Hereditário - Parte III: Hereditariedade
Os outros dois companheiros que acompanhavam o cortejo logo apertaram o passo e deixaram os outros três para trás. Seguiram juntos: o solícito Dominguin, a lamentosa Gardênia e seu exausto filho, que se arrastava pela estrada afora. O silêncio que se estabelecera entre eles por quase todo o caminho era bastante inquietante. Dominguin tentou por diversas vezes quebrá-lo, tentando oferecer-lhes algum conforto. De todas as formas possíveis, buscou puxar assunto com Gardênia. No entanto, entre profundos suspiros, vez por outra, ela apenas respondia-lhe monossilabicamente, para não lhe ser grosseira. Caminhando sempre cabisbaixa, Gardênia manteve-se envolta num silêncio reflexivo, absorta em sombrios e amargos pensamentos quanto ao seu destino e futuro ainda incerto.
Qualquer um que a visse caminhando daquela forma talvez nem reconhecesse nela mesma a bela Gardênia de outrora. Andando com a fronte baixa e o olhar no vazio, ela era uma imagem triste de se ver. Sua maquiagem, normalmente perfeita, tinha se estragado ao longo das últimas doze horas, e seu cabelo de belos cachos, também sempre muito bem alinhados, estavam revoltos, uma bagunça completa, dando-lhe um aspecto bastante grotesco. Suas vestes – devido à longa caminhada sob uma chuva fina – não estavam nas melhores condições. Mesmo assim, ela continuou caminhando de forma decidida, a fim de dar a seu pai um último adeus de forma decente.
Aproximava-se do meio-dia quando avistaram ao longe o campanário da igreja e, logo depois de mais alguns passos, os poucos telhados das casinhas do vilarejo. Ao passarem pelas primeiras casas, Gardênia recebia as respeitosas condolências de um e de outro, tanto daqueles que tinham muito a agradecer a seu pai quanto daqueles que o temiam. No entanto, assim que lhes prestavam seus sinceros sentimentos, algo os inquietava. Se Gardênia – a inseparável filha de Pai Thomás – estava ali, onde estaria o cortejo com o corpo do falecido? A igreja, para onde obviamente o corpo de seu pai deveria ter sido levado para receber as exéquias finais, ficava no centro do pequeno vilarejo.
Padre João Paulo já os aguardava – pois estava de sobreaviso – mas, assim que os viu caminhando, rumo à igreja, de mãos vazias, teve um sobressalto, sabendo que algo não estava certo. Assim que Gardênia se aproximou dos umbrais da porta da igreja, foi logo recebida de braços abertos pelo senil reverendo, que a acolheu como um saudoso pai acolheria uma filha há tempos ausente.
Com dolorosos suspiros e entre soluços, Gardênia, após pedir sua bênção, perguntou onde estava o corpo de seu pai.
– Como assim? Não eram justamente vocês que o estavam trazendo? – questionou o padre.
– Sim. Mas, pelo caminho, fomos abordados por quatro distintos cavaleiros que nos ofereceram ajuda para transportá-lo. Como estávamos todos nós já bastante exaustos pela caminhada desde as primeiras horas da manhã, recebemos de muito bom grado o auxílio que nos foi oferecido. Estando eles sobre velozes cavalos, certamente deveriam ter chegado bem antes de nós – disse ela, com certa dúvida na voz.
– Você conhecia os cavaleiros que lhes ofereceram ajuda, minha filha? Ou pelo menos já os tinha visto alguma outra vez? – questionou o padre, já em tom de alerta.
– Na verdade, não! Mas parece que eles conheciam meu pai muito bem, e Seu Jura, que esteve conosco até bem pouco tempo atrás, também sabia de quem se tratavam. Pois, quando os cavaleiros se ofereceram para levar o corpo, ele não se opôs. Na verdade, não disse uma única palavra em contrário. Só achei estranho o fato de ele, que sempre acompanhava todo e qualquer velório do início ao fim, não ter vindo conosco dar o último adeus ao meu pai, que sempre o tivera em grande préstimo...
Padre João, um homem já próximo ao horizonte de sua vida, pois já era quase octogenário, logo soube que havia algo de bastante obscuro naquilo tudo. Ao ouvir de Dominguin a descrição dos tais cavaleiros, um estranho arrepio lhe correu por todo o corpo e, de forma involuntária, se benzeu, beijando a cruz de seu rosário em seguida. Percebendo que aquele gesto causara certa estranheza à Gardênia, disse que certamente haveria uma plausível explicação para aquilo tudo.
