Perfeitos Estranhos IV – Faces
— Nauärah?
A palavra, o nome, simplesmente escorre pela minha boca, soando o mais natural e simples possível. Tenho certeza de que jamais a ouvi, embora ela tenha sido lançada para fora de mim. Bem ali, a uma fração de metro de mim, estava a mesmíssima dama que avistei antes de adentrar os umbrais do castelo. Tenho a certeza, que emerge de lugares inomináveis da minha alma, de que é ela. Cabelos fartos e escuros, o olhar decidido, forte e um tanto indecifrável. Seria tal donzela uma ilusão? Uma manifestação da crueldade e do desejo sádico do castelo? Ou seria outra vítima, atraída para cá, assim como eu?
Minhas mãos tremem. Meu maxilar tensiona.
A visão vacila e sinto a sombra me arrastando para os bastidores. O outro quer seu lugar, seu espaço sob a luz, embora seja, literalmente, o pior momento para tal besteira. Tento lutar contra as garras amarelas que me arrastam para a bruma. Minha mente titubeia por um segundo, que se faz suficiente para que eu tenha que apoiar em um móvel próximo.
Por alguns poucos segundos, que me parecem uma verdadeira eternidade, esforço-me para recobrar os sentidos. Balanço a cabeça na tentativa de retomar o bom senso e a normalidade.
— Peço desculpas pela exibição pífia de uma possível labirintite não tratada. Antes de me apresentar, preciso ter certeza de que você é real, mademoiselle. Não me interprete mal, mas este castelo já se mostrou cruel o bastante comigo.
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O medo que outrora eu sinto, começa a dar lugar à curiosidade. Como ele sabe o meu nome? Como? Que lugar é este que faz com que as pessoas se conectem como se uma magia as fizesse agir de maneira ágil e soubessem de tudo? Onde já se viu perguntar se sou real ou coisa da sua imaginação? Desculpa tola de homens aproveitadores. Crueldade é a dele de invadir o meu espaço dessa maneira, e não do Castelo.
Por outro lado, a sua voz é serena, embora seja masculina. “Mademoiselle”, ele profere, e uma aura de paz parece chegar em meu quarto. Mas ainda me sinto ameaçada. Não posso ser tão doce e pacífica com o estranho das matas. Foi por causa da minha antiga natureza dócil e pacífica que aconteceu comigo o que nunca deveria ter acontecido com uma moça.
Levanto-me bruscamente da cama e as minhas mãos logo encontram o arco e a flecha próximos. Armo todo o movimento com técnica e fluidez e direciono-me para ele, deixando no ar o som do preparo selvagem. As luzes estão apagadas e apenas um feixe de luz da lua ilumina o momento de tensão. Não consigo perguntar quem ele é. Só consigo vociferar de medo e irritação.
— Você vai sair do meu quarto agora! Ou a minha flecha vai adorar se sujar de sangue! A minha mira é mais eficiente do que o melhor atirador. E se der as costas sem olhar para trás, nem me encarar, lhe darei o direito de se explicar na antessala. O estranho cavalheiro escolhe. E então, decide se a “Mademoiselle” aqui é real ou não. — Digo de maneira irônica.
Olho tensa para ele, pelas frestas e sombras da escuridão, tentando não demonstrar o meu medo, e o que vejo é o mesmo: aquela figura das matas… é ele! Finjo, então, estar segura, embora a minha fragilidade seja evidente agora. Estou tremendo. Ele percebe. O cheiro dele é miseravelmente agradável e se funde com o meu, mas a sua presença tão calma me faz dar essa chance de ouvi-lo.
♤♡◇♧
Jamais presenciei um movimento tão ágil e impecável quanto aquele. Numa fração de segundo ela apanhou o arco e flecha e, com exemplar maestria, havia armado o disparo. Eu já havia atirado antes, e lembro da força que se fez necessária para entesar a corda e mantê-la daquela maneira. Muito além do que fui capaz de compreender, e acompanhar, me deparei com uma flecha apontada para mim, acompanhada de uma doce ameaça.
