlalmiquiztli se aproximou. Seus passos não tocavam o chão, mas feriam a realidade. Cada pegada que deixava exalava símbolos — runas astrais, fósseis de uma linguagem esquecida, que tremeluziam e se apagavam como lembranças de um sonho que morria ao nascer.

— Dizes que buscas sentido, filha do plasma. Mas que sentido existe num universo onde até as estrelas enlouquecem? — perguntou ela, com um sorriso que não era deboche, nem compaixão. Era o sorriso dos que já entenderam que até a luz cansa.

Arale ergueu os olhos. Seu semblante, endurecido pela desconfiança, carregava a lucidez de quem já perdera tudo, menos o desejo de compreender.

— Se há sentido, ele se esconde nos cacos. Nos espelhos quebrados. No espasmo final do que amamos antes de ser devorado pelo absurdo — respondeu. Sua voz soava como se tivesse vindo de outra era. Uma era em que ainda se rezava.

Citlalmiquiztli parou. Estendeu a mão. Um gesto simples. Humano.

— Então prova. Olha.

Arale hesitou. Mas afinal, o que é a hesitação senão a sombra da coragem? Aproximou-se. E viu.

Na palma da mão da guardiã, surgiu o Prisma-Espelho de Sangue de Wendigo.

Mas não refletia luz. Refletia passados negados.

Arale viu a si mesma — não como guerreira, mas como menina, numa estação de mundos abandonados. Sozinha. Viu o momento em que escolheu o plasma, não por heroísmo, mas para não sentir mais o frio do afeto extinto. Viu os rostos que deixou morrer para sobreviver. Viu o riso do primeiro amor, silenciado pela lógica da guerra.

E chorou.

Mas não com lágrimas. Chorou com tremores, com silêncio, com a forma como a respiração se recusava a seguir o ritmo do universo.

— Não se forja uma arma devastadora sem devastar o que te habita — disse Citlalmiquiztli, guardando o prisma como quem sela um destino.

Então, e só então, ela entregou o primeiro item.

— Vais seguir. Ainda há a engrenagem da criatura orgânica e a lamparina da maçã fantasma. Mas te aviso: o que encontras do lado de fora só revela o que se nega dentro.

Arale assentiu. O corcel chiou atrás dela, como se sentisse o peso da revelação.

Ela montou. Seguiu.

Mas agora… cada passo do corcel reverberava memórias que ela nunca quis lembrar.

E Citlalmiquiztli ficou, fitando o céu, como quem consulta um mapa feito de constelações doentias.

Porque Ela sabia: a verdadeira caçada nunca é por objetos.

É por redenção.

O Limiar — esse teatro do impossível — começava a pulsar como um útero cósmico, doente e grávido de delírios. Após deixar para trás o prisma, Arale adentrava uma nova região. O ar ali não se respirava — engolia-se. Pesado, viscoso, úmido como uma confissão não dita.

O corcel de fuligem estancou. Farejava. Sentia. Algo ancestral despertava no ventre da terra, como se o próprio inconsciente universal estivesse prestes a vomitar uma lembrança reprimida demais para ser ignorada.

À frente, uma clareira. No centro, um ser.

Não era bicho. Não era máquina. Era o casamento malsucedido de ambos. Tinha braços como raízes nervosas, olhos em constante mutação, e um torso onde uma engrenagem de osso e carne girava, cuspindo uma gosma que cantava em notas dissonantes. A criatura vivia em sofrimento — mas um sofrimento orgulhoso, como o de um tirano que se recusa a morrer.

E falava.

Não com palavras. Mas com visões.

Arale caiu de joelhos. Um colapso. Não físico, mas existencial.

Ela se viu como mero código — dados emocionais transmutados em circuito de decisão. O que chamava de “alma”, ali, era interpretado como algoritmo de defesa psíquica. Nada mais.

A criatura a olhava e mostrava:

Que não há essência.

Que o instinto reina.