E, para tentar tranquilizar a soturna e assustada Gardênia, que já dava mostras de plena inquietude, disse-lhe que talvez fossem viajantes apressados e tivessem decidido levar o corpo direto para a capelinha do cemitério.
– Sigamos também para lá, onde poderemos prosseguir com as exéquias necessárias para o sepultamento de seu querido pai e conceder-lhe o respeito merecido – completou o padre.
Se a cidade era bem pequena – um aglomerado de uma dúzia de casas talvez, uma venda quase completa, com toda sorte de quinquilharias, onde poderia se encontrar quase de tudo um pouco e a própria igreja – o cemitério nem tanto, afinal todos aqueles que morriam num raio de quase cem quilômetros, para ali eram levados para seu descanso eterno. Não era um lugar luxuoso como a cidade dos mortos das grandes cidades – como rapidamente Dominguin o notara. No entanto, havia inúmeras sepulturas algumas recentes e outras com datas de sepultamento de quase um século. A maioria delas era simples e humilde tão como o próprio lugar o representa – local onde a luxuria, a arrogância e o orgulho cedem lugar à humildade. A calma, o isolamento e a paz daquele lugar pareciam profundos e íntimos em muitos sentidos, pois era ali naquele campo santo, que o ser se deparava com todas as verdades do Universo. No entanto, ao passarem pelo portão, logo perceberam que uma sombra terrível tinha pairado sobre eles. O cemitério estava completamente vazio. Nem mesmo o coveiro – Seu Zuza, que já havia deixado a cova aberta – estava presente. Assim que terminou de cavar a sepultura logo bem cedo, como a chuva apertara bastante, decidira voltar para casa, só retornando assim que o corpo chegasse, e mais uma vez seus serviços se fizessem necessários. Aproximaram-se da cova recém-aberta e a surpresa foi geral. A sepultura estava aberta, mas dentro não havia nada. Absolutamente nada...
Ali e outrora tinham-se transformado num aqui e agora. O céu que esteve cinzento durante toda a manhã, mas naquele momento se escurecera ainda um pouco mais. Num átimo de desespero, Gardênia com as mãos cobrindo a face num abscesso de loucura, demonstrando o mais completo desespero abjeto, em soluços gritara aos céus:
– Onde está meu pai? O que fizeram com seu corpo? Quem eram aqueles que o traziam?
Em sua voz havia tanta dor e desespero, que toda a natureza ao redor se silenciara por completo em respeito ao seu sofrimento. Padre João a amparava em seus braços dizendo-lhe que haveria uma explicação lógica para aquilo tudo. A dor que ela estava sentindo naquele momento era algo inominável e tendia a ficar ainda pior, quando seu filho o exausto Júlio César andando pelas cercanias do cemitério se deparara com o banguê que trazia seu avô e a mortalha que envolvia seu corpo. Curioso como toda e qualquer criança, ao decidir tocar naqueles fúnebres tecidos fora atacado por uma cobra que jazia sob aquelas lúgubres vestes. A serpente – uma agressiva cascavel – conseguira fugir se escondendo numa toca entre as sepulturas. Gardênia entrou em pânico ao ver o estrago no braço do filho, causado pelo ataque da serpente. Por ser uma áspide de terrível veneno, em poucos minutos a ferida se tornara arroxeada e a pele ao redor adquiriu um enorme inchaço. Júlio sentiu o efeito do veneno quase de imediato desfalecendo nos braços da mãe pedindo-lhe água, pois se dizia bastante sedento. Sabendo o quanto o veneno de uma cascavel poderia ser danoso a quem quer que fosse, e em se tratando de uma criança pior ainda, talvez pudesse vir a ser, até mesmo letal, Padre João ordenou que a criança fosse imediatamente levada a casa paroquial, para receber o tratamento adequado. Assim que a criança fosse tratada e tivesse fora de perigo, tentariam também buscar uma possível solução para o mistério do desaparecimento do corpo de Pai Thomás.
Devido à sua posição de respeito, ainda no caminho entre o cemitério e a casa paroquial, Padre João logo convocou quase toda a cidade a fazer uma varredura completa ao redor do vilarejo, em busca de algum vestígio que indicasse o paradeiro do corpo de Pai Thomás. Muitos foram questionados se haviam visto os cavaleiros mencionados por Gardênia na estrada, quem sabe passando pela cidade ou mesmo ao redor do cemitério. De forma unânime, a negativa foi geral. Ninguém vira sequer um cavaleiro, muito menos quatro, carregando um banguê com um falecido em cima. Tudo aquilo era um grande mistério; o único consenso era que o corpo de Pai Thomás havia desaparecido.
