Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Pela primeira vez, em muitos dias, resolvi caminhar pelo ambiente exterior do castelo. Estranhamente animado, de alguma forma seguro após me deter na leitura e refletir sobre os escritos que chegam à minha mão (oriundos de quem me informa, involuntariamente, acerca do ambiente lá fora), me fiz levantar e partir desabalado pelas escadas do recinto.  

Também penso que não tenho muito com o que me preocupar. De acordo com minhas próprias conclusões — e já tendo passado por experiências suprafantásticas aqui —, o simples fato de ser recebido de portas abertas, e sendo dispostas para mim toda sorte de atmosfera e meios para dar vazão ao meu estro criador, devo interpretar como convites para uma venturosa exploração… 

Sobre aquele ainda marcante episódio fantasmagórico, em que me vi envolto nos braços de uma figura quase espectral, devo assumir que não me percebo mais completamente refém de algum sintoma… Pelo contrário, passado um longo período desde aquele ocorrido, parece até que fui vítima de algum delírio, alguma febre suscitada por demais imaginar o que se passa por aqui. É como se tivesse sonhado: ainda com memórias do acontecido, mas com dificuldades para expressar o fato… Se aquela mulher foi ou não, de fato, uma criação da minha mente, só me resta esperar… 

Agora, o que me chamou bastante atenção durante essa minha fuga do lugar-comum, e que não posso negar que tenha seu pé na realidade, foi aquele capcioso silêncio… Melhor dizendo (para mais objetivamente me referir ao testemunho e não enganar meus próprios sentidos), notei uma quietude não observada antes, ao passar em frente a algumas salas cujos ocupantes eu já havia visto. Estranhei, pois considerava ali, atrás daquelas portas, a razão de tantos poemas, contos e outras criações que brotam e dão vida a esse castelo. Passando diante daqueles cômodos (que certamente serviam à intimidade dessas mentes criadoras), logo compreendi suas ausências, um vazio preenchido, agora, unicamente por suas obras, simbolicamente deixadas como lembranças de sua visita aqui… 

Ameritt… Esse o nome daquela simpática senhora. Descendo as escadas do castelo, contornando o jardim que, da minha janela, eu sempre perscrutava com certo receio, apreensivo de ver algo inaudito, topei com ela. De costas para a parede, diante do que parecia alguma porta de acesso para algum lugar, tinha em suas mãos um besouro…  

Estranho amigo. Vendo-me prender o olhar nela, pareceu proposital seu gesto de esticar os braços e fazer aquele inseto ir e vir, como se fosse domesticado. Achando-me talvez interessado em sua peça, ofereceu-me as mãos, algo que fiz naturalmente — por certo que depois de considerá-la alguém sem suspeitas. 

Pois Ameritt, até então uma quieta senhora, eu já havia visto em outras ocasiões. Nas minhas andanças pelos corredores; saindo do quarto e indo em direção à sala principal; nas visitas à biblioteca, onde muitos dos textos são deixados… Via sempre a presença dela, aqui e ali fazendo um serviço de caseira, como o de alguém responsável pela organização do castelo — que, devo confessar, está sempre impecável, limpo e benquisto para qualquer dos sentidos. 

Ainda que “deslizando” por ambientes pouco ou mais escuros, sua sombra nunca foi a de alguém devidamente ameaçadora, mas a de uma mulher reservada, que, desde minha chegada aqui, já tinha por potencial relação. 

Aquele momento em que deixei seu besourinho subir em meus braços, começando a comichar e dar a sensação de algo risível, pareceu-me então uma prova de minhas suspeitas. Seu sorriso aberto, a luz alegre emanando de seus belos olhos — um anúncio de exuberante jovialidade, ainda existente —, aquele cruzar de braços como de quem convida para uma conversação… e então meu nome, saído de sua boca: 

Wallacebesin… 

Minha surpresa com aquelas palavras (de onde ela sabia meu nome, com tanta segurança?) não foi maior do que a agradável sensação de parecer chamado de benzinho, vocativo tão macio e saudoso de minha terra…  

Trocadas impressões, palpites do clima, gostos pessoais de cada um, logo nos descobrimos partilhar do amor natural, essa espécie de apreço pela fugacidade sensível da vida, a adoração das coisas inapreensíveis pelo tempo. Nossa conversa, como a de gente há muito conhecida, sem se preocupar com passado ou futuro, receios ou intenções, tomou parte tamanha daquela minha fuga, que mal percebia ter escurecido o céu ao meu redor. Do recanto em que nos via, apenas a parede se destacava, já iluminada pela lua sempre imperiosa da paisagem… 

Ensaiando uma despedida, ao tocar gentilmente nas mãos de minha companheira de assunto, fui surpreendido por seu convite: queria saber se não aceitava uma refeição em suas dependências — escondida por aquela porta, atrás de sua forma esguia e acolhedora… 

Sem querer parecer desconfiado, preferindo manter as impressões de alguém realmente admirado por descobrir uma parceira de conversa e, por que não, amiga, disse-lhe que ficava para uma próxima, tendo agora de me recolher para, sob um pequeno impulso, tentar terminar de escrever uma composição… 

Assim, então, foi passado esse meu pequeno deslocamento: curto em extensão, enorme de surpresa. O “até mais” dito por mim para Ameritt, estou convicto, foi recebido como promessa. Tenho agora a esperança de, por meio dessa gentil senhora, descobrir as minúcias desse lugar, mesmo suas origens… Da próxima vez, caso a encontre, não recusarei igual convite. Se temo algo, apenas é a existência de não somente besouros entre seus amigos animais… 

O carácter nada intimidador, aprazível daquela senhora, mostra-me também o aspecto cada vez mais determinante desse castelo, a confirmação de que tudo tende a ser, quase sempre, bastante diferente do imaginado — devendo ser, para tal descobrimento, explorado… 

Texto publicado na 9ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de setembro de 2024. → Ler edição completa

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