— Pelas barbas do Rei, mulher, abaixe isso! — Cubro os olhos com a mão esquerda, restando a direita para manter distância da dama armada. Sinto um medo, bem sólido, ao perceber a possibilidade de ser atingido. Àquela distância, a flecha poderia, facilmente, me ferir de forma letal. — Prometo não estar vendo mais nada. Darei meia volta… Mas não atire em mim!
Dou dois passos em direção à porta, a encontrando com a mão direita. Mantenho os olhos cobertos, embora esteja ciente de que minha jornada nesta terra possa se encerrar a qualquer momento. Fecho a porta e a aguardo no corredor, apartado daquela loucura.
Sou atingido pelo doce perfume que havia seguido a pouco. Sem dúvida alguma era o perfume dela. Penso, também, que deveria estar armado com algo. Se ela for hostil, não terei como me defender de um ataque. A existência de um arco e flecha indica a existência de outras armas, acredito. Procuro por objetos que possam ser usados para defesa, mas nada existe aqui além de quadros de gosto duvidoso e velas praticamente sem vida.
Massageio as têmporas com os dedos, buscando algum tipo de conforto, enquanto espero aquele espectro violento resolver se manifestar novamente.
♤♡◇♧
Quando o estranho sai do meu quarto, parto correndo para trancar a porta. Agora entendo, algo sombrio neste lugar me fez ficar sonolenta, que até esqueci-me da porta aberta e do meu perfume também. Que inútil, me condeno.
Respiro fundo, me desarmando e abaixando o arco e a flecha, os posicionando de volta ao chão. De tudo que me aconteceu aqui no castelo, isso foi o mais bizarro e doloroso. Esbarrar com uma face masculina próximo à minha cama me deixou pensando que todo aquele passado aconteceria comigo novamente.
Preciso sair para falar com ele? Não, não preciso, ainda assim, a força maior de um chamado esquisito me faz querer sair para apresentar-me e talvez fazer uma amizade. Se eu ficar tão reclusa desse jeito, ficarei o tempo todo sozinha, sem companhia. Esses homens que estou avistando, se amigos forem, podem até defender-me dos perigos também, apesar de eu saber bem fazer isso. Não. Não preciso deles. O último que eu confiei desgraçou a minha vida.
Paro de pensar demais, olho para a porta e me dirijo até lá para sair e falar com ele. Quando toco na maçaneta noto que ainda estou em vestes de dormir. Me assusto e a porta faz um barulho de abrir e fechar. Estou tão turbulenta que não me vesti adequadamente. Volto para dentro e troco a roupa. Visto muito bem a minha capa e cubro-me adequadamente para não transparecer nenhuma feminilidade que chame atenção, embora já tenha deixado isso escapar demais.
Me dirijo até a porta e abro, sem nenhum armamento. Sinto que não é necessário. Dou um passo à frente, com o coração batendo forte, e quando saio pela porta, o visualizo, como se estivesse me aguardando. Não posso ser tão hostil. Ele chamou o meu nome. Deve me conhecer. E se for um mensageiro? Penso inúmeras coisas enquanto me aproximo tão fielmente de uma figura masculina por aqui pela segunda vez. Ele sente minha presença, mas fica no mesmo lugar. Devo mesmo tê-lo assustado, mas é melhor assim. Olho para ele, ainda com a minha capa, e a minha voz tenta dizer algo lúcido.
— Eu... é... — Respiro fundo — Quem é você, o que faz na Vila Séttimor, para que adentrou neste castelo, como sabe o meu nome e por que entrou em meu quarto? Se apresente, diga a verdade e juro que não lhe farei mal. Vês? Estou desarmada, confiando totalmente em sua integridade.
O ambiente do castelo é assustadoramente escuro, ainda assim, consigo enxergá-lo bem entre a meia luz e alguma abóbada próxima à parede. Seu aroma permanece no ar, e agora o suspense da sinestesia que tem acontecido aqui e o mistério das nossas faces confusas estão mais próximos de serem revelados.
Alexandre Neri é escritor, além de ávido estudante sobre o ocultismo e seus mistérios. Após uma situação traumática, não registrada, passou a apresentar comportamentos atípicos e destoantes com sua personalidade. Os episódios se tornaram cada vez mais frequentes, o que fez Alexandre abandonar o tratamento que seguia…