Enquanto as buscas e possíveis explicações aconteciam de um lado, no interior da casa paroquial havia grande preocupação com o estado do filho de Gardênia, que demonstrava claramente os efeitos do veneno em seu corpo. Seus lábios – outrora viçosos e vermelhos – estavam brancos e sem vida. Todo o seu corpo, que suava intensamente, adquirira um estranho inchaço, e ao redor da ferida iniciara-se um processo de necrose. Prostrado sobre um pequeno catre, Júlio César gemia quase todo o tempo, delirando e falando coisas sem sentido. Tais sintomas indicavam que sua situação era bastante delicada, e Gardênia sabia disso muito bem.
A própria Gardênia, com os conhecimentos de cura que aprendera com seu falecido pai, preparara uma determinada beberagem e um unguento de aspecto pastoso e cheiro peculiar, que era aplicado sobre a ferida de tempos em tempos.
Dona Diolinda – uma das beatas que cuidavam da casa paroquial e que também fazia as vezes de benzedeira local – auxiliava no tratamento do menino. Em voz baixa, sussurrou ao padre que, em seus quase setenta anos, jamais tinha visto um veneno tão agressivo quanto aquele e que o estado do menino era gravíssimo. Se viesse a escapar, certamente seria por milagre. Padre João, no entanto, não ousou comunicar essa peculiaridade à Gardênia. Ela, por sua vez, parecia saber disso, mas confiava em seus conhecimentos de cura.
A tarde, assim como a manhã, fora de um frio intenso devido à chuva fina que caía sem cessar. Contudo, ao cair da tarde, a natureza parecia transtornada, e a ordem das coisas, ainda mais posta às avessas. O frio, trazido por um vento constante, tornara-se quase insuportável, enregelando até os ossos de quem ousasse enfrentá-lo.
Já no final de uma tarde de buscas infrutíferas e explicações adversas, Gardênia decidiu que, assim que seu filho se restabelecesse, deveria retornar para casa. Após o imbróglio do sumiço do corpo de seu pai e o incidente com Júlio César, sentia-se bastante frustrada e com a cabeça zonza diante de toda aquela sinistra e inexplicável situação. Sabia que, nessas circunstâncias, apenas o aconchego do lar poderia lhe proporcionar o conforto necessário.
As buscas pelo corpo de Pai Thomás demonstraram-se infrutíferas devido a três principais motivos: o primeiro deles, pela negligência de quem o estava procurando, pois ninguém na cidade – um lugar minúsculo onde todos sabiam de tudo, e nada acontecia em segredo – havia visto nada, nem mesmo ninguém, transportando um cadáver. O segundo motivo foi o frio, que aumentara bastante com o findar da tarde, e a chuva, que voltara a cair de forma incessante com a chegada da noite. Por último, a história que envolvia os tais misteriosos cavaleiros: quem os procurava talvez não tivesse, no fundo, a verdadeira intenção de encontrá-los.
Assim que as buscas ao redor da cidade foram dadas por encerradas, Padre João aproximou-se de Gardênia e, em surdina, disse-lhe:
– Apesar de meus anos vividos e de minha longa experiência como clérigo, sempre tive uma tendência ao racional, ao conhecido e ao empírico, considerando que nunca presenciei nada de paranormal; nem milagres, nem assombrações, nem anjos ou demônios, tampouco um simples caso de possessão. Em toda a minha vida, nunca presenciei algo que a ciência não pudesse explicar. No entanto, devo admitir que há fatores bastante sinistros e ainda inexplicáveis no desaparecimento do corpo de seu pai, considerando como se deu o fato. Qualquer pessoa sã, ao ouvir essa história – quatro cavaleiros negros que surgem do nada, à luz do dia, recolhem um corpo de um cortejo fúnebre e, da mesma forma que surgiram, desaparecem, levando consigo o corpo e tudo mais – teria dúvidas concretas sobre a veracidade dos acontecimentos.
– No entanto, jamais devemos duvidar de algo pelo simples fato de não termos visto ou ouvido. Os sonhos, a dor ou mesmo os sentimentos não podem ser vistos, ouvidos ou sentidos pelo tato, mas, mesmo assim, sabemos que eles existem. Eu mesmo já não duvido de mais nada; apenas aguardo, com paciência, que tudo se esclareça. Creiamos, contudo, que haja uma explicação lógica para tudo isso, e logo o tempo nos trará as devidas respostas.
