Diário de Anton S. Miahi VI
De Narcís Nestor
(Telegrama para “O Caçador”)
Atenção: Ivan Molchanov
Castelo de Lúgubre, Data: 11, de julho de 1871
Prezado Ivan,
Sua presença é inegociável no castelo dentro de um mês. Um convidado do conde poderá representar um problema significativo. É vital estar aqui para discutirmos assuntos de extrema urgência.
Aguardo sua confirmação imediata.
Atenciosamente,
Narcís Nestor
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De Ivan Molchanov
(Telegrama para Narscis Nestor)
Oldemburgo, 03 de agosto de 1871
Atenção: Narcís Nestor
Recebi seu telegrama.
Comparecerei ao castelo, não se preocupe. Estou no meio de uma caçada no norte da Alemanha em nome dos Romanov, mas assim que acabar, partirei direto para aí.
Prepare-se. Estou chegando o mais breve que puder.
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Ivan Molchanov
De Dr. Christopher V. Walker II
(Carta para Anton)
De: Dr. Christopher V. Walker
Paris, 17 de agosto de 1871
Meu querido e estimado amigo,
Ao receber a convocatória da polícia parisiense, um calafrio percorreu minha espinha, não era nada comum convocarem um psiquiatra. Meu retorno da Inglaterra havia sido marcado por uma aura de mistério e inquietação, mas nada poderia me preparar para o que encontraria no salão onde aconteciam a aula magna de medicina da Universidade de Paris. Ao cruzar a porta, uma sensação pesada se abateu sobre mim, como se o próprio ar estivesse saturado de desespero, em minha mente pairava apenas a dúvida quanto a toda aquela celeuma.
A atmosfera tornou-se ainda mais densa quando me deparei com o investigador Jules Moreau, que estava examinado o local com seu olhar curioso. Moreau era um homem, na casa dos 30 anos, de cabelos castanhos curtos repartidos no lado direito, um bigode farto que balançava com cada palavra, e um nariz redondo que parecia sempre à procura de algo. Ele era um pouco acima do peso, e suas vestes estavam desalinhadas, como se ele tivesse se apressado ao sair de casa. Sua voz de barítono, embora imponente, era interrompida por um leve tom fanho que tornava suas declarações quase cômicas, se não fossem tão graves. O investigador aparentava uma jovialidade fora do normal em sua expressão, esboçando um sorriso cordial baixo aquele bigode.
— Dr. Walker! — exclamou, gesticulando descontroladamente e quase derrubando um caderno que segurava sob o braço. — Precisamos discutir as condições em que encontramos os corpos. Eles foram… bem, transladados pelos carros da polícia, você sabe, direto para cá.
Enquanto ele falava, eu tentava focar na gravidade do momento, mas o jeito desajeitado de Moreau dificultava manter a compostura. Ele se ajeitou as roupas, como se tentasse, sem sucesso, desamassar as dobras que pareciam se reproduzir a cada movimento.
— A situação em La Cité… — ele continuou, limpando a garganta de maneira atrapalhada. — Está gerando incômodos. Os moradores estão em alvoroço! Mencionam coisas como vampiros e… bem, até fantasmas! — Ele fez uma pausa, olhando ao redor com um ar conspiratório, como se esperasse que algo sobrenatural aparecesse entre nós.
— O que importa — prosseguiu, tentando recuperar o foco — é que precisamos resolver isso com o máximo de sigilo possível. Ninguém pode saber que os corpos foram trazidos aqui. A reputação da universidade, você entende? — Ele gesticulou com a mão, quase acertando o próprio rosto.
A tensão do ambiente se misturava ao seu jeito desengonçado, e não pude evitar um sorriso diante da cena. Moreau parecia genuinamente preocupado, mas sua atrapalhada sinceridade trazia uma leveza inesperada ao momento sombrio.
— Precisamos evitar que o pânico se espalhe. Se a notícia vazar… bem, você sabe como Paris é — disse, abrindo os braços em um gesto exagerado que quase o fez perder o equilíbrio.
Os corpos jazeram ali, dispostos de maneira que sugeria uma cena de pesadelo. As luzes tremeluzentes das lamparinas projetavam sombras dançantes, criando uma atmosfera que tornava cada canto do salão um esconderijo de segredos. Eu sabia que precisava realizar uma análise cuidadosa, documentar as feridas nas jugulares, mas a realidade do momento era opressiva, como se uma força invisível me impedisse de pensar com clareza.
