Uma criatura disforme

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula
Violentei a tela alva com fortes estocadas do pincel. A intenção era descarregar todas as amarguras que insistiam em me assolar naquele dia. A memória, tal qual um inquisidor implacável, empurrava-me contra os pregos da dama de ferro que eram os meus traumas, num abraço frio e mortal, enclausurando-me dentro de mim. “Deveria eu continuar lidando com essa tortura?”
Parei. Nada de útil surgiria daquele amálgama disforme e colorido. Frustração. Também não conseguira escrever nada naquele último mês: “Ah, quão maldito é o trabalho que exige criatividade extrema, por que raios me enfio nessas empreitadas?”, flagelava-me quando não tentava, castigava-me quando pensava em desistir. Minha vida era essa constante luta interna do eu contra mim.
Enquanto saía do meu ateliê, Lisa, minha gatinha preta e carente, esfregava-se em meio às minhas pernas, ronronando e derretendo as geleiras que esmagavam meu coração. Lembro-me que perdi o equilíbrio e quase fui ao chão.
— Ah Lisa, para com isso. — disse-lhe, mas só para reforçar a minha necessidade por reclamar. Agradeço por ela ser teimosa e determinada, porquanto nunca irá parar. Sim, ela está aqui comigo. O Castelo Drácula abriga todo tipo de criatura, por que não uma gata?
Um banho. As águas calorosas tinham propriedades curativas, o vapor, poder de reorganizar e remontar minha psiquê, deixando-me próximo a um ser humano que não havia sido quebrado.
Com um mínimo de bom humor restabelecido, resolvi ir ao pub, uns goles do amargo gin afogariam os sentimentos claustrofóbicos. Ah, as propriedades lisérgicas das bebidas etílicas!
Eu adorava aquele local. Tinha uma fachada discreta e paredes de tijolos escuros, o típico lugar onde um desavisado não entraria, pois não parecia ser um bar. Essa sensação de entrar em algo secreto e exclusivo me apetecia. Viva a curiosidade. Lá dentro, as luzes baixas, emulavam a ideia de um sonho sombrio, atmosférico e intimista, onde cada canto parecia envolto em uma penumbra vermelha, verde e roxa, realçada por velas e luzes de néon.
Os bancos eram de couro preto, ligeiramente rasgados pelo tempo e uso, mas ao aconchegar-me ali sentia que o mundo parava ao meu redor. Nas paredes, pôsteres de bandas lendárias como Black Sabbath, Iron Maiden e Slayer se misturavam a quadros de arte sombria e psicodélica, muitos criados por artistas locais, inclusive por mim. Ah, como almejava resgatar os tempos áureos, onde minha inspiração quase não me cabia.
Uma jukebox tocava uma seleção pesada e interessante, variando entre black metal, doom metal, sludge metal e alguns clássicos do heavy metal, que faziam todos cantarem juntos. Às vezes, bandas ao vivo tocavam em um pequeno palco no fundo, iluminado por luzes vermelhas e verdes, com espaço suficiente para àqueles que queriam aproveitar o som e aquela atmosfera inebriante.
No balcão, as bebidas eram diversas: cervejas artesanais escuras, drinks com nomes inspirados em mitologia nórdica e shots que queimavam a garganta. As prateleiras atrás do bar exibiam garrafas de rum, whisky e absinto. Quantas vezes saí de lá arrastando-me, mas nunca carregada, encontrava forças que nem sabia existir para manter a minha suposta dignidade.
No banheiro, as paredes eram cobertas de grafites e adesivos de bandas, como se cada pessoa que tivesse passado por ali tivesse deixado sua marca. Era um espaço onde todos eram livres para ser quem eram, cercados pela energia sombria e autêntica do metal e do álcool. Sinto saudades desses momentos.
Bebi. Já que as águas anteriores não quiseram lavar minhas dores, eu as sufocaria com os líquidos, música e tola autocomiseração. Não me recordo do nome da banda que tocava naquela noite, mas ainda guardo a boa sensação despertada a cada acorde, os meus pesares sendo levados a cada gutural ostensivo do frontman.
Retornei para casa em estado de evidente embriaguez, mas sentia-me quase levitar sob o céu que eu mesma concebi. Meu lar recebeu-me com silente afago, e eu me rendi ao seu cálido abraço. Transcorrido um tempo que não mensurei, de repente, senti correr em minhas veias a vitalidade de uma artista em ascensão, poderosa – como se uma entidade houvesse adentrado e possuído meu corpo.
Corri para o ateliê, dentro das possibilidades de locomoção que aquele estado me permitia, mas corri, como se minha vida dependesse daquele ato sem propósito. O que avistei fez-me questionar minha frágil sanidade, entretanto, sua presença imagética imobilizou-me.
À meia-luz, um movimento sutil tomou forma na tela. O contorno difuso se agitou, e uma figura começou a emergir, como se o quadro estivesse se dissolvendo em sombras. Lentamente, revelou-se — uma entidade envolta em um manto de trevas, os contornos do rosto delineados apenas por um brilho espectral. Seus olhos eram como fendas de névoa prateada que parecem absorver um pouco da luz da sala, hipnotizando-me. Estendeu uma mão fina e esquelética, atravessando os limites entre o quadro e o mundo real. Era meu chamado.