– A vida de seu pai foi bastante longeva e cheia de provações, o que, em seus últimos anos, o tornou um homem de comportamento um tanto peculiar. Sem dúvida alguma, mesmo sendo ele um ser extraordinário, ainda assim era um ser humano comum, como todos nós. Mais dia, menos dia, também teria que se deparar com o único mal irremediável. Independente do que se faça ou se deixe de fazer, mais cedo ou mais tarde, a mão de Deus alcança a todos nós.
Gardênia, que ouvira tudo aquilo em absoluto silêncio, de alguma forma imaginava que as palavras do padre faziam sentido. Contudo, em seu íntimo, tinha quase a certeza de que talvez não tivesse sido a mão de Deus que tolhera a vida de seu pai. Com um profundo suspiro, ela, que estava de cabeça baixa, sentada junto à cabeceira da cama, velando pelo filho, que repousava entre gemidos e um inquieto sono, sem demonstrar nenhum indício de restabelecimento, perguntou ao padre, levantando os olhos por um breve momento:
– Padre João! Quero que me responda com toda a sinceridade que sua posição exige. O senhor acredita em demônios? E, se acredita, acha que talvez os tais cavaleiros na estrada...
O senil reverendo percebeu que deveria ter certo cuidado ao responder àquela infeliz criatura que estava diante dele. Ao fitá-la nos olhos, viu dor, descrença e ódio. Por sua vasta experiência de vida e sabedoria adquirida, já não tinha tanta certeza de qual desses sentimentos predominava, mas, se fosse obrigado a dar um palpite, certamente escolheria o ódio. O brilho que emanava dos olhos daquela mãe era tão letal quanto o veneno da mais terrível entre todas as áspides que rastejam pelo mundo. Então ele respondeu:
– Se acredito na luz, obviamente devo acreditar nas trevas. Tenho uma inabalável fé em nosso Criador e, certamente, também creio em suas criações. Demônios fazem parte das primeiras criaturas de Deus, entidades inumanas provenientes dos primeiros anjos – aqueles que caíram em desgraça perante seu Criador. São terríveis criaturas, desprovidas da Graça divina, que nada têm além do tempo para arquitetar maldades e vingança contra as demais criaturas de Deus, alimentando-se da dor e do sofrimento alheio. Por serem tão antigas quanto a própria existência, são sábias e ardilosas, tentando o tempo todo seduzir aqueles que padecem de provações e, por isso, estão fracos em sua fé... Conhecendo nossas fraquezas, nosso Salvador nos aconselhou a orar e vigiar sempre.
Vendo que a criança ainda vivia e sem querer responder à última pergunta dela, Padre João pediu licença e dirigiu-se até a igreja para as orações do Ângelus.
Como o tempo estava fechado e a chuva não dava trégua, Dominguin, que estivera ao lado de Gardênia quase todo o tempo, conseguiu convencê-la a passar a noite na humilde casa paroquial. Ele prometeu que, na manhã seguinte, a acompanharia no trajeto de volta até sua casa. Com certa relutância – mas, principalmente, pensando na languidez do filho e na esperança de seu restabelecimento, que, mesmo com todos os seus esforços, demonstrava não apresentar nenhuma melhora – Gardênia decidiu pernoitar, resolvendo iniciar o retorno ao lar nas primeiras horas da manhã seguinte. Ela sabia que, certamente, entre as diversas beberagens de seu pai, haveria alguma que pudesse restituir a saúde do filho.
Foi uma noite longa e cheia de pensamentos inquietos. Seu filho tivera uma noite bastante atribulada, gemendo e se mexendo o tempo todo, enquanto dormia um sono pesado e repleto de delírios. Já na alta madrugada, mesmo se sentindo exausta pela vigília ao lado do filho, ao perceber que ele dormia profundamente e que Dona Diolinda zelaria por ele em sua breve ausência, Gardênia decidiu ir até a igreja para um momento de reflexão solitária.
Essa bondosa e sábia senhora, que se mostrou prestativa desde que eles chegaram, esteve sentada em uma cadeira, num canto distante, com o terço nas mãos, rezando o tempo todo. Contudo, as intenções de Gardênia foram frustradas ao se deparar com Padre João, que estava em vigília no genuflexório, em profunda oração.
