Dança Verde — Presenças, Recordações e Descobertas

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Enquanto exploro um pouco os corredores do castelo, para esquecer os acontecimentos estranhos por aqui, sinto o frio do mármore sob meus pés descalços. É um lembrete constante de quão distante eu estou da minha aldeia natal, onde tudo é barro, e barro aquecido naturalmente. Os ecos de cada passo são como uma saudade em forma de som, me lembrando de tudo o que deixei para trás. Eu costumava percorrer caminhos e sentir o calor da fogueira; agora, tudo o que me cerca é o silêncio solene e as paredes pesadas e frias do castelo. Mas assim me faz bem, o silêncio, o mistério e presenças diferentes que começo a notar no recinto. 

No meio dessa vastidão sombria, uma melodia começa a flutuar pelo ar. É uma canção antiga, uma que me é familiar, pois me faz lembrar das batidas em atabaques e sons de flautas, e parece vir de algum lugar profundo e escondido do castelo ou, até mesmo, da minha ilusão mental. Imediatamente, uma onda de emoções toma conta de mim. É como se a música tivesse o poder de me transportar de volta à aldeia, de me fazer sentir novamente a alegria e a vivacidade dos dias passados com minha família e amigos tupis. Me lembro das matas, do verde e de toda a beleza da vegetação do antigo lugar. Por outro lado, um aroma estranho invade as minhas narinas, como se as matas ao redor estivessem quase apodrecendo e toda a vegetação estivesse morrendo. Séttimor e seus mistérios me fazem questionar a minha sanidade. 

Ignoro o aroma estranho e ainda consigo ouvir a melodia duvidosa... Faz anos que não danço..., mas deixando-me levar pela melodia, começo a construir os primeiros passos novamente. Cada movimento flui de maneira natural, como se a dança fosse uma extensão da música que preenche o ambiente. Como se fosse uma dança da terra, do sagrado feminino e da força que vem do solo. Meu corpo se move com a graça e a sensualidade que eu havia abandonado e só a familiaridade da canção poderia transmitir. Os meus cabelos longos e escuros também bailam ao redor da minha face e busto. Dançar era minha maneira de me reconectar com o que eu havia sido, e agora consigo trazer um pedaço da minha terra para dentro dessas paredes frias e distantes. 

Os movimentos são giratórios e sibilantes. E imersa no som que ouço, a minha intuição me avisa que eu posso estar sendo observada. “Em algum lugar, escondido nas sombras do castelo, um par de olhos te acompanha, cada passo, cada giro.” A voz de sempre me amedronta, porém me avisa. 

Por mais incrível que isso pareça, desta vez não fujo, pois percebo que pode ser coisa da minha frágil imaginação. Não é algo que eu noto, tão absorta como estou na dança, tão perdida em meus próprios sentimentos e memórias. Para mim, o mundo se resume à melodia e à liberdade que sinto enquanto danço e movimento de maneira ornamental o meu corpo, esse templo que é ele. 

Enquanto giro e movimento-me, completamente imersa em meu próprio pequeno ritual de saudade e celebração, não me importo se houver algum observador em silêncio. Até porque eu sou ótima com flechas e quem se atrever a me fazer mal, além do meu amuleto que me protege, a minha mira estará pronta, ardil. Penso, de maneira áspera, ainda que com a beleza do momento. Mas a música misteriosa em misto à sede de uma justiça que, para mim, ainda não está sendo feita, me entrego à fúria que me toma intensamente neste instante.  

Paro lentamente os movimentos, os encerrando, respirando fundo e com a pele suada. Os meus cabelos passeiam na minha face úmida. Já chega. Só mesmo uma dança para me deixar arfante em um castelo tão gélido. Lembro-me do baile de máscaras, e toda dança que bailei não foi tão enérgica a ponto de deixar-me com a pele a querer escorrer gotas de suor e a boca a deixar escapar leves sussurros de cansaço.  

Apoio-me na balaustrada, levando a cabeça para trás e visualizando o teto em filigranas ornamentais. Uma simples dança mexeu comigo. Não consigo mais ser a mesma Nauärah... Me odeio por ter dançado! Mas, por um momento, é como eu me sentisse em casa de novo, mesmo que apenas em espírito e em movimento, e é isso que realmente importa. Foi bom relembrar, mas o meu autojulgamento me cobra lucidez e rebeldia novamente. Mas rebeldia contra quem? Talvez contra mim mesma, com a paz que estou perdendo de tanto pensar e refletir no passado, mas algo a mais me faz sorrir: ouço, ao longe o som de um besouro, que parece sobrevoar ao redor da minha cabeça, mas ainda não consigo visualizá-lo bem. No entanto, na direção que eu olho, há uma espécie de porta, ela tem tons esverdeados e dourados. Uma linda combinação de tons de cores que parece dar passagem para algo mais secreto. 

Agora eu sinto a necessidade de seguir livre e desbravar sem medos. Não estou armada agora e nem é necessário. Do jeito que já comecei a me sentir mais desprendida neste lugar, o meu armamento vai ficar por um bom tempo guardado no quarto onde estou hospedada, espero eu.  