Que tudo que nasce… é para devorar.

E então avançou.

O chão fendeu. As árvores-gritos se enroscaram nos céus.

Mas Arale... ruiu para dentro.

Foi em seu colapso interior que encontrou a fagulha.

Não uma verdade.

Mas uma negação da verdade da besta.

Porque se tudo é instinto, por que ainda hesitamos?

Se a alma é um erro de cálculo, por que ainda morremos por ideias?

Ela ergueu o machado de plasma. Mas não o lançou.

Ela o fincou no próprio peito.

O golpe não a matou. Despertou.

O plasma fez contato com sua memória mais pura — a lembrança de quando amou sem saber o que era o amor.

E isso... não estava na lógica da criatura.

A besta recuou. Urrou. Engasgou-se com o próprio código vital.

E ali, no meio da dor...

a engrenagem orgânica caiu.

Arale a recolheu com mãos trêmulas.

Tinha dentes. Tinha coração. Tinha peso.

Mas também tinha um ritmo.

E pela primeira vez, o universo parecia sussurrar esperança.

Ela montou no corcel, agora exausto.

Mas sabia: só faltava a lamparina da maçã fantasma.

E que no caminho, os mortos — os dela — a esperavam.

A noite caía no Limiar como uma sentença, não como um ciclo. Não havia lua, apenas um céu costurado com fios de saudade. Arale cavalgava com a engrenagem orgânica presa ao peito — pulsando ainda, como um coração transplantado que não esqueceu a vida anterior.

Agora, ela adentrava um bosque.

Não um bosque comum.

Um bosque de árvores que murmuram nomes esquecidos.

Cada folha era uma lembrança.

Cada galho, uma escolha abortada.

E o chão... feito de promessas não cumpridas.

Ela desmontava.

O corcel recuava. Não por medo. Mas por respeito.

Ali, tudo era memória que não quer ser lembrada.

Então a vê.

A Maçã Fantasma.

Ela paira no ar, envolta em névoa translúcida. Uma fruta feita de luz e cheiro — com o aroma exato do lar perdido, do colo da mãe morta, da infância em que ainda era possível rir sem carregar culpa.

Mas a maçã... não brilha sozinha.

Está acesa apenas por um fio de chama interior.

A lamparina que a sustenta é o que Arale busca.

Mas tocá-la requer um preço:

lembrar do que mais se tentou esquecer.

E o Limiar cobra sem piedade.

A presença surge.

Ela.

A própria Arale — mas criança.

Menina, suja, faminta, segurando um brinquedo que não existe mais.

— Você me deixou — diz a criança.

— Eu precisei sobreviver — responde Arale, a guerreira.

— Sobreviveu? Ou apenas esqueceu como era viver?

A lamparina oscila.

A maçã escurece.

Arale faz o impensável.

Ela se ajoelha.

Abraça a criança.

Não com culpa. Mas com ternura.

E diz:

— Eu senti tua falta.

Por um instante, o Limiar treme.

A luz retorna.

A lamparina se acende em definitivo.

Ela a segura. A chama é fria, mas intensa — uma iluminação que não cega, mas revela.

Mostra o que se é, o que se foi, e o que se poderia ter sido.

Agora, com os três itens em mãos —

Arale retorna.

Mas algo mudou.

Ela não é mais só guerreira.

Ela é testemunha.

De si.

Do universo.

Do abismo.

Var’Ghul a espera.

E com o códex umbra, uma arma será forjada.

Mas a pergunta permanece, cintilando como estrela morta:

Que tipo de arma pode carregar o peso de uma alma redimida?

Arale entrega seu machado e aguarda, meditando do lado de fora da torre. Meditou por sete luas e sete sóis. Durante a meditação, ela enxergou um pássaro espiritual chamado Xa´vir lhe solicitando que siga ao horizonte, além do limiar: lá do outro lado da floresta reside uma pequena aldeia que ela precisa seguir...