Enquanto observava os rostos das vítimas, uma análise superficial começou a tomar forma em minha mente. A expressão de terror estampada em suas faces era inegável, um reflexo de um horror tão profundo que poderia ser palpável. As marcas no pulso direito, evidentes sinais de resistência, contavam a história de um desespero que ecoava nas paredes do salão. Embora já tivesse participado de análises em outros casos e aprendido a entender a mente criminal, essa cena me deixou inquieto. Era uma brutalidade que transcendia o mero ato de assassinar; era uma tentativa de controlar, de dominar, uma pulsão obscura que instigava minha curiosidade e aversão.
Essas feridas tão estranhas que foram provocadas por Deus sabem o quê, ou quem, não eram apenas marcas físicas; eram indicadores de uma luta desesperada contra um predador invisível. A resistência manifesta nos pulsos poderia sugerir que as vítimas lutaram contra o que não podiam entender, e isso, por sua vez, reflete o que muitos temem: a incapacidade de escapar do destino. Minha reflexão aponta para uma inquietante verdade: a mente humana consegue tolerar horrores inimagináveis, mas essa resistência pode ser quebrada, transformando-se em um grito mudo que ecoa em nossos subconscientes.
Enquanto escrevia, a caneta tremia em minha mão, refletindo a agitação que sentia no fundo, de minha alma. Sabia que precisava alertá-lo sobre a escuridão que se aproximava, uma sombra que ameaçava engolir não apenas aqueles corpos, mas a própria cidade.
Nesse momento, a porta do salão se abriu e um jovem médico legista entrou. Thomas Simon, com seus cabelos negros e olhos de águia, tinha uma expressão carrancuda e um humor ácido que logo se tornou evidente. Ele se aproximou, sua presença quase imponente no espaço carregado de tensão.
— Dr. Walker, investigador Moreau — disse, com uma voz firme. — Precisamos discutir algo sério. O sangue das vítimas foi completamente extraído. —Enquanto ele se aproximava da mesa e descobri o homem que estava mais distante de nós, nos forçando a ter-mos que nos aproximar dele.
Essas palavras pairaram no ar, e uma onda de incredulidade me percorreu. Moreau arqueou uma sobrancelha, o semblante preocupado, enquanto a seriedade da situação se intensificava.
— Como isso poderia ter acontecido? — perguntei, minha mente correndo para cenários impossíveis.
Thomas cruzou os braços, o olhar penetrante como se pudesse desnudar a alma humana, examinando o ambiente antes de responder. — Pode ser algum culto estranho, uma prática ritual. O fato de estarmos lidando com corpos assim sugere que alguém se sentiu à vontade para realizar tal ato em pleno coração de Paris.
Moreau franziu a testa, coçando a cabeça.
— Cultos, você diz? Não estou surpreso. Ouvi rumores sobre atividades estranhas na região, mas pensei serem apenas lendas.
— Lendas que parecem ter ganhado vida, talvez — completou Thomas, seu tom ácido intensificando a gravidade das palavras. — É o tipo de história que faz os moradores falarem sobre vampiros ou criaturas da noite. O povo gosta de fantasias, mas a realidade pode ser ainda mais assustadora.
Moreau, que até então havia tentado manter a compostura, soltou uma risada nervosa.
— Paris, a cidade das luzes, agora se torna a da escuridão. Acredito que os mitos estão mais vivos do que nunca.
A atmosfera parecia pulsar, e a ideia de que a cidade poderia abrigar tal horror me deixou inquieto. Era como se uma sombra antiga estivesse despertando, e eu sentia que precisaria mergulhar nas profundezas desse mistério. Eu me via cercado por um labirinto de medos e pressentimentos, e a única coisa que podia fazer era preparar-me para o que seguiria.
Anton S. Miahi XIII
(Escrito em meu Caderno)
25 de agosto de 1871 —Esta noite, tive um sonho – ou talvez fosse um pesadelo, mas ele lateja em minha mente como algo mais denso, quase tangível.
Eu me lembro de ter deitado, os músculos ainda enrijecidos do dia, sem sequer trocar de roupa. O mundo cedeu aos poucos, e o véu da inconsciência foi me cobrindo. Então, uma queda... A sensação visceral de descer, de ser tragado por uma força invisível. E lá estava eu, imóvel, os olhos piscando contra uma luminosidade suave e envolvente que parecia emanar do próprio ar, como se a atmosfera estivesse impregnada de luz líquida.