Após um longo período sentada no fundo, bem distante do altar, na silenciosa penumbra da igreja – que, naquele momento, estava iluminada apenas por uma única vela bruxuleante –, Gardênia decidiu se aproximar, a fim de usufruir da confortável companhia do reverendo. O sábio padre, percebendo sua presença, virou-se em sua direção e disse:
– Seja sempre bem-vinda à casa do Senhor. Que a paz de Cristo possa reinar em seu coração.
– Sei que você parece bastante confusa com tudo o que aconteceu a seu pai, mas preciso lhe contar algumas coisas que talvez possam ser úteis no esclarecimento deste mistério. Talvez o que eu vá relatar sirva como resposta à pergunta que me fizeste anteriormente. Depois de muita reflexão e de uma profunda conversa com Deus, sinto-me em paz e confiante no que vou lhe dizer sobre seu pai. Independentemente do que vou relatar, quero que ouça em silêncio e tente abrir seu coração para o que vou contar. E prometa-me que jamais ouse compartilhar isso com quem quer que seja, pois o que estou prestes a dizer foi-me confiado em segredo de confissão. No entanto, a situação me obriga a colocá-la a par de tudo que aconteceu desde o início. Em respeito à memória de seu pai, apenas ouça.
– Quando conheci seu pai, há muitos anos, bem antes de você nascer, ele era um homem alegre e cheio de sonhos. Onde quer que estivesse, sua presença era sempre acompanhada de alegria e muito entusiasmo, e era adorado por todos. Sua mãe era uma mulher belíssima, na flor da idade, apaixonada tanto por seu pai quanto pela vida que ele proporcionava a ela. Quando chegaram a esta terra, vindos de longe, trouxeram consigo uma distinta senhora, que tinha a ambos como filhos. Sua família parecia ser a mais abençoada de todas, e essa bênção tornou-se ainda maior com a sua chegada.
– Eu mesmo – a pedido de sua mãe – tive o prazer de batizá-la com o nome que seu pai escolhera em homenagem à flor que sua mãe mais amava.
– Por um bom tempo, a paz e a bonança fizeram morada em seu lar. A felicidade de sua família parecia completa e inabalável. Mas logo uma sombra se abateu sobre sua casa. Primeiro, a gentil senhora, que em pouco tempo conquistou o respeito e a simpatia de todos na região, se foi, deixando sua mãe completamente arrasada, pois a tinha como uma mãe. Depois veio a terrível moléstia que acometeu sua mãe, tolhendo não apenas sua vitalidade, mas também sua juventude e beleza. E, por fim, com a morte de sua mãe – para ela, um merecido descanso, depois de tanta dor e sofrimento – veio a momentânea loucura de seu pai.
– Essa loucura foi vista por muitos como uma simples fuga da realidade; um mecanismo de defesa contra os golpes excessivamente graves que o destino lhe infligira e que ele, por um breve momento, não teve forças para enfrentar com lucidez...
– Por várias vezes fui até seu pai, tentar levar algum conforto a ele. Mesmo com a enorme distância entre sua casa e aqui, eu era jovem na época e ainda contava com força e disposição. Todavia, minhas visitas mostraram-se em vão. Quando eu já estava me dando por vencido, recebi a visita de seu pai nesta mesma igreja. Antes de entrar, ele permaneceu um longo tempo à porta, relutante em pisar neste solo sagrado, embora já o tivesse feito muitas vezes antes.
– Quando o questionei sobre o motivo de tanta relutância, ele me respondeu que talvez não fosse mais digno de adentrar à casa de Deus na situação em que se encontrava. Só entrou quando eu lhe disse que nossa verdadeira dignidade está no espírito e nas intenções de nossas ações, e não em nossa aparência ou condição momentânea. Disse ainda que cada ação humana é movida por motivo e oportunidade, e que nada é por acaso. A casa de Deus é um refúgio para pecadores em busca de redenção. Todo aquele que se sente cansado e oprimido encontrará alívio ali, e todo aquele que estiver em profundo arrependimento encontrará o perdão para os seus pecados.
– Seu pai, parado defronte ao altar, com o olhar perdido no vazio, me disse que, para certos pecados, mesmo o mais profundo e sincero arrependimento não traria perdão. Quando tentei dissuadi-lo de sua convicção, ele pediu que ouvisse sua confissão antes de dizer qualquer outra coisa. Em qualquer diálogo, é sensato falar e ouvir, mas é mais sábio aquele que sabe ouvir mais e falar no momento certo. Então, assim o fiz: ouvi toda a sua confissão no mais absoluto silêncio.