Arale então abre os olhos e pondera:

— Por que minha máquina de ossos não me forneceu um pergaminho sobre esta missão?

Valgur a clama.

Ao adentrar no salão, ela fica deslumbrada com o que vê.

Seu machado está pulsando com uma lâmina nova, com uma luz de plasma e um cabo de carvalho escuro totalmente restaurado. No centro da lâmina, onde reside um formato de coração, ali fora inserida uma esfera de energia e o prisma. Ao apertar a esfera, o machado se transforma em uma arma que rasga os véus entre os mundos...

Seu machado, o T'Zakrah — A Gume do espírito ancestral — agora também pode transmutar em uma ceifadora com balas.

Nesse instante, a máquina lhe fornece um pergaminho:

“O T’Zakrah, seu tomahawk xamânico, é seu legado ancestral e é forjado da madeira fossilizada do Ipê Fantasma, banhado em prata lunar e embutido com cristais oníricos recolhidos dos sonhos dos antigos. Seu fio é etéreo — corta não só carne, mas também memórias e maldições. No cabo, inscrições em língua indígena extinta dançam ao toque da luz, pulsando com o ritmo do tambor do mundo espiritual. Quando em repouso, murmura cantos de guerra de um tempo perdido...

Ao pressionar a prisma-esfera ou ser girado três vezes no ar e batido contra o solo, o T'Zakrah libera um urro ancestral, evocando o espírito de um Jaguaretê de silício.

O machado se desfaz em partículas de luz âmbar, que orbitam em espiral ao redor do braço do portador — como se ele vestisse o próprio espírito da floresta em guerra.

As partículas se condensam num corpo de uma espingarda alongada, com uma coronha feita de osso de Ent digitalizado e cano duplo pulsante, atravessado por veios de código xamânico que brilham em vermelho-azul, como uma profecia radioativa.

Nome das Munições:

"Bala de Sangue Solar"

Condensada do plasma vital de entidades espectrais derrotadas. Ao atingir o alvo, explode em uma chuva de luz rubra que queima a escuridão como sal em ferida profana.

"Projétil de Próton Verdejante"

Conjurado de partículas bioespirituais — um ataque quântico que atravessa dimensões, desmaterializando qualquer sombra interdimensional que tente escapar da justiça cósmica.

"Munhão T’ata"

Disparo ritualístico que emite um grito ancestral ao ser disparado, causando pânico em entidades das trevas e chamando os espíritos guardiões da floresta digital para cercar o campo de batalha.

Em sua função espiritual, o T’Zakrah não é apenas uma arma — é um ritual ambulante. Ele reconhece apenas aqueles que ouviram o chamado do silêncio entre os trovões. Serve para caçar criaturas do abismo, desfazer pactos de trevas e selar portais abissais com um único golpe ou disparo...”

O pergaminho se cristaliza, então Arale o guarda na bolsa.

— Minha sincera gratidão... — ela acena com a cabeça e então gira a espingarda no ar, encaixando-a em suas costas e partindo para a nova missão que lhe fora revelada em sonhos.

Quando enfim Arale atravessa aquele inóspito vazio surreal de névoa e ilusão, ela chega ao continente de Aurax, uma região gélida e fantasmagórica. Ela avista de longe uma clareira que serpenteia alaranjada, destacando-se naquela mórbida pintura de prata, e então avança em direção à chama de um lar...

Enfim sua máquina de escrever de ossos lhe sangrara um pergaminho.

— Até que enfim, meu bebê... — ela brinca.

O pergaminho dizia:

"Tribo de Kjaarnheim à frente. (Cuidado com os falsos profetas...)"

Então o pergaminho se desfez no ar como pólvora no oceano.

A neve caía como lâminas de vidro sobre o mundo, cortando o silêncio com um sussurro cruel. O céu era um véu de chumbo rasgado por vendavais ululantes, e a névoa engolira tudo exceto os próprios pensamentos de Arale. Ela avançava com o corpo envergado, os ombros pesados de gelo e propósito, em direção à esquecida e sagrada Kjaarnheim, a vila indígena onde os anciões da Névoa Cinzenta ainda recitavam os nomes perdidos das estrelas.

