Diário de Anto Stefan Miahi II
Diário de Anto Stefan Miahi II
(Anotações em folhas soltas)
21 de junho de 1871 - Por alguma razão, desde que cheguei a este castelo, sinto ter perdido algo mais que meu bom senso. Nesta manhã busquei meu caderno, que uso há algum tempo para escrever meus pensamentos, e não pude localizá-lo em parte alguma de minha habitação. Tirei do armário as roupas, joguei gavetas para todos os lados e nada de encontrar meu pequeno companheiro. Tive que recorrer às folhas soltas que encontrei na escrivaninha disposta defronte da cama, que por sorte também não são poucas, e posso gastar algum tempo nestes registros de minha aventura dos últimos dias.
Inicio este meu relato em meio a esta tarde de sol opaco e ventos uivantes com sinais sombrios de tempestade. Voltando para o dia 19 de junho, pela manhã despertei com alguma dificuldade. A minha mente estava nebulosa. O quarto estava em um completo breu, e pouca coisa conseguia ver. Alguns minutos se passaram até que pude realmente abrir meus olhos sem me sentir dentro de um maldito barco. Meus hábitos como militar me fazem levantar da cama às cinco da manhã. Nem mesmo o galo é tão pontual quanto um militar bem doutrinado.
O que a rotina e a repetição fazem com o indivíduo? Resultam em uma clara domesticação do homem selvagem e brutal, criando nele o senso de civilidade e consonância social que passam a ser demasiadamente enraizados em sua alma, e ele cria estima por eles. Bem, isso parece lógico.
Devo dizer que este lugar é impressionante por si só. De onde estou, posso ver uma cadeia montanhosa com seus altos pontos completamente brancos, verdadeiros gigantes adormecidos. O quarto está bem-posicionado, devo dizer. O Sol, por detrás daqueles picos majestosos, tira o ar de tão impressionante que é.
Após estes momentos de percepção e admiração que nunca foram de meu interesse, mas que neste momento sinto que devo pontuar, volto ao castelo propriamente dito. Os corredores exibem tapetes vermelhos e tapeçarias que parecem retratar e remontar as gerações anteriores que aqui viveram. Os móveis dispostos neles são elegantes, com desenhos em baixo relevo. Parece que em todo lugar que olho tem história, fatos. Ao que vejo, se for retirada uma pedra do seu lugar, talvez seja capaz de remontar a algum evento na antiguidade. Minha ansiedade é tanta que imagino que, em minhas pesquisas, eu possa descobrir que daqui veio algum Papa, ou um parente perdido de Joana D’Arc que buscava redenção para a pobre moça.
Caminhando pelo primeiro andar, pude notar um detalhe curioso nos quartos. Muitas portas estavam, não apenas fechadas, mas trancadas com chave. Dessas, algumas poucas, pude notar um odor incomum que logo desapareceu e que me fez lembrar os campos em que estive. Isso me estremeceu as pernas, um frio percorreu minha espinha, e, em pouco tempo, as lembranças vieram à minha mente. Dei dois passos para o lado, me apoiei no móvel que ali estava, e logo levei minha mão direita até minha face, cobrindo os olhos. Pouco tempo passou e voltei a mim.
Decidi que deveria descer. Já eram quase sete e meia da manhã, e não tinha a intenção de me atrasar para o café da manhã. Supus que deveria ser esse o horário para comer, já que, até este momento de minha exploração, não havia encontrado ou escutado uma única alma viva no corredor, nem mesmo nos quartos que estavam com as portas abertas ou destrancadas.
O castelo do Conde era realmente grande. Um convidado poderia se perder dentro dele. Isto constato ao pensar que ainda haveria dois andares para cima, o terraço, e as torres que dão mais um ou dois pisos para cima. Admito que desconsidero haver algo abaixo da terra, não me parece lógico. Contudo, não posso descartar por completo a possibilidade de que os criadores dessa construção tenham investido empenho e criatividade para agregar algo indo para baixo do térreo.
Desci lentamente as escadas que encontrei, torcendo serem elas que levariam à entrada, aos cômodos inferiores, onde se encontraria o grande salão para poder quebrar este meu jejum. Por sorte, tomei o caminho correto.