Ao me aproximar um pouco mais da entrada misteriosa, os meus olhos contemplam algo bonito e muito familiar: Borboletas ao redor da porta envelhecida, como se elas fossem as guardiãs de um lugar escondido atrás desta passagem. O grupo de borboletas verdes emergiu em um voo silencioso e suas asas batem suavemente ao redor do ar pesado. O meu espírito de aventureira se manifesta, e parece reviver em meio a angústia que me tomara, por ora, então, adentro a passagem, lentamente. Eu dou um passo hesitante, atravessando o arco sombrio, sentindo o cheiro úmido de mofo e terra antiga. 

O lugar é envolto em trevas, apenas iluminado por feixes tênues de luz que se filtram através de rachaduras no teto e algumas janelas altas, de vidro arredondando e madeira, revelando uma vasta biblioteca antiga. Prateleiras de madeira carcomida se erguem até o alto, abarrotadas de livros encadernados em couro, cujas lombadas desbotadas trazem títulos quase ilegíveis. Todos os livros estão empoeirados e as suas páginas, envelhecidas, amareladas e cheias de musgos verdoengos. Ainda assim, as suas letras são possíveis de serem interpretadas e estão escritos em um idioma que parece ser um idioma específico Settimôro

Plantas mortas pendem os cantos das estantes, seus galhos retorcidos e secos dão ao ambiente uma aparência de abandono. Apesar do cenário decadente, algo está fora de lugar. Há sinais de recente movimento. Alguns dos livros estão espalhados pelo chão, e um conjunto de velas apagadas repousa sobre uma mesa no centro da biblioteca esverdeada, como se alguém tivesse passado por aqui, vasculhando em busca de algo. O pó no chão está perturbado, deixando rastros leves, mas a presença que os deixou já havia partido. O silêncio pesado é quebrado apenas pelo suave roçar das asas das borboletas que ainda flutuavam ao redor, como se aguardassem que um segredo há muito perdido fosse desvelado. 

O meu coração bate rápido. Por um momento, me sinto próxima à magia da terra. É aqui mesmo que eu vou ficar! Sorrio, e a angústia de sempre parece dar lugar às descobertas e aventuras que me presenteiam a cada dia. Quem havia estado aqui? E o que procurava? Seria um morador ou moradora do castelo? Eu avanço lentamente, explorando mais o recinto misterioso e com cheiro de verde-morto. Então, era daqui que senti o odor e, certamente, foi daqui que veio sons de besouros... 

Os meus passos ecoam baixinho no vazio da grandiosa biblioteca, sentindo que cada objeto neste lugar conta uma história não contada, tem vida própria, energia e magia. E para confirmar a minha percepção sobre esta antiga biblioteca vegetal, ouço sons de gargalhadas infantis, como se crianças brincassem de se esconder comigo e estivessem me vendo escondidas atrás de alguma estante. Não... a minha imaginação é fértil demais. Com toda certeza eu estou flutuando em possibilidades inconcebíveis.  

Ignoro os sons e rodopio no ambiente, relembrando a dança feita há pouco pelo meu corpo, fazendo subir uma poeira que me faz tossir por alguns longos segundos. O eco da minha tosse parece ser perpétuo e quase imagino que alguém irá surgir do outro lado do ambiente. Ou mais, devo ter despertado alguma fera. Um certo medo me toma superficialmente, mas sinto que devo vir mais vezes aqui e explorar este vão misterioso, cujo qual senti grandiosa identificação.  

Talvez isso aqui precise de uma bela arrumação ou uma faxina. Talvez eu mesma possa fazer isso, arriscando a possibilidade de os Settimôros residentes neste lugar apreciarem ou não. Mas está tão vívido, embora morto, tão real e único... Talvez eu deva escrever notas sentadas nesta escrivaninha velha, em meio aos livros, musgos, insetos, gotas misteriosas que pingam de um alto qualquer e vozes do além, neste cenário tão propício...  

Paro de pensar demais e resolvo deixar o lugar, com dificuldade. As borboletas verdosas me acompanham até a saída e a porta se fecha sozinha, fazendo um som de madeira velha rangendo lentamente. Preciso respirar e voltar ao quarto. O ar daquele ambiente é quase maléfico. A dança, talvez, tenha me deixado delirante e cansada para poder explorar isto aqui agora e assimilar a aura de mistério. É hora de voltar ao quarto, me vestir de maneira apropriada para explorar uma antiga biblioteca e retornar à minha nova jornada neste recinto chamado Castelo Drácula. 

Texto publicado na 9ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de setembro de 2024. → Ler edição completa

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Glícia Nathállia Campos

Nascida em um outono, na capital da Bahia, cresci em uma família que me proporcionou muito incentivo ao estudo e à cultura de qualidade. É por isso que sou uma pessoa que ama a leitura, o conhecimento, a escrita e outras áreas artísticas. Minha paixão pela arte faz aprofundar-me nela. Enfim, sou alguém com uma sensibilidade aflorada; aprendi a lidar com situações com muita humanidade, senso e responsabilidade. Sou livre de convenções e de preconceitos.

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