A trilha era quase inexistente, devorada por dunas gélidas em mutação. Cada passo afundava no branco traiçoeiro que escondia rachaduras e galhos congelados como armadilhas. O vento gritava em línguas antigas, tão antigas que talvez nem o tempo as compreendesse. Arale apenas cerrava os olhos e cuspia sangue, o gosto metálico aquecendo a garganta.

Um clarão pulsante estourava na altura da lua de sangue.

Distante. Os olhos queimando da brancura. Um halo translúcido pulsando entre os pinheiros mortos — como se o próprio mundo respirasse dor. Foi ali que eles surgiram. Três lupinos brancos, criaturas geneticamente corrompidas, forjadas em laboratórios obscuros e esquecidos por seus próprios criadores. Gigantescos, com músculos pulsando sob pelagem albina, os olhos vazios, negros, sem alma. Seres que não rosnavam, mas rangiam, como engrenagens orgânicas sedentas por carne. Arale rugia alto.

Arale se deteve. A mão fria buscou a coronha da T’Zakrah, sua espingarda espectral.

A madeira era negra e viva, cravejada com runas escarlates que pulsavam em resposta à presença dos monstros. Arale rapidamente transmutava as armas com maestria, rasgava a palma com a lâmina do machado e deixava o sangue escorrer e em seguida a alquimia.

As balas da T’Zakrah beberam da oferenda. A arma estremeceu em suas mãos.

O primeiro disparo soou como o uivo de um deus morrendo.

A bala de sangue atravessou o peito do primeiro lupino, explodindo sua espinha e lançando entranhas em espiral no ar. Um clarão púrpura iluminou a névoa com espectros famintos. O segundo veio por baixo, rápido demais. Arale girou o corpo, mas as garras rasgaram suas costas, abrindo um sorriso sangrento que fumegava no frio. Ela caiu de joelhos, cuspindo gelo, mas seus olhos brilhavam como brasas.

O machado veio em arco. Um golpe seco, preciso, arrancando a mandíbula do inimigo que ainda vivia tempo suficiente para uivar como um cão de guerra antes de cair.

O terceiro, o maior, investiu.

Ela ergueu o braço esquerdo — o braço cibernético — uma peça de guerra herdada do colapso dos sete xamãs. Dentes se cravaram no metal. Chamas de dor pulsaram em seus nervos. Mas o braço de aço girou com força brutal. Um estalo seco. O crânio do monstro foi esmagado como fruta podre.

Sangue branco e viscoso jorrou em seu rosto.

Ela tombou de lado, arfando. A neve ao redor tingia-se lentamente de vermelho. O céu parecia mais próximo agora, como um teto de ferro prestes a esmagar tudo. Mas ao longe, as primeiras tochas da vila Kjaarnheim tremeluziam entre os pinheiros.

Ela estava ferida. Mas viva.

Os espíritos antigos, enterrados sob a tundra, sussurravam seu nome. Arale, a sangue-da-névoa.

Caçadora da Aurora.

Portadora do Machado-espingarda. T’Zakrah.

A aldeia surgiu como uma miragem sólida no fim da tempestade.

Kjaarnheim — a Última Vigília dos Ventos, como sussurravam os cantores das planícies geladas. Erguida entre falésias cravejadas de gelo e pinheiros retorcidos, a tribo pulsava com um estranho fulgor âmbar, uma fusão ancestral entre tecnologia esquecida e rituais milenares. Tochas plasmáticas queimavam em torres totêmicas feitas de chifres de urso-do-gelo e antenas de relíquias antigas. As ocas não eram meras cabanas, mas cúpulas vivas, entrelaçadas por cipós bioluminescentes que reagiam ao humor dos habitantes — luzes mudando de cor conforme passavam, como se a vila em si tivesse olhos.