Com uma voz baixa e aveludada, que parecia ecoar em minha mente, convidou-me para morar no Castelo Drácula. As palavras pareciam feitiço. Um calafrio percorreu minha pele, mas não era medo — mas uma curiosidade irresistível, uma necessidade profunda e incontrolável de segui-lo. Sem hesitar, deixei-me guiar para dentro da tela, desaparecendo na escuridão que a envolvia. Lisa não se atreveria a me deixar só e saltou comigo rumo a um destino incerto.
Quem era, afinal, a tal criatura disforme, oriunda das pinceladas na tela profana, criadas em meio ao meu desvario? Hoje, pronuncio seu lindo nome sem medo, encontrei beleza no estranho e serenidade no desconhecido: Espectumbral.
Texto publicado na Edição 11 - Somníria, do Castelo Drácula. Datado de dezembro de 2024. → Ler edição completa
Michelle Santos Nascimento é paulistana, mãe, esposa e amante das artes, em todas as suas formas de expressão, desde que aprendeu que há todo um universo fora dela. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas…
Leia mais em “As Crônicas do Castelo Drácula”:
Ela se levantou, estendeu sua mão direita em minha direção. Seus lábios exibiam um sorriso acolhedor, mas que escondia algo. Por fim, acatei seu convite…
Minerva dormia pairando no reino do inconsciente, ela se via imersa em um sonho inusitado, um devaneio que parecia adentrar a alma…
No sangue e no doce, renasce o profeta, | um coelho vingador, ceifador do planeta. | Laparus, um outrora humano exilado pela ganância e hipocrisia dos homens…
Sem Data — Já não sabia se era noite ou dia. As trevas da cela ocultavam até o tempo de minha mente. O ar da cela era denso, imóvel, como se…
Minha cabeça dói exacerbadamente. Não sei por quantas horas dormi — só sei que gostaria de ter permanecido lá, mesmo que isso significasse a morte…
Saímos de onde Arturo estava. Aquele breve encontro com ele me deixou inquieta…
A escuridão daquela noite me envolvia tal qual um abraço mortal, expulsando qualquer vestígio de sono. Desci em busca de um alívio…
Nas sombras da meia-noite ecoa o véu, | Sussurros antigos de um segredo perdido, | O ovo cósmico, de poder contido, | Revela o destino que à morte é fiel…
Na calada da noite, Arale Fa’yax se viu diante de um pergaminho envelhecido, encontrado casualmente próximo à cenoura do jardim do Castelo Dracula…
Um abrupto sopro de vida e meus olhos foram circundados pelo lume de um dia nublado. Eu dormia? Ao derredor, um cemitério árido e lúgubre descansava…
Sem Data — O peso da vigília sufocava-me. O braço esquerdo, pesado como chumbo fundido, resistia a qualquer comando, uma prisão de carne e…
08 de janeiro? — A criatura foi em direção ao monstro, segurando o lampião que emanava uma luz azulada. Eu estava tonta e não conseguia me levantar…
Velian caminhava entre as sombras de Fortaleza, sentindo o cheiro de maresia misturado ao ferro enferrujado dos portos e ao suor adocicado…
Desperto mais uma vez em meus aposentos, e o que presenciei em Somníria reverbera em minha mente como uma tristonha canção…
O castelo tinha encantado Minerva de uma maneira tão sublime que fez com que ela decidisse residir ali por algum tempo, completamente…
Em que ponto do espaço e tempo nós estamos? Não há nenhuma ciência empírica para descrever o porquê destes dois sóis. Agarro-me a uma…
Nos ermos turvos, sob a névoa espessa, | Engrenam-se os dias num ciclo enferrujado, | corações de cogs, reluzindo em pressa, |
pulsam mecânicos num tempo quebrado…
Após vagar durante anos, aprendendo tudo que eu podia a respeito da humanidade e de seus costumes, eu já tinha a maestria de caminhar…
Há os que dizem que aqueles pequenos momentos que antecedem a morte são os que mais trazem esclarecimento, mas para mim…
Estou diferente. Não sei dizer exatamente o que, mas estou. As interações com o ambiente parecem ter adquirido novas roupagens…
“Cautela; à dor pertence tudo o que se é — e nas sombras do ser há uma angústia imorredoura. Ainda assim, há contento ao sentido. Veja-me, desvele-me na…
17 de agosto de 1871 — Minha chegada a solo romeno fora tardia. O inverno implacável no norte da Alemanha atrasara minha jornada em vários…
Um manto de neve recobria um vilarejo de casebres simplórios, o aspecto da neve transformava as casas de madeira em pequenas silhuetas…
Na penumbra úmida do Castelo Drácula, Arale Fayax, a felina xamã viajante e hospedeira do alcácer noturno, debruçou-se sobre um diário poeirento, oculto…
O desassossego noturno retornou para açoitar-me. Inicio meu relato desculpando-me pelos prováveis lapsos de memórias e confusões textuais…
Nos últimos meses, Velian entregou-se a um jogo silencioso de morte e desejo nos becos e esquinas da Fortaleza. Sua fome de sangue, antes um ritual…
A matéria que suavemente vela o meu corpo, fora feita da suprema energia que permeia o universo. Sou um navegante do tempo a brindar com esferas…
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…
Uma monodia litúrgica bizarra atravessara nossas almas, tão mais que os tímpanos. A morte parecia habitar o derredor, as velas tremeluziam…