Me deparei com a grande porta de madeira maciça com belos umbrais entalhados que havia visto na noite anterior, antes do meu desmaio inusitado, que também irei pontuar mais para frente neste meu relato, que se mostra um fato com detalhes estranhos.
Da porta de entrada, em ambos os lados, disponha duas flâmulas curtas, do tamanho da altura da cintura de um homem adulto comum. As duas paredes laterais eram amplas e nelas estavam dispostas, em cada uma, duas flâmulas do mesmo tamanho, entre elas uma grande tapeçaria com o brasão que parecia ser da família do conde.
A imponência daquele ambiente era de deixar muitas famílias da nobreza francesa envergonhadas. Próximo a mim, em ambos os lados, havia passagens em arco, sem portas, para cômodos que poderiam ser explorados.
Olhei primeiramente para a esquerda; era um cômodo amplo, com uma mesa no canto oposto à porta por onde eu observava o interior, feita de madeira escura, sobre a qual estavam dispostos vários papéis e alguns livros. Atrás dela, uma poltrona do mesmo tom de verniz e madeira, com um grande encosto. Nela, estavam várias peles grossas, uma parecia ser de urso-pardo. No alto do encosto, estavam esculpidos dois corvos, um de frente para o outro, mas com as cabeças voltadas para baixo.
Nunca havia visto algo tão sombrio e incomum. Quanto ao cômodo em si, suas paredes estavam repletas de livros, cobrindo a totalidade das superfícies. Então, percebi uma porta ao fundo, não muito alta, de frente para o portal por onde eu observava. Ao lado dela, deparei-me com algo que parecia um corrimão entrando na parede, indicando um ambiente a mais em um cômodo oculto.
Antes que eu me desse conta, uma voz serena de barítono me tirou de minha exploração visual.
— O senhor é esperado neste aposento para o desjejum. — Apesar da voz calma e do tom educado, sua expressão facial era aterradora. Tinha olhos grandes, castanho-escuros, com órbitas afundadas. Sobrancelhas arqueadas, um nariz aquilino e um queixo curto. Os lábios eram finos e esbranquiçados, com as maçãs do rosto muito pronunciadas. A pele, sem muita cor.
— Oh…! Obrigado. — Minha voz saiu de sobressalto, e minha reação instintiva foi levar minha mão esquerda até a cintura em busca da bainha de minha espada. Para minha profunda frustração, ela não estava em seu lugar devido. — Quem é o senhor? — Questionei o homem diante de mim, vestido com trajes subalternos.
Ele sorriu, o que o deixou ainda mais assombroso, com um ar psicótico.
— Sou seu humilde servo, Narcís Nestor. E creio que o senhor seja Anton, certo? — Ele fez uma reverência um tanto longa enquanto falava, e ao término dela se endireitou. Era alto e magro, e suas roupas lhe davam um porte elegante e igualmente ameaçador. Seus cabelos, longos até os ombros, estavam presos em um rabo de cavalo com fios ruivos e ondulados.
Apenas assenti com um movimento de cabeça, confirmando sua informação.
— Venha por este caminho, cavalheiro. — Ele girou nos calcanhares e começou a andar sem me dar a chance de questioná-lo sobre qualquer outra coisa.
Ele me conduziu por um corredor sem janelas e, ao alcançarmos o meio dele, havia um portal, este com portas. Ele abriu ambas as portas, revelando uma sala de jantar espaçosa. No centro, uma grande mesa acomodava até dezesseis pessoas. A mesa era de carvalho em tom bege-claro, e as cadeiras completavam o conjunto na mesma cor. Na parede oposta à porta, havia uma lareira grande, acesa, e acima dela, um escudo com duas espadas cruzadas.
— Ao entrar, o ambiente estava quente e aconchegante. Olhei para cima, observando os detalhes o máximo que me era possível. O pé-direito daquele espaço era alto, com dois grandes lustres feitos de rodas de carroça, presos por correntes.