Arale cambaleou ao entrar, o manto rasgado, o sangue ainda quente colando suas costas à armadura térmica. Os habitantes interromperam seus afazeres. Nenhum som foi feito. Eles apenas a observaram, os olhos escondidos por máscaras tribais feitas de aço enferrujado, couro de wyren tundral e lentes óticas de precisão adaptadas como visores. Vestiam-se com camadas sobrepostas de peles e placas cerimoniais, cada traje diferente — indicando caçadores, artífices, cuidadores de bestas ou mestres dos circuitos.

Dos confins da praça principal, avançou Thrym Urr-Naal, o Xamã das Três Códices. Alto, encurvado como as árvores tortas da encosta, o velho trajava um manto feito de asas de corvos mecânicos e fios dourados extraídos de núcleos de IA ancestral. Em seu cajado, um motor de dronossauro pulsava como um coração aprisionado. O rosto era parcialmente coberto por um visor rachado que projetava símbolos vivos em sua testa — runas fluídas de uma linguagem que ninguém mais sabia decifrar.

— Tu sangras, viajante dos ecos. — sua voz era rouca como couro velho sendo costurado. — E o sangue é bom. Ele chama. Ele lembra. Ele desperta.

Arale tentou falar, mas sua garganta era uma fornalha gelada. Apenas assentiu, caindo de joelhos diante da chama da praça — um reator nuclear primitivo disfarçado de fogueira cerimonial. Crianças de olhos vivos e cachos revoltos aproximaram-se com cautela, oferecendo a ela peles secas, água infundida com folhas de synarhk e pequenos ossos talhados em forma de lebres e engrenagens — votos de cura.

De uma estrutura mais afastada, cujas paredes eram feitas de painéis solares resgatados e adornadas com presas de cervomáquinas, saiu Darrun Eksveil, o Profeta de Silício e Vapor. Um homem de cabelos acobreados, longos e embebidos em óleos purificados, olhos cobertos por uma viseira neural que reagia ao ambiente com microexpressões matemáticas. Seus dedos eram implantes refinados, capazes de desmontar e reconstruir um behemoth com os olhos vendados. O povo dizia que ele lia o futuro nas quedas de tensão elétrica do vento e ouvia a voz da Terra através dos tremores do código enterrado sob os glaciares.

— Ela é a do presságio. A que carrega o aço que sangra. A conjunção está próxima, Thrym. — disse Darrun, sua voz embalada por microvibrações vocálicas, como se falasse em múltiplas frequências ao mesmo tempo.

— O T’Zakrah respondeu. A Primeira Batalha foi travada. Três sangraram, um rugiu. — completou o xamã, traçando no ar um símbolo com a ponta incandescente do cajado.

A aldeia então cantou.

Uma melodia grave, ressoante, acompanhada por tambores que eram feitos de chassis de velhas torretas de guerra e cordas extraídas de nervos sintéticos de ursos mecânicos. Mulheres com tatuagens luminescentes dançavam com movimentos precisos e circulares, evocando algoritmos de caça. Velhos narradores recitavam em transe a história do Tempo Antes do Código, enquanto um garoto conduzia um rebanho de fenrirs biomecânicos — grandes cães-lobos cujos ossos eram reforçados com titânio e que latiam em pulsos binários.

Ali, homens e máquinas não coexistiam. Eram um só corpo. Uma só mitologia.

Arale, ferida, mas não vencida, olhou para os céus que agora começavam a se abrir, revelando auroras retorcidas dançando como serpentes elétricas. Um silêncio ancestral pousou sobre ela, como uma coroa invisível.

Sabia, em seu sangue ferido, que aquela vila era mais do que refúgio.

O prelúdio da próxima guerra.

Os tambores estavam apenas começando a bater.