Padre João ficou em silêncio por um longo tempo. Seu mutismo foi tão extenso que Gardênia imaginou que ele talvez tivesse adormecido ao som de suas próprias palavras. Mas, antes que ela dissesse qualquer coisa, ele continuou:
– Seu pai, vendo o sofrimento infligido a sua mãe, não teve a fé necessária para enfrentar aqueles momentos de tribulação e fez uma escolha... O passado permanece no passado. Podemos aprender com ele, mas não podemos mudá-lo. Filha, tudo o que acontece em nossas vidas é regido pelo nosso sagrado livre-arbítrio. Um grande contexto de causas, escolhas e consequências. Jamais se deixe levar pelo desespero; Deus estará sempre contigo. Assim que seu filho se restabeleça por completo, volte para sua casa e siga sua vida em paz.
Depois de mais um momento de silêncio, ele prosseguiu:
– Percebi que o jovem Daniel, recém-chegado da capital, tem grande apreço por você. Pelo que vi, está disposto a acompanhá-la de volta e a tentar lhe dar algum conforto. Pelo que sei sobre ele, é um bom rapaz. Abra seu coração, aceite sua amizade e suas boas intenções.
– O conheci ontem mesmo e vi bondade e boas intenções em seu coração. É realmente um rapaz adorável. No entanto, todos os homens são assim no início, até conseguirem o que realmente desejam – disse Gardênia, de forma decidida, saindo da igreja ainda sem as respostas que tanto ansiava. O sábio reverendo havia falado muito, mas, no final, parecia não ter dito nada.
Sabendo que, em determinadas situações, o silêncio e a solidão eram as melhores companhias, decidiu caminhar um pouco para espairecer suas ideias e refletir sobre como sua vida seria dali em diante. A chuva dera tréguas naquela madrugada, e o céu, limpo por quase completo, deixava uma lua em quarto crescente brilhar soberana sobre ela. Perdida em seus pensamentos, caminhando sozinha a esmo, deu por si defronte ao pequeno portão do cemitério, onde o corpo de seu pai deveria ter sido enterrado naquela tarde.
Mesmo ali, sozinha, em plena madrugada, nada temia. No fundo de sua alma, sabia que nenhum mal lhe poderia ser maior do que o que já enfrentava e que, talvez, restassem-lhe poucas razões para viver. Perdera a mãe antes mesmo de poder conhecê-la direito; sua vida amorosa fora um completo fracasso; seu pai, que sempre fora seu esteio, já não estava mais entre os vivos – talvez nem mesmo entre os mortos. E seu filho amado, o único parente que ainda lhe restava, caminhava cambaleante pelo vale da sombra da morte. Naquele instante, tudo o que via em seu futuro era escuridão e sofrimento.
Fechou os olhos, perdida em seus pensamentos, e deixou-se levar pelo frescor de uma leve brisa que soprava em sua face, enquanto ouvia o intenso barulho das diversas criaturas da noite em sua constante serenata ao luar. Ainda de olhos fechados, parada diante da entrada daquele sagrado lugar de descanso, murmurou para si mesma:
– Eu daria qualquer coisa para que todo esse sofrimento acabasse.
Por um breve momento, sentiu que a paz tomava conta de todo o seu ser. No entanto, essa paz foi interrompida por um silêncio estranho que se fez ao seu redor. Todas as criaturas se calaram, e ela pôde ouvir passos em sua direção.
Ao abrir os olhos, deparou-se com um ser de beleza inigualável. Era um homem de presença marcante, alto e forte, com belos cabelos cacheados na cor do mais puro ouro. Sua face lisa tinha traços delicados, e seus olhos tinham o tom do céu em uma primavera ensolarada. Quando gentilmente a cumprimentou com um sorriso indulgente, deixou à mostra dentes alvos e perfeitamente alinhados, delineados por sedutores lábios na cor de carmim.
Sua voz era doce como o entoar de um pássaro ao amanhecer.
– Boa noite, bela dama. O que fazes, sozinha, caminhando a esmo em horas tão tardias?
– Boa noite. Precisava de um pouco de ar fresco para espairecer minhas ideias. Tenho enfrentado penosas atribulações. Sinto-me cansada e oprimida, buscando paz na silenciosa solidão da noite – respondeu ela, sem sequer questionar quem ele era ou por que também estaria ali.