Mesmo naquela sala de jantar, o luxo não era escasso, pois notei grandes vitrais acima da porta. Nas bordas, o azul-índigo se destacava, enquanto o centro era de cristal, permitindo a visão do exterior, onde uma tempestade de neve se formava. No meio, um azul-escuro predominava, bloqueando a entrada da luz do sol. Além disso, cortinas duplas pendiam do ponto mais alto, cobrindo quase toda a janela. As cortinas mais grossas eram de um tom bordô profundo, de tecido que parecia veludo, enquanto as mais finas eram brancas, lembrando a neve que caía lá fora, feitas de seda.
O ambiente não parecia carecer de luz natural com todas aquelas velas e a lareira queimando lenha. Isso me fez perceber um detalhe que me havia escapado até então: muitas das janelas tinham esse mesmo tom escuro. Mesmo a do meu quarto possuía um tom azulado que deixava o ambiente mais sombrio.
— Aconselho que o senhor se sente neste lugar enquanto trazemos seu café da manhã. Já está ficando tarde e creio que esteja com fome, cavalheiro. — Ele apontou para uma cadeira que havia movido, indicando onde eu deveria me sentar. Sua expressão estava séria, apesar de tentar parecer convidativo e educado.
— Claro, evidentemente não queremos atrasar o café da manhã do Conde! — Tentei ver se Narcís dizia algo sobre seu mestre, já que até o momento ele não havia me fornecido nenhuma informação sobre ele ou sobre o castelo. — Não podemos fazer essa quebra de protocolo social.
— O mestre Drácula tem o hábito de comer em seus aposentos. Mas, ele lhe desejou um excelente desjejum. — Novamente, aquele sorriso que faria até um coveiro sentir arrepios na coluna.
— Que inusitado. Bem, diga ao Conde que também lhe desejo o mesmo e que gostaria de poder sentar-me com ele para conversarmos sobre o assunto que me trouxe até aqui. — Tentei dar meu melhor sorriso para a criatura ao meu lado, que estava arrumando meus talheres.
— Vou transmitir sua mensagem ao Conde. — Narcís se colocou ereto e seguiu em direção à porta na parede oposta àquela por onde eu havia entrado, mais próxima à parede à direita.
O mordomo Narcís caminhou rápido e silencioso, parando quase em frente à porta. Ele estendeu o braço para pegar um sino sobre um móvel ao lado esquerdo, e logo o fez soar. A porta se abriu com um forte rangido. Dela saiu uma senhorita de cabelos pretos, pequena e esguia, trazendo um carrinho com vários pratos e bebidas quentes. Ao se aproximar, pude observar melhor suas feições. Os olhos eram amendoados, de um tom de âmbar que eu nunca havia visto, tão intensos e atentos. As sobrancelhas eram retas, um pouco finas demais. O nariz era delicado, levemente aquilino. O queixo pontudo, com o lábio superior fino e o inferior carnudo.
Ela levava um tecido amarrado sobre a cabeça para prender o cabelo, e ao se aproximar para pôr a mesa que trazia no carrinho, notei que seus cabelos eram negros e ondulados.
— Obrigado, ficarei apenas com o café, a manteiga, alguns pães e talvez essa geleia que parece ser de mirtilo. — Busquei um tom gentil e a expressão mais sincera possível. Mas aquela senhorita mantinha o rosto sem emoções.
— Se é o que o senhor deseja. — A voz dela era de uma soprano, agradável de se ouvir, um verdadeiro contraste. Um choque.
— Por favor, qual é o seu nome? Eu me chamo Anton, é um prazer conhecê-la! — Tentei ser social e educado, mesmo parecendo que ela não permitiria que eu me aproximasse. Desejava poder conversar com alguém, já que minha tentativa anterior foi frustrada.
Apenas obtive um profundo e consternante silêncio por parte daquela jovem.
Naquele mesmo dia ao entardecer - Devo dizer que me senti compelido a retornar ao meu quarto após o almoço e após abrir mais alguns livros da biblioteca. Tem sido uma exploração frutífera. No entanto, uma inquietante sensação vem dominando meus pensamentos. A lástima é que ainda não pude perceber a razão desses pensamentos ou mesmo sua fonte, se ela habita em mim ou é proveniente de algo externo. O que acalma meu espírito é estar neste quarto com a caneta, a tinta e o papel ao meu alcance.