Acordou envolta em peles fumegantes de calor antigo, o corpo nu entre camadas macias que ainda cheiravam a musgo, cinza e especiarias minerais. A respiração era lenta, pesada, marcada pelo perfume estranho que preenchia o abrigo — uma mistura de óleo de engrenagens queimadas e raízes aquecidas. A pele de Arale estava limpa, o sangue lavado, os ferimentos cobertos por unguentos negros e cintilantes. Sentia-se leve. Vulnerável. Quase… humana.

O abrigo era um domo de energia filtrada, com paredes respirantes que pulsavam ao ritmo da luz lá fora. Sentado próximo, com os olhos mergulhados em uma planilha etérea de código flutuante, estava Darrun Eksveil, o profeta, o maquinista, o decifrador do invisível.

Seus olhos artificiais projetavam runas sobre as pálpebras — mas naquele momento, eles a fitavam diretamente, como se tentassem decifrar algo mais profundo que algoritmos. Havia nela uma ferocidade suave, felina. E algo nele, sob a camada de lógica e silício, ansiava pelo toque daquela desconhecida que despertava com olhos dourados e peito marcado por cicatrizes antigas.

Darrun desviou o olhar. Rápido demais.

Mas Arale viu.

Sentiu.

O cheiro.

Não como uma humana.

Mas como uma predadora.

Havia feromônio no ar. Aquela excitação primal disfarçada de reverência. O embaraço rastejando sob o silêncio técnico do cientista. Ela sentiu o calor subir à nuca, não de vergonha, mas de alerta.

Vestiu-se com as vestes que lhe haviam deixado: um manto cerimonial de fibras sintéticas trançadas com escamas de dracomarcas, uma calça ajustada feita de couro técnico tribal e um colar de dentes antigos, ainda vibrando com energia residual. Saiu sem dizer uma palavra, guiada pelo instinto que pulsava como bússola ancestral.

Thrym Urr-Naal aguardava.

Diante de uma estrutura ciclópica, meio santuário, meio torre de observação, onde relíquias de tempos esquecidos giravam em órbitas suaves, suspensas por magnetismo primitivo, o xamã erguia o olhar para as constelações ocultas sob o dia. Quando Arale se aproximou, ele sorriu. Um sorriso antigo, orgulhoso e... maravilhado.

— Tu és o eco perdido. O fragmento que não esquecemos. — disse ele. Aproximou-se, tocando o colar em seu pescoço. — Teus ossos vibram com as canções de Gaya.

Ela franziu o cenho.

— Não compreendo.

— Todos aqui nascemos com cauda. Alguns com orelhas. Pelos. Mas isso se perdeu com o tempo, cruzamentos, colapsos. Apenas os mais antigos lembram. Tu és pura. És nossa origem. És… nossa irmã.

A mente de Arale oscilou como um pêndulo. Imagens cruzavam sua consciência: caçadas em florestas que não lembrava ter pisado, vozes em línguas que nunca aprendera, e o brilho de olhos dourados — iguais aos dela — ecoando no passado.

— Viestes de outro tempo, talvez outro plano. Mas o sangue é o mesmo. — disse o xamã. — Este mundo, este que chamamos Gaya, não era sempre assim. Os anciãos dizem que ele colidiu com um outro céu, um plano superior chamado Fractis. E da fúria dessa colisão nasceram os Deuses.

— Jafari. — murmurou Arale, como se o nome lhe fosse sussurrado de dentro.

Thrym assentiu. Seus olhos lacrimejaram.

— O Leão da Luz. Nosso ancestral. E seu primogênito: No’ahki, o Guerreiro da Raiz. Eles enfrentaram o Caos de Fractis. Venceram. Trouxeram ordem. E teu machado, T’Zakrah, foi a lâmina que No’ahki empunhou. És sua herdeira. És a que retorna.

Ela cambaleou. O mundo girou.

— Teu verdadeiro nome, criança do eco, é... — ele sussurrou com solenidade.

— Baskhiat Sual’Ra — filha do trovão e das estrelas errantes.