– Salvo engano, tenho a impressão de tê-la visto saindo da igreja há pouco. Não é justamente lá onde se encontra a paz e o conforto? – questionou ele, com um sorriso malicioso.
– Certamente que sim, principalmente para aqueles que acreditam... Perdi minha mãe, quando ainda era uma criança. Tive minha inocência vilmente violentada. Perdi meu amado pai há dois dias. Até mesmo seu próprio corpo foi levado, sem receber os devidos respeitos de um enterro digno. Meu filho jaz à beira da morte, padecendo os efeitos do veneno de uma víbora. Neste momento, sinto, no mais profundo do meu ser, uma indescritível descrença em toda e qualquer promessa vazia que tange ao abstrato. Vi, com meus próprios olhos, aqueles que levaram meu pai. Contemplei também a serpente que atacou meu filho. Não há lugar em meu coração para promessas vazias. Aos poucos, meu mundo tem sido tirado de mim... – Suas palavras foram interrompidas pela força da emoção, enquanto as lágrimas banhavam seu rosto.
– Dar-te-ei o alívio que procuras, se assim o desejares! – disse ele, fitando-a nos olhos.
– Não peço nada por mim. Não há nada que poderíeis oferecer a mim mesma. Desde sempre, a dor e o sofrimento me fazem companhia. Se há algo que possa me oferecer, peço pelo meu filho. Seu sofrimento traz-me uma dor que nada neste mundo poderia ser pior. Mas, afinal, quem sois? Por que me atormentais desta forma, oferecendo aquilo que não podeis conceber? – disse ela, irritada por se deixar levar pela conversa de um estranho.
– Quem sou, não importa. O que posso oferecer, sim. Apenas peça aquilo que vosso coração deseja, e contemplai com vossos próprios olhos o que meras palavras não podem mostrar – disse ele.
Por um breve momento, ela lhe deu as costas e começou a se afastar. No entanto, o instinto de mãe falou mais alto, e ela voltou-se novamente para aquele belo ser:
– O que quereis de mim? De que forma achais que poderíeis me ajudar? Parece que não ouvistes uma palavra sequer do que eu disse. Não vedes que nada, nem ninguém neste mundo, poderia me ajudar? Deixai-me em paz e apenas segui vosso caminho.
– Sabemos tudo sobre vosso pai e o que aconteceu com ele. Seu corpo foi tomado como recebimento de uma dívida antiga. Saiba que ele foi um homem honrado e cumpriu, durante sua vida, todas as suas obrigações. No entanto, para vós, o fim é iminente. Mas o trabalho dele deve continuar. O que queremos é que sigais o mesmo caminho trilhado por ele. Nada mais desejamos. Em troca, poderemos vos dar tudo aquilo que desejardes! Desejai, e vereis – disse ele, num tom imperativo.
– Como assim? Que história é essa sobre meu pai? Que tipo de trabalho é esse? Que dívida é essa? E por que falais no plural, se apenas vos vejo diante de mim? Quem sois? – questionou ela, já bastante irritada.
– O Senhor é Deus. Eu não sou ninguém, mas nós somos muitos... Apenas desejai! – disse ele.
Gardênia, bastante irritada e já sem paciência, decidiu pôr fim àquilo. Fitando os olhos do estranho, sem demonstrar qualquer traço de medo, disse, por fim, num tom de desafio:
– Então, vamos lá. Sendo assim, eis-me aqui. Sim, eu quero! Acabai com todo o sofrimento de meu filho, e farei tudo o que me pedirdes!
Sua voz era doce como o entoar de um pássaro ao amanhecer.
– Boa noite, bela dama. O que fazes, sozinha, caminhando a esmo em horas tão tardias?
– Boa noite. Precisava de um pouco de ar fresco para espairecer minhas ideias. Tenho enfrentado penosas atribulações. Sinto-me cansada e oprimida, buscando paz na silenciosa solidão da noite – respondeu ela, sem sequer questionar quem ele era ou por que também estaria ali.
– Salvo engano, tenho a impressão de tê-la visto saindo da igreja há pouco. Não é justamente lá onde se encontra a paz e o conforto? – questionou ele, com um sorriso malicioso.