Tateei ao redor, a superfície áspera de um chão desconhecido, e me vi rodeado por lavandas que se erguiam delicadas, seu perfume doce invadindo cada canto de meus sentidos. À minha volta, bolhas flutuavam, translúcidas e peculiares. Dentro de cada uma, vislumbres de lembranças – minha mãe, meu irmão, dias dourados na universidade. A nostalgia e o calor dessas imagens pareciam tão vivos, tão próximos... mas logo uma certeza fria atravessou-me: eu não estava em meu mundo.
Uma névoa lilás cobria o ambiente como um véu leve, enquanto uma luz branca preenchia cada canto, uma presença calma, quase etérea. Então, uma voz conhecida perfurou o silêncio.
— Bem-vindo, Anton.
Virei-me rapidamente, o coração disparado. Mas ao ver Monm, com aquele olhar sábio e expressão tranquila, uma calma familiar substituiu o susto.
— Isso é real? – perguntei, sentindo a incerteza tremer em minha voz.
Ele respondeu com um sorriso enigmático, o tipo de sorriso que antecede uma revelação, ou um segredo.
— E o que é real, senão o que acreditamos ser? — ele indagou, os olhos brilhando com uma intensidade contida, como se sua mente percorresse mundos além deste. — Aqui, Anton, estamos num campo onde as realidades se entrelaçam. Poderíamos dizer que é um sonho... ou um fragmento dele, um lugar de memórias, desejos e arrependimentos de muitos.
Andamos lentamente pelo campo de lavanda, e um perfume suave se misturava à névoa, impregnando o ar. A cada passo, bolhas flutuavam ao nosso redor, translúcidas e frágeis, como se fossem tocadas por uma brisa inexistente. Dentro de cada bolha, imagens — momentos — de vidas diferentes, de pessoas desconhecidas.
Monm seguiu ao meu lado, o olhar fixo numa bolha que passava. Em seu interior, vi o rosto de uma jovem, com cabelos tão escuros quanto a noite, um sorriso leve, mas com um olhar profundo e conhecedor. Era um olhar que parecia fitar além do espaço e do tempo.
Ele suspirou, um som tão sutil que quase se dissolveu no ar.
— Quem é ela? – perguntei.
Por um instante, Monm hesitou, e sua expressão, sempre controlada, se partiu numa fração de segundo, revelando uma dor silenciosa.
— Ela... — ele começou, mas parou, desviando o olhar. — Chamava-se Lysianne. Foi... — ele inspirou fundo, as palavras quase lhe escapando. — Foi meu único amor verdadeiro. Mas, sabe, Anton, para se aventurar no tempo, é preciso um preço, um sacrifício. E eu, com minha ânsia em desvendar os segredos deste universo, escolhi um caminho que me afastou dela.
Houve uma pausa, e o campo de lavanda parecia mais silencioso, como se respeitasse sua lembrança.
— Ela também era fascinada pelo tempo? — arrisquei.
Monm sorriu, mas era um sorriso manchado de nostalgia e tristeza.
— Não como eu. — Ele fitou uma bolha próxima, onde ela estava rindo ao lado de uma árvore sob um céu ensolarado. — Ela gostava de viver o presente, de encontrar beleza no instante. Para ela, um momento... era eterno.
Ele passou a mão suavemente pela bolha, e a imagem tremeluziu antes de se dissipar na névoa lilás.
— Então por que essa busca insaciável, Monm? — perguntei. — Por que sacrificar algo tão precioso?
Ele se voltou para mim, o olhar ainda mais sério, um fogo intenso em seus olhos.
— Porque, Anton, o tempo é uma ilusão, uma corrente que tenta nos prender. E a verdade é que... — ele hesitou, a voz baixa. — Eu queria libertá-la, encontrar uma realidade onde pudéssemos viver sem limites, sem essa cruel imposição do tempo que devora tudo.
— Mas isso não é impossível? — insisti.
Ele balançou a cabeça, um ar sombrio em seu semblante.
— Ah, meu caro, o impossível é uma mera palavra. Mas há consequências, há fissuras. E quanto mais fundo cavamos, mais nos deparamos com realidades em que os sonhos e pesadelos se entrelaçam. É por isso que este lugar existe — apontou ao redor. — Aqui repousam fragmentos de vidas, de desejos que nunca se realizaram, de amores que nunca floresceram.