Naquela noite, em um círculo de fogo azulado, realizaram a Cerimônia da Prisma Tríade. Arale — não, Baskhiat Sual’Ra — bebeu do vinho das almas, uma infusão de seiva de árvores vivas, sangue de lobo-máquina e lágrimas de obsidiana líquida. O calor subiu por sua garganta, queimando seus sentidos.

Ela testemunhou com lágrima nos olhos.

Isis, a Senhora do Véu: Uma feição tão amorosa e amigável**,** olhos que escondiam galáxias, e mãos de cura e destruição.

Nix, a Deusa do Abismo Noturno: com cabelos de serpentes de luz e nua como a noite, pele de estrelas em colapso, a voz um lamento de todas as mães que perderam filhos para o vazio.

Anubis, o Guardião dos Fios da Morte: cabeça de chacal sideral, corpo coberto de engrenagens rúnicas, segurando uma balança onde as almas eram medidas em bytes de destino.

— Há algo que cresce sob tua terra, Ysmir. — disse Isis.

— Um mal antigo, sem nome, sem rosto. — sussurrou Nix.

— Mas tua alma será guiada. Pela guardiã perdida... — completou Anubis.

Na névoa daquele diálogo ela apareceu.

Citlalmiquiztli.

A Deusa-estrela.

Com olhos de quartzo negro e um corpo feito de constelações mortas. Ela caminhava entre as dimensões como bruma. Sua voz, suave e imortal:

— O caminho te aguarda além dos Picos do Gelo da Morte.

No subterrâneo de tua linhagem repousa a pirâmide cybercosmo.

Lá encontrarás aquele que despertou:

Quetzalcóatl. O Senhor das estrelas.

Ela viu — ou sonhou — o vale oculto no coração do México, uma cidade abandonada entre raízes metálicas, e um templo com portas abertas para as almas perdidas. Sentiu o frio da encosta, o cheiro da floresta desconhecida, e o sussurro do dever.

Observar os astros. Proteger o equilíbrio.

Decifrar o destino. Despertou com um sobressalto.

As chamas ainda ardiam. Na parede da caverna, desenhado com o sangue do vinho sagrado, o símbolo dos três deuses pulsava.

— Tenho tantas perguntas... — Arale arfou.

— És da casa Fay´ax. Sua mãe Lyra está conosco, mas, para este povo, você é a representação da linhagem de Sual’Ra, a escolhida de Citlalmiquiztli para ceifar Quetzalcóatl.

— Se eles têm fé em minha origem, devo honrar meus ancestrais e meus descendentes, pois a única coisa que conheço à prova de balas é a nossa fé...

Codex Sangria
Arale Fa’yax, de uma realidade cibernética, atravessa o tempo e encontra-se no Castelo Drácula. Em sua busca por vingança e por pergaminhos esquecidos, ela se depara com horrores proféticos através de sua máquina de escrever feita de ossos. Arale registra cada descoberta e cada revelação que a aproxima de sua verdade. Em meio a memórias fragmentadas e mistérios mórbidos, ela enfrenta confrontos épicos, determinada a vingar-se e a libertar-se, embora, talvez, sua condenação seja a única certeza. » Leia todos os capítulos.

Escrito por:
Marcos Mancini

Marcos Mancini é um escritor, artista e criador cujo trabalho transcende as fronteiras da literatura convencional, mergulhando nas profundezas da psique humana e explorando as complexidades da condição existencial. Sua obra reflete uma busca incessante por significado, através de uma escrita visceral que combina poesia, filosofia e uma rica variedade de estilos literários... » leia mais
17ª Edição: Dívanno - Revista Castelo Drácula
Esta obra foi publicada e registrada na 17ª Edição da Revista Castelo Drácula, datada de junho de 2025. Registrada na Câmara Brasileira do Livro, pela Editora Castelo Drácula. © Todos os direitos reservados. » Visite a Edição completa.

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