Voltemos ao dia 19 de junho.
Apesar de minhas tentativas de criar vínculo com os empregados do castelo terem sido um completo fracasso, naquele dia Marcos, após o desjejum, me guiou para outra sala que eu havia observado antes. Ele disse que eu poderia acessar todas as obras dispostas neste cômodo e que em outro momento me levaria a uma sala ainda maior, contendo obras raras que o conde mantinha apenas para si, mas que, por conta de minha presença, estaria inclinado a abrir para que eu pudesse investigá-las.
Eu não havia visto a totalidade daquela sala. À esquerda da porta, ao fundo, havia uma curta escadaria em L que avançava para dentro e para cima da parede, acima da porta, como um patamar com mais prateleiras e livros que só se podia notar ao adentrar o ambiente. O andar inferior tinha pé-direito alto, e ao lado da mesa havia duas janelas em arco de dois metros e, entre elas, uma porta de vidro que levava ao pátio, além de outra pequena, de madeira, que não ousei verificar.
Desde o andar de baixo até o de cima, do piso até a metade da altura de um homem adulto, as paredes eram revestidas com uma madeira caramelo formosa e bem cuidada. O patamar superior tinha um pouco menos de um metro e noventa de altura, o que me fez desviar dos candelabros presos nas colunas quando subi para explorar.
O que me surpreendeu foi que cada volume estava bem cuidado, suas capas pareciam novas, com sinais de pouco uso. O conde deve ser rigoroso com a conservação das obras mantidas aqui em seu castelo.
As horas passaram enquanto eu verificava cada obra naquela imensa sala. Levaria um longo tempo até que eu revisasse cada livro ou, no mínimo, juntasse os que realmente me interessavam. Ao olhar para o exterior pelas janelas da porta, percebi que já estava escurecendo. No pico das montanhas, a luz começava a desaparecer, e fiquei hipnotizado por aquela vista.
Então, uma voz profunda e calma quebrou meu transe.
— Espero que não esteja interrompendo, senhor Anton? — Por um instante senti que meu corpo se congelava, no entanto não durou muito. Uma voz, apesar de grossa, era firme, capaz de fazer o silêncio reinar com apenas uma palavra numa estalagem cheia de bêbados.
Dei meia volta para ver quem falava, apesar do susto. Ele estava parado no patamar superior, escorado no guarda-corpo, com um livro na mão. Sua altura era menor que a minha, o corpo um tanto esguio, com tudo estava bem trajado com uma camisa branca e um colete de dois tons pelo que parecia, preto nas costas e vermelho na frente. Os cabelos pretos e levemente ondulados e um tanto longos caíam sobre os ombros.
— Sou um homem de hábitos noturnos, para a infelicidade de meus convidados. — Ele virou o rosto ficando de perfil de frente com uma lâmpada que estava a menos de um metro dele pendurada na coluna, revelando uma aparência surpreendentemente jovial. O bigode e cavanhaque bem aparados mostrando refino como evidência de sua vaidade, assim sendo esperado de alguém que vinha de uma da alta sociedade. A pele parecia de marfim, de um aspecto fantasmagoricamente translúcido, como se os raios dourados carregados por Apolo jamais a tivessem tocado. Seus lábios finos e brancos pareciam sem vida, e seu nariz aquilino deixava sua expressão severa, algo enigmático, que me causava calafrios por toda a espinha. Ele me observava de soslaio, dando-me a impressão de pouco interesse.
Sua presença era imponente, inundava a biblioteca, dando-me a triste impressão de estar na companhia de um animal selvagem, um indivíduo de poderes não mensuráveis, pronto para me atacar. Meus instintos mais íntimos gritavam freneticamente para que eu saltasse pela porta de vidro às minhas costas, enquanto meu treinamento me compelia a manter a posição e enfrentar meu temor, como fiz tantas vezes diante dos estrondosos gritos dos inimigos de Napoleão e das baionetas dos prussianos.