Paramos diante de uma bolha mais próxima, onde vi a imagem de uma mulher abraçando uma criança. A cena pulsava de ternura, mas também de tristeza, como se ambos soubessem que aquele momento era breve.
Monm fitou a cena, absorto, e por um momento, notei algo raro nele: arrependimento.
— Esses são ecos de outros sonhos? — perguntei, tentando entender.
— Sim, sonhos de outros, de vidas que jamais cruzaremos. Aqui, Anton, reside o que todos carregamos no inconsciente. Nossas sombras, nossas esperanças. Somos apenas viajantes. Quando olhamos para um sonho alheio, nos encontramos também, por um segundo, refletidos nas ambições e medos do outro.
Ficamos em silêncio, observando a cena. Monm suspirou novamente.
— Você já sonhou em encontrar algo, Anton, mas que sempre parece fugir? Como se existisse um vazio em cada linha do tempo, uma distância que nunca pode ser percorrida?
— Às vezes — respondi. — Como uma lembrança fugidia, uma sensação de algo perdido, mas que nunca conheci.
Monm assentiu, os olhos voltando à lavanda.
— É a essência do tempo. E somos prisioneiros de algo que pensamos dominar.
Antes que pudesse responder, ele tocou levemente meu ombro.
— Vamos, há ainda muito a caminhar.
Antes que eu pudesse responder, uma sombra se formou ao longe, desenhando-se lentamente em um contorno familiar. À medida que se aproximava, a figura de um homem magro e sereno emergiu da névoa lilás, vestindo-se de branco, com um cavanhaque bem aparado e olhos profundos como dois lagos plácidos. Em uma das mãos, ele segurava uma chave dourada e adornada, que brilhava mesmo na penumbra.
— Sou Lieran — disse ele, sua voz grave e suave, como um sopro de vento antigo. — O guardião deste entre-mundos, o reino de Somníria.
— O que você está fazendo aqui, Lieran? — Monm perguntou, o tom de sua voz mesclando uma ironia sutil com a seriedade do momento. — Veio discutir novamente a futilidade dos sonhos?
Lieran sorriu, mas não havia alegria em seu sorriso. Era uma expressão de compreensão triste.
— Os sonhos não são fúteis, Monm. Eles são portais. É por meio deles que as verdades ocultas se revelam, não apenas sobre nós, mas sobre a própria essência do tempo. Você insiste em vê-los como meras ilusões.
— E você — Monm retrucou — vê a realidade como uma prisão, acreditando que os sonhos podem libertar aqueles que se perdem em suas correntes. Mas não é assim que funciona. Os sonhos podem se tornar labirintos, Lieran. Labirintos que aprisionam mais do que libertam.
Anton, sentado entre eles, sentia-se como uma peça de um quebra-cabeça que não se encaixava. Seus pensamentos eram um turbilhão.
— Esperem — eu interrompi, tentando entender. — O que exatamente significa sonhar para vocês? Estou confuso. Não é tudo apenas... um escapismo? Ou há algo mais?
Lieran se voltou para mim, os olhos profundos como lagos refletindo uma sabedoria antiga.
— Os sonhos, Anton, são a linguagem do inconsciente. Eles são ecos de nossas emoções, medos e esperanças. Quando sonhamos, temos a oportunidade de revisitar nossos anseios mais profundos e confrontar verdades que muitas vezes ignoramos. O tempo em sonhos é elástico, permitindo que revisitemos momentos que acreditamos perdidos.
— Mas não são apenas ilusões? — retrucou Monm, gesticulando como se estivesse tentando desvendar uma teia invisível. — Lieran, você se esquece de que os sonhos podem distorcer nossa percepção. Eles nos enganam, nos iludem com promessas de um futuro que nunca pode ser, enquanto a realidade continua a ser intransigente e cruel.
— Que é a realidade, senão uma construção dos nossos sonhos? — Lieran desafiou, a chave dourada balançando suavemente em sua mão. — As escolhas que fazemos no mundo dos sonhos reverberam na realidade. Não subestime o poder que eles têm. O que sonhamos pode, de fato, moldar o que vivemos.
Eu olhei de um para o outro, a tensão crescendo. A cada palavra, o ar se tornava mais carregado, como se o próprio espaço entre eles estivesse se comprimindo.
— Mas então — perguntei, hesitante — se os sonhos moldam a realidade, como podemos confiar no que vivemos? E se o que acreditamos ser real for apenas mais um sonho? Como discernir entre o que é verdade e o que é ilusão?
