Apertum Loculum
O homem ao qual me assemelhava não pronunciava sequer uma palavra, e também senti que ele não era dali; não me parecia que dividíamos a mesma pátria, não parecia ser um lusitano, mas tampouco eu me assemelhava ao povo da região em que nasci. Meus cabelos eram da cor do cobre e minha pele não curtia o sol, assim como acontecia com a maioria da população local. Sempre me queixava, no verão, da vermelhidão que surgia nas maçãs do meu rosto. Essas queixas foram sumindo com o passar do tempo, já que eu não me expunha mais ao sol com a mesma frequência; minha pele se assemelhava à branquitude arroxeada da pele dos cadáveres. Naquela ocasião, o homem continuava a me ordenar em pensamento, e eu não tinha como recusar suas ordens; tinha que segui-lo. Ao anoitecer, nos retiramos da tumba do cemitério e caminhamos até o Porto da Figueira da Foz, numa velocidade que nenhum mero mortal seria capaz de acompanhar.
Chegando à localidade, percebi que um grande navio estava atracado no cais. Era um navio diferenciado, nunca havia visto nada semelhante em toda a minha vida; o navio era de uma cor que alternava entre o cinza chumbo e o verde musgo, e nele havia um nome estampado em branco: “Ilona”. O homem de cabelos negros me ordenou que entrasse no navio, e, mesmo temendo ser barrado por estar maltrapilho, como um pedinte da região, nada aconteceu quando cruzei do cais para a entrada do navio. Reparei que os marujos que guardavam o navio eram tão esquisitos quanto eu e a figura do homem de cabelos escuros. No navio, sequer nos comunicávamos verbalmente; as ordens chegavam por pensamentos. No entanto, eu não conseguia decifrar o que era dito pelo homem misterioso e pelos marujos, só pude acompanhar o aceno de cabeça que faziam e a liberação dos espaços que o homem me guiava a acessar junto com ele.
Cheguei a um compartimento luxuoso do navio, que ficava no segundo andar. O local era grande, forrado em madeira e veludo, e, dentro dessa espécie de quarto, havia três caixões. A maioria dos caixões era ornada com plantas, roseiras vermelhas com muitos espinhos. O homem misterioso pronunciou duas palavras em um idioma antigo, que pelo pouco conhecimento linguístico que eu tinha, me pareceu latim. Então, os três caixões se abriram prontamente após o homem pronunciar as palavras mágicas, e ele ordenou, em pensamento, que eu escolhesse um dos três caixões para passar o turno diurno. Segui minha intuição e me deitei no caixão que estava no meio do quarto.
Após me deitar, quase que imediatamente, uma poça de terra começou a me cobrir. Tentei fugir, receoso de que aquilo me soterrasse, porém, o homem invadiu minha mente e me intuiu de que aquilo era para o meu próprio bem. Caí em sono profundo logo após a terra me cobrir, deixando apenas meu rosto exposto. Na noite seguinte, despertei renovado, como se tivesse nascido de novo. O homem me convidou mentalmente para um banquete que aconteceria em outro cômodo do navio. Ao chegar ao que imaginei ser uma espécie de sala de jantar, também ornada com veludo vermelho e madeira, percebi que havia panelas e utensílios de jantar nos aguardando. Por um momento, pensei que, se servissem comida comum, eu não teria fome. Quase como se adivinhasse meus pensamentos, um dos serviçais do navio começou a destampar as panelas, e observei que nelas havia uma espécie de caldos avermelhados que banhavam partes que pareciam ser membros de corpos humanos. Apenas em uma única panela, que parecia ser de barro, serviam um caldo verde que parecia banhar todo tipo de espécie de insetos.
Conosco à mesa estavam o homem de cabelos escuros, um dos marujos, que parecia ser o capitão do navio, e outro marujo de aparência semelhante. Ninguém conversava enquanto éramos servidos por um dos serviçais. Eu e o homem misterioso nos alimentávamos do caldo avermelhado e dos membros humanos, enquanto os outros dois marujos se serviam do caldo verde da panela de barro, recheado de variados insetos. Após a refeição, tentei ir a outras partes do navio para apreciar a vista, mas não por muito tempo. Fui interrompido em meu livre-arbítrio pelas ordens que meu Senhor infiltrava em minha mente, inclusive ordenando-me que me alimentasse novamente na sala de jantar. Ele também me intuiu a conhecer uma espécie de biblioteca e a ler alguns tomos de pergaminhos que me ensinavam a língua que eu ouvira quando ele pronunciou as palavras para abrir meu caixão, possivelmente o latim. Ao dormir, o homem de cabelos negros me acompanhou até o quarto onde estava o caixão em que eu dormira na noite anterior e, desta vez, calmamente, ele pronunciou para que eu entendesse: "Apertum Loculum!". Imediatamente, o caixão do meio se abriu, e eu repeti o mesmo ritual de adormecer com a terra me cobrindo, como no dia anterior.