— O senhor me pegou desprevenido… — Minha voz saiu rouca, porém o mais firme que consegui. Fitei seus olhos, que pareciam de um tom quase âmbar, vivos, atentos, de uma profundidade assombrosa. Parecia ler minha intenção combativa. O conde havia movido apenas a cabeça para olhar minha pobre existência confrontando sua magnitude. — Devo supor que seja meu estimado anfitrião, que vi na minha primeira noite e com quem, por alguma infelicidade, não pude trocar muitas palavras. — Neste momento, escapou dos lábios dele um sorriso sem jeito. Tentei recobrar minha dignidade e civilidade perdida com o susto.
Vlad então fechou o livro que estava em suas mãos e começou a descer a escada oculta atrás da parede. O que me assombrou de sobremaneira foi a completa ausência do som de seus passos na escada de madeira. Parecia caminhar como um gato. A sensação de perigo voltou a invadir minha mente, meu coração acelerou, e instintivamente me movi para a frente da grande mesa. Minha mão esquerda mais uma vez buscou a bainha de minha espada, e novamente sua falta me deixou frustrado, fazendo-me sentir nu, desprovido de proteção, à mercê de quaisquer poderes que o conde Drácula pudesse tentar contra mim.
Mesmo ele sendo menor que eu na altura e, naquele momento, estando na escada à minha frente, aquele sentimento opressor não se amenizava. Quando a silhueta de Drácula se delineou na curva do L da escadaria, seus olhos ganharam um estranho brilho amarelo. Uma emanação que não encontro outra palavra para descrever, senão espiritual. Como pequenas pedras em sua face que emanavam uma presença aterradora. Naquele momento, meu ceticismo quase cedeu aos mitos contados pelas ciganas das periferias de Paris sobre as lendas dessa terra estranha.
Seu corpo, não muito mais alto que um metro e setenta e cinco, alcançou a luz do andar de baixo, e sua face havia mudado completamente, ganhando ares mais suaves. Seu porte tinha uma elegância incomum, e seu caminhar era calmo, demasiadamente sereno.
— Ora… Devo assumir que este sou. Seja bem-vindo oficialmente ao meu humilde lar. — Vlad tentou exprimir um sorriso que revelou seus dentes, e o que me surpreendeu foram os caninos anormalmente pontiagudos e brancos, similares aos de um lobo. O que me deixou desconfortável, mesmo ele parecendo tentar acalmar-me. — Espero que suas acomodações e alimentação estejam de acordo com seu gosto. Suponho que alguém que venha da cidade grande tenha preferências alimentares mais requintadas, não é mesmo, Anton? — Aquela pergunta me soou estranha, mas até aquele momento minha estadia no Castelo Drácula não havia tido problemas, exceto minha tentativa falha de me comunicar com os empregados.
— Conde, não tive qualquer problema quanto aos aposentos ou mesmo referente à alimentação. Militares se habituam a dormir em catres desconfortáveis, a dormir pouco, e a comer mal. — Recorri à minha honra como soldado para voltar ao meu centro, meu equilíbrio mental. — Aqui está além daquilo a que me habituei nos últimos anos.
Vlad passou as horas seguintes conversando comigo, tratando da cultura local, suas influências, as histórias, e me mostrou alguns de seus títulos favoritos. Nossa conversa foi amistosa, e me senti como diante de um dos mestres da minha antiga universidade, aprendendo o que estivesse ao alcance de minhas faculdades mentais. O tempo, em alguns instantes, pareceu ficar mais lento. A noite avançava vagarosamente, mesmo que a conversa estivesse empolgante, aquela percepção não me abandonava.
O conde realmente era um homem da noite, estava cheio de energia, diferente de seus primeiros momentos naquela sala. Sua oratória, o vasto conhecimento que ele apresentava, me dava a impressão de que alguns dos fatos narrados ele havia vivido. A riqueza de detalhes, a precisão do relato, traziam uma segurança que apenas quem viveu, presenciou e experimentou poderia possuir.
Andávamos por todo o cômodo enquanto conversávamos. Apesar de eu ter despertado antes do galo, realmente podia sentir que não me faltava energia, um impulso, não, uma força me sustentava ali naquela conversa. Parei diante da porta, com ela às minhas costas, enquanto observava Drácula caminhar em direção à poltrona com dois corvos de cabeças voltadas para o assento. Ele se sentou como um rei, cruzou as pernas, apoiou-se no braço esquerdo e repousou um livro sobre a perna esquerda, olhando fixamente para mim. Sua forma de olhar era intimidadora, novamente notei aquele estranho brilho.