Monm olhou para mim, um brilho de reconhecimento nos olhos. Era como se ele tivesse sido lembrado de um passado distante que ainda o assombrava.
— Essa é a questão que todos enfrentamos, Anton — disse ele, sua voz agora tingida de uma vulnerabilidade inesperada. — O que fazemos com as verdades que descobrimos? E o que acontece quando esses sonhos se tornam pesadelos?
— Você deveria se perguntar, Monm, o que realmente está buscando em suas viagens no tempo — Lieran retorquiu, sua voz firme como o aço. — O que você está disposto a sacrificar para alcançar seus objetivos? Cada escolha tem um custo. E esse custo pode muito bem ser mais do que você está preparado para enfrentar.
A tensão pairava, e o silêncio se estendeu por um momento, uma respiração compartilhada entre os três. Anton sentiu que, de algum modo, estava no centro de uma tempestade, onde cada palavra era um relâmpago iluminando verdades obscuras.
— E se o que eu procuro — eu murmurei, mais para mim mesmo — for o que estou destinado a perder?
Ambos se voltaram para mim, e, por um breve momento, o campo de lavanda pareceu ecoar a pergunta, as flores balançando suavemente como se estivessem escutando.
O impacto de suas palavras reverberou em mim, mas antes que pudesse refletir, o chão se abriu sob meus pés, e fui lançado novamente na escuridão. Despenquei, a queda me envolveu, e senti uma nova transformação no ar ao meu redor – mais densa, mais fria, como se sombras me acolhessem.
Despertei num ambiente muito diferente, a claridade suave substituída por uma escuridão quase sólida. Levantei-me cauteloso, e ao meu redor, o chão era coberto por rosas negras com delicados tons de roxo degradê, uma paisagem sombria que exalava um cheiro doce e nauseante. Um ruído distante, como o bater de asas, chamou minha atenção para cima.
Uma criatura desceu do céu negro, o ar em volta dele se dispersando em uma lufada fria. Ele tinha um corpo humanoide, mas as asas – negras e largas como as de um corvo – traziam uma imponência animalesca. Quando pousou, observei de longe, quase sem respirar, os olhos límpidos e profundamente lilás, as orelhas pontudas, a pele tão branca que lembrava marfim.
A figura reunia algumas daquelas bolhas, mas as imagens que continham eram diferentes – rostos distorcidos pelo terror, fragmentos de dor e desespero. Senti um calafrio. Ele murmurava algo que não pude distinguir e começou a se afastar, carregando as bolhas em direção a um umbral negro.
Um vulto pendia sobre seu ombro. Um gato negro, seus olhos de um branco frio que pareciam atravessar minha alma. Algo me puxava para aquele ser, uma curiosidade perigosa, irresistível.
O ser cruzou o umbral, e quando percebi, estava me erguendo, seguindo-o, como que guiado por uma força misteriosa.
— Anton... – uma voz macia e sombria ecoou.
Era o gato, agora sobre uma mesa em uma sala grandiosa e fria. Ele me fitou, um brilho irônico em seus olhos.
— Chamam-me de Meia-Noite, e meu companheiro, Uor. Vejo que chegou até aqui por acaso ou talvez… por curiosidade.
Fui tomado pelo instinto, endireitando-me, tentando parecer seguro.
— Anton Stephan Miahi, Sargento da Cavalaria – minha voz ecoou no salão vazio.
Uor sorriu com uma ironia afiada.
— Sei muito bem quem é você.
Aquelas palavras perfuraram-me como uma lâmina, e o salão pareceu fechar-se ao meu redor. No fundo, uma nova suspeita brotava – eu não estava mais no reino dos sonhos, nem tampouco no inferno. Estaria eu no próprio limiar do inconsciente, num lugar onde medos e mistérios coexistem?
No mesmo dia mais tarde — O encontro com Meia-Noite e Uor me deixou inquieto, como se uma névoa densa tivesse se instalado em meu ser. Fui recebido não como um convidado, mas como um prisioneiro que, mesmo sem saber, tinha uma dívida a pagar. Eles se apresentaram como mestres de um jogo cujas regras eu ainda não compreendia. A presença deles sugeria um peso no ar, e suas palavras flutuavam como sombras, dançando ao redor de nós, pulsando com a energia de verdades ocultas.