– Certamente que sim, principalmente para aqueles que acreditam... Perdi minha mãe, quando ainda era uma criança. Tive minha inocência vilmente violentada. Perdi meu amado pai há dois dias. Até mesmo seu próprio corpo foi levado, sem receber os devidos respeitos de um enterro digno. Meu filho jaz à beira da morte, padecendo os efeitos do veneno de uma víbora. Neste momento, sinto, no mais profundo do meu ser, uma indescritível descrença em toda e qualquer promessa vazia que tange ao abstrato. Vi, com meus próprios olhos, aqueles que levaram meu pai. Contemplei também a serpente que atacou meu filho. Não há lugar em meu coração para promessas vazias. Aos poucos, meu mundo tem sido tirado de mim... – Suas palavras foram interrompidas pela força da emoção, enquanto as lágrimas banhavam seu rosto.
– Dar-te-ei o alívio que procuras, se assim o desejares! – disse ele, fitando-a nos olhos.
– Não peço nada por mim. Não há nada que poderíeis oferecer a mim mesma. Desde sempre, a dor e o sofrimento me fazem companhia. Se há algo que possa me oferecer, peço pelo meu filho. Seu sofrimento traz-me uma dor que nada neste mundo poderia ser pior. Mas, afinal, quem sois? Por que me atormentais desta forma, oferecendo aquilo que não podeis conceber? – disse ela, irritada por se deixar levar pela conversa de um estranho.
– Quem sou, não importa. O que posso oferecer, sim. Apenas peça aquilo que vosso coração deseja, e contemplai com vossos próprios olhos o que meras palavras não podem mostrar – disse ele.
Por um breve momento, ela lhe deu as costas e começou a se afastar. No entanto, o instinto de mãe falou mais alto, e ela voltou-se novamente para aquele belo ser:
– O que quereis de mim? De que forma achais que poderíeis me ajudar? Parece que não ouvistes uma palavra sequer do que eu disse. Não vedes que nada, nem ninguém neste mundo, poderia me ajudar? Deixai-me em paz e apenas segui vosso caminho.
– Sabemos tudo sobre vosso pai e o que aconteceu com ele. Seu corpo foi tomado como recebimento de uma dívida antiga. Saiba que ele foi um homem honrado e cumpriu, durante sua vida, todas as suas obrigações. No entanto, para vós, o fim é iminente. Mas o trabalho dele deve continuar. O que queremos é que sigais o mesmo caminho trilhado por ele. Nada mais desejamos. Em troca, poderemos vos dar tudo aquilo que desejardes! Desejai, e vereis – disse ele, num tom imperativo.
– Como assim? Que história é essa sobre meu pai? Que tipo de trabalho é esse? Que dívida é essa? E por que falais no plural, se apenas vos vejo diante de mim? Quem sois? – questionou ela, já bastante irritada.
– O Senhor é Deus. Eu não sou ninguém, mas nós somos muitos... Apenas desejai! – disse ele.
Gardênia, bastante irritada e já sem paciência, decidiu pôr fim àquilo. Fitando os olhos do estranho, sem demonstrar qualquer traço de medo, disse, por fim, num tom de desafio:
– Então, vamos lá. Sendo assim, eis-me aqui. Sim, eu quero! Acabai com todo o sofrimento de meu filho, e farei tudo o que me pedirdes!
Antes mesmo de terminar de proferir essas palavras, uma coruja, que assistia a tudo em absoluto silêncio, arrulhou em agouro, levantando voo de onde estava assentada. Sobrevoou sobre sua cabeça e pousou no galho de uma velha paineira que se erguia dentro do cemitério. O feito daquele misterioso pássaro desviou momentaneamente sua atenção e, ao olhar novamente ao redor, viu-se mais uma vez sozinha perante a porta do reino dos mortos.
Temendo ter sido acometida por algum tipo de alucinação, visão ou algo que o valha, e acreditando que talvez já não fosse senhora de suas faculdades mentais, sentiu-se tomada por um surto de loucura – tal qual seu próprio pai, certa vez acometido. Decidiu, então, retornar imediatamente para perto do filho, na esperança de ajudá-lo de alguma forma.
Antes mesmo de chegar à igreja, avistou, ainda ao longe, Padre João na porta de entrada, vindo em sua direção com a cabeça baixa. Naquele instante, seu coração quase parou, o ar lhe faltou, e suas pernas fraquejaram. Quando o padre enfim falou, ela estava de joelhos diante da porta da igreja.
– Minha filha, sinto muito em dizer-lhe... seu filho já não sofre mais...
…O pior de tudo era ter que voltar para casa de mãos abanando e sem nenhum argumento que pudesse lhe valer, e ser obrigado a contemplar o olhar de…