Olhei o relógio que carregava no bolso do colete e pareceu-me que eram quase seis horas da manhã do dia seguinte. Meus olhos voltaram para as janelas, onde a luz da lua ainda brilhava intensamente. Caminhei em direção à porta de vidro e, ao olhar para fora, o espanto me dominou. A lua ainda se encontrava no ponto mais alto do céu. O pátio do castelo estava coberto de neve, e a luz que vinha do céu dançava em tons de azul, brindando a neve branca com um belo detalhe.
Subitamente, o ar pareceu ficar denso, difícil de respirar. Olhei para trás e vi o rosto daquele homem pequeno, sentado em sua grande poltrona, com um sorriso arqueado na face, novamente revelando aqueles caninos animalescos, num ar malicioso.
A biblioteca tinha uma pequena lareira na parede à direita da porta de entrada, onde também se encontrava a porta de vidro. Mesmo assim, minha respiração condensou como se eu estivesse ao ar livre. Voltei meu rosto para fora e notei a silhueta de uma mulher parada próxima ao muro. Não era alta, e seus cabelos pareciam longos. Aproximei-me mais da janela para tentar ver melhor, quando a luz da lua recaiu sobre ela, revelando uma pessoa com o mesmo tom de pele do senhor Drácula. Ela deu alguns passos mais para o centro do pátio, evidenciando mais detalhes de sua fisionomia.
Os cabelos eram ondulados, mais longos do que notei inicialmente, de um tom preto similar ao céu noturno. Seu nariz fino e levemente pontudo contrastava com seus olhos grandes, que pareciam ser de um azul claro. Os lábios eram volumosos. Seu corpo era pequeno, esguio e delicado. Sua expressão era apática, distante. Ela olhou para a lua e, assim como o senhor do castelo, pareceu-me exibir uma aura sobrenatural. Seus olhos brilharam num tom branco pálido, mas logo meu ceticismo voltou, e supus que era efeito da luz da lua.
Aquela presença no pátio estava apenas coberta com um vestido de algodão rústico e uma capa transparente. Direcionei minha atenção aos pés dela, que estavam descalços.
Quando pensei em tocar na fechadura para chamar a jovem no pátio, senti algo me impedindo de tomar aquela ação. Mais uma vez, meus instintos soaram em minha mente como trombetas de guerra. Girei nos calcanhares, com os punhos fechados e os dentes cerrados, como se estivesse pronto para receber o primeiro golpe. Assim que o fiz, um vento gélido invadiu o ambiente, a lareira apagou, sobrando apenas a iluminação natural vinda de fora que, ao passar pelos vitrais, deixava o ambiente num jogo de vários tons de azul. Foi então que, ao abrir meus olhos, notei três pares de olhos me observando. O único que reconheci foi o que havia visto nos olhos do conde, que ainda se encontrava sentado em sua poltrona. Os que vi no patamar eram vermelhos com toque âmbar, enquanto os que estavam próximos à entrada que conduzia ao interior do prédio eram de um tom vermelho como brasa viva.
Ouvi um grunhido de feras ocultas na escuridão. Sentia a adrenalina subir e inundar cada parte do meu ser. Minha respiração ficou rápida e as batidas do meu coração eram palpáveis dentro do peito.
Então, o silêncio. A escuridão. O vazio apagando cada um dos meus sentidos. Sobrando apenas o impacto oco do meu corpo contra o chão de madeira do castelo.
Para meus registros finais nestas folhas deste último evento, não me pareceu ter levado mais que alguns poucos minutos, segundo minha percepção. Corrijo, o que recordo destes últimos momentos é como um pesadelo sombrio e muito vívido. Não consigo confiar em minhas memórias desta manhã, ou noite. Existe algo que me obscurece a razão, que me desafia a duvidar dos fatos. Será que o que vivenciei naquela manhã, ou noite, era real? O que vi foi realmente um fato? Quem era aquela jovem no pátio? Será que fiz a escolha correta de vir ao meio do nada em Bram, no centro da Europa?
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…