— A ambição de Olga — começou Meia-Noite, quebrando o silêncio pesado — transcende o que você pode imaginar, Anton. Ela não é apenas uma mulher sedenta por poder, mas uma criatura que busca controlar o sobrenatural em busca de algo maior.
Uor balançou a cabeça, seus olhos cintilando com uma luz gelada. — Você a vê como uma mera mortal, mas há mais em Olga do que o que se revela. Ela toca as cordas do invisível e manipula a escuridão ao seu redor. É por isso que Drácula a atrai.
Meu coração acelerou. Para mim, Drácula sempre fora apenas um conde do interior da Europa, uma figura envolta em mistério e lendas. No entanto, a ideia de que sua conexão com Olga era mais do que mera coincidência começou a se enraizar em minha mente.
— O que você quer dizer? — eu perguntei, a tensão entre nós era quase palpável. — Como você pode ter certeza disso?
— O Conde — continuou Meia-Noite, a voz profunda reverberando no ar — não é apenas um homem, Anton. Ele é um símbolo, um ícone do que se perdeu e do que se busca no abismo. Atraído pela ambição de Olga, ele representa a eternidade e o horror que ela deseja controlar.
Uor fez uma pausa, como se estivesse pesando suas palavras antes de continuar. — Mas a verdadeira natureza de Drácula é mais sombria do que você imagina. Eu conheço um jovem que presenciou o ataque em Paris, uma cena que se desenrolou sob a luz da lua, onde a morte dançou no sangue fresco.
As palavras de Uor me prenderam, como uma teia invisível envolvendo meu corpo. Eu me via forçado a imaginar a cena horrenda, uma jovem sendo devorada, sua vida esvaindo-se sob as garras do Conde.
— Ela morreu — Uor continuou, seu tom sombrio, quase reverente — até a última gota de sangue, Anton. A cidade de Settimor foi erguida para acolher as almas perdidas, aquelas que foram atraídas pela sedução de um castelo obscuro, onde as promessas se tornam pesadelos. A ambição de Olga não é apenas por poder; é por controle sobre essa escuridão que a cerca.
A ansiedade começou a consumir-me, como uma maré crescente. Era como se as revelações se tornassem gélidas, arrastando-me para um abismo de dúvidas e temores. Eu estava cercado por verdades que não conseguia ignorar, e a ideia de que tudo isso poderia ser real era sufocante.
— E se ela estiver certa? — perguntei, a voz tremendo. — E se Olga conseguir realmente o que deseja? O que isso significaria para nós?
Meia-Noite trocou olhares significativos com Uor.
— O desejo dela de transcender é uma busca sem fim — respondeu Uor. — Se ela dominar o sobrenatural, você e todos ao seu redor não passarão de peças em seu tabuleiro. A verdadeira questão é: até onde você está disposto a ir para impedir que isso aconteça?
Monm, que até então permanecera em silêncio, soltou uma risada baixa, quase amarga. — Uma escolha sempre tem um preço, Anton. E o que você está disposto a sacrificar?
As palavras deles ecoaram em minha mente, pesadas como pedras. O clima tornava-se cada vez mais tenso, e a incerteza me envolvia. Como poderia enfrentar um ser como Drácula, com Olga ao seu lado, manipulando os fios invisíveis que regem nossas vidas?
De repente, antes que pudesse processar tudo, uma luz intensa irrompeu à nossa frente. Um portal se abriu, revelando o contorno familiar da chave dourada de Lieran.
Monm e Lieran emergiram do brilho, seus rostos sérios, como se trouxessem consigo o peso de um novo destino.
— O que vocês fizeram? — Monm exclamou, seus olhos fixos em mim, preocupados. — O que foi revelado?
Lieran, com um gesto fluido, apontou para o espaço nebuloso que nos cercava. — A verdade não deve ser ignorada, mas nem todos estão prontos para enfrentá-la. Venham, devemos ir.
Eu olhei para Meia-Noite e Uor, suas figuras agora quase etéreas diante da luz pulsante. A sensação de que algo maior estava em jogo tornou-se uma realidade indiscutível. Eu havia sido lançado em um ciclo de eventos que apenas começava a se desenrolar, e a única certeza era que o caminho à frente estava repleto de sombras e revelações.
Atravessando o portal, percebi que não havia como voltar. O que me aguardava era um futuro indefinido, onde a linha entre sonhos e realidade continuava a se desvanecer, e eu me via cada vez mais entrelaçado no destino que me aguardava.
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…