Por sete dias (ou sete noites), minha rotina seguiu quase a mesma: duas boas refeições do caldo avermelhado (que agora eu já tinha mais certeza ser composto de sangue humano e de partes de membros de corpos humanos), ler tomos de pergaminhos em línguas diversas, como o latim e o grego, e abrir autonomamente o caixão que escolhi como cama, o qual me revitalizava a cada alvorecer. Na noite do sétimo dia, atracamos em uma espécie de cais, porém de porte reduzido em comparação ao de Porto da Figueira da Foz. Imaginei estar em um local bem distante de Portugal, mas não soube mensurar o quão longe, apenas pelos dias que se passaram. O homem misterioso me intuíra durante toda a viagem a desenvolver novas habilidades, uma delas sendo o conhecimento de novos idiomas. No entanto, ele nunca explicava por que eu precisaria dessas habilidades (exceto a função de abrir meu próprio caixão para garantir meu merecido descanso diário). Ao chegarmos, deparei-me com uma placa que indicava o nome “Constanta”. Apesar de todo o aprendizado em novas línguas, aquele nome não fazia sentido para mim.
Após desembarcarmos, quatro dos serviçais do navio trouxeram o que identifiquei como o caixão que eu havia escolhido para dormir, além de outro, e os despacharam na carruagem que nos aguardava. Na carruagem, um homem de aparência muito semelhante à dos marujos e serviçais do navio já nos esperava. O homem de cabelos negros mais uma vez verbalizou: “Apertum Loculum!”, e a porta da carruagem se abriu sozinha. Adentramos a carruagem e seguimos pela estrada afora por volta de quatro horas, até que paramos próximo ao que eu havia lido como “Pitești”. Paramos em frente a um grande, sombrio e pomposo castelo.
Rodeamos o castelo, e o homem de cabelos negros decidiu que entraríamos pelos fundos. Lá havia um portão de ouro envelhecido, ornado pela mesma roseira vermelha com espinhos que adornava o meu caixão e o do homem misterioso. O portão parecia ser feito do mesmo tipo de madeira, e sobre ele pousavam borboletas de marfim. Embora o portão parecesse belo, também emanava um ar sombrio, que combinava com a atmosfera do castelo. Era iluminado apenas por um lampião. Ao adentrar o portão, por ordem mental do meu Senhor, após ele pronunciar a expressão "Apertum Loculum!" e o portão se abrir sozinho, percebi que havia várias entradas que pareciam dar acesso a calabouços. Seguimos por um caminho reto e entramos na última entrada.
O homem me deixou em um local que parecia ser uma grande cozinha. Após alguns minutos, ele desapareceu, mas não me ordenou nada, e eu me senti à vontade naquele ambiente solitário.
Minha curiosidade se aguçou ao observar que, ao mesmo tempo que o local parecia uma cozinha, também lembrava um laboratório exótico. Havia ali panelas, artefatos de cozinha, tubos de ensaio, uma tabela na parede descrevendo várias espécies de insetos — muitos deles besouros e afins —, além de muitas ervas penduradas. Logo depois, surgiu pela entrada uma mulher que parecia ser uma anciã, com vestes pretas e vermelhas e um castiçal na mão, para iluminar melhor o ambiente, visto que havia apenas dois castiçais no espaço. Dada a grandeza do local, eles não eram suficientes para iluminá-lo devidamente, caso ela fosse a pessoa designada a trabalhar ali.
De todo o trajeto, do cemitério em Coimbra até ali, Ameritt foi a única pessoa com quem dialoguei. Não entendia por que o homem e seus serviçais não faziam contato verbal, mas com Ameritt foi diferente. Ela logo entrou na cozinha, se apresentou e perguntou como eu me chamava. Ao me apresentar, ela me apelidou, chamando-me de "Filipe-besin". Além do diálogo que me faltava, o senso de humor, que também já não me restava, veio à tona naquele momento, e imediatamente um sorriso surgiu no meu rosto ao ouvir a forma como a anciã pronunciava "Filipe-besin".
Em uma rápida conversa, ela me explicou que sua função ali era preparar o alimento de todos os hóspedes e serviçais do castelo. No entanto, assim como no navio, notei que os hóspedes, assim como eu e o homem misterioso, se alimentavam do caldo avermelhado e de membros de corpos humanos. De fato, em um dos calabouços havia uma espécie de câmara frigorífica onde muitos corpos mortais congelados eram armazenados, e Ameritt tinha acesso a esse local.
Ao longo dos dias, o homem de cabelos negros me ordenou que eu deveria ajudar Ameritt naquele local a preparar o alimento e, além disso, deveria fornecer um pouco do meu próprio sangue à anciã todos os dias, para que ela pudesse misturá-lo ao caldo esverdeado preparado com os variados besouros. E assim seguimos por dias incontáveis. Ameritt também me levou a uma espécie de biblioteca onde guardava os livros que forneciam parte do seu conhecimento para o preparo de comida, de algumas medicações, chás variados, entre outras poções mágicas. Ela também me disse que não era exatamente como eu havia me tornado, mas que todos ali estavam unidos por “sangue”, e que já estava em idade avançada, sem saber até quando conseguiria servir ao nosso Senhor, o homem misterioso de cabelos negros. Por isso, ela precisava passar seus conhecimentos adiante, tendo em vista que garantir o preparo do alimento dos que viviam no castelo era, de fato, uma das coisas mais importantes para todos ali.
E assim segui com uma nova função e aprendizado junto de minha estimada Ameritt, que tanto me ensinou.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…