Parte II – Darquinha - Capítulo II - Insanidade

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Dizem que o simples acaso não existe e que, para que algo aconteça de fato, há inúmeros outros acasos acontecendo, seguindo uma sintonia perfeita de diversos acontecimentos. E foi justamente essa perfeita junção de vários acasos em sintonia que proporcionou o encontro de um ex-cativo chamado Thomás e uma determinada equilibrista de nome Joana D’Arc, mais conhecida por todos como Darquinha. O destino pode até ser considerado por alguns como um deus um tanto quanto traiçoeiro. No entanto, ninguém jamais poderá negar que esse mesmo deus é o autor de todas as histórias já escritas, contadas e vividas, sejam elas cômicas ou trágicas.

Darquinha talvez tenha sido a única mulher que Thomás amou verdadeiramente. É evidente que, para um homem de sua idade, ele tenha tido conhecimento de outras mulheres no leito. Entretanto, sempre fora de uma forma bastante efêmera e descompromissada, algumas até mesmo em troca de algumas moedas ou algum tipo de favor. Contudo, nunca algo muito sério. Eram sempre relacionamentos de uma única noite, na maioria das vezes fugazes demais para serem repetidos, uma vez que, antes de conhecer Darquinha, ele era um homem errante, sempre perambulando de um lado para o outro em busca de trabalho. Quando a conheceu, Darquinha era uma bela jovem ainda na flor da idade, com apenas quinze anos recém-completados. Ela tinha a pele extremamente clara e macia, cabelos cacheados na cor de ouro e belos olhos azuis que lhe davam a aparência de uma princesa de contos de fadas.

Thomás a conheceu no circo ao qual ela fazia parte desde que nascera – sendo seus pais artistas circenses desde sempre – e de acordo com que fora crescendo, seguindo os passos dos pais e atendendo a um chamado do talento artístico que corria em suas veias, tornara-se uma exímia equilibrista, que a todos impressionava tanto por sua beleza e simpatia, bem como a ousadia dos números que ela desempenhava a cada espetáculo. Negro e ex-cativo, Thomás, desde que a abolição fora decretada, – mesmo sendo ele um negro foro, bem antes disso – vivia errando de um lado para o outro de cidade em cidade em busca de algum trabalho honesto que lhe proporcionasse os meios para a sua sobrevivência de uma forma digna. 

Se a vida dos negros escravizados já era difícil nas senzalas, com toda a humilhação e privação de qualquer tipo de dignidade. Quando ainda cativos morriam aos montes, no trabalho árduo e contínuo, onde seus senhores nenhum pouco se importavam, pois eram considerados apenas como instrumentos de trabalho que se moviam sozinhos, executando aquilo que lhes eram ordenados. Pois se um deles perecia, logo havia outro para poder substituí-lo. Como havia grande oferta, poderiam ser adquiridos por uma reles quantia nas feiras onde eram vendidos como animais considerados como seres desprovidos de alma ou qualquer tipo de sentimento. 

Assim que foram libertos se encontraram numa situação um pouco mais degradante e desesperadora, pois não tinham dinheiro, nem bens e muito menos um lugar onde pudessem ficar. A maioria dos ex-cativos das cidades foram ocupar os morros em barracos improvisados, que mais pareciam sinistras armadilhas, prontas a colher a vida de seus ocupantes a qualquer momento. Para completar ainda mais o caos em que suas vidas se tornaram, a grande maioria não conseguia trabalho honesto em quase lugar algum. Desprovidos de bens, ou qualquer tipo ofício, os negros que conquistaram através da Lei Áurea sua tão sonhada liberdade, se encontravam soltos pelo mundo sem eira nem beira, completamente entregues à própria sorte. Para sobreviverem, eram obrigados a enfrentar e aceitar qualquer tipo de ocupação que lhes apresentasse, mesmo que fossem as mais degradantes possíveis. Literalmente, para não morrerem de fome, os negros logo após a abolição tinham que se virar sozinhos naquilo que desse e viesse. Talvez seja dessa época o provérbio que diz: “... não há maldade ou situação tão ruim que não possa piorar um pouco mais...”.

É correto salientar que, independente de qualquer coisa que se possa dizer o cativeiro, – seja ele qual for – é ignominioso e bastante deplorável. Contudo, a libertação dos escravos no Brasil em particular, se demonstrou em algo um tanto quanto ineficaz aos negros cativos, que se por um lado se viram livres do julgo de seus senhores, por outro continuaram escravos da necessidade e da humilhação, que torna qualquer individuo um prisioneiro do desespero e da indignação.

Thomás, que há tempos se encontrava no mais completo ócio, já praticamente sem dinheiro algum e quase à beira do desespero, muito se animou quando, numa bela manhã de céu claro e tempo firme, o circo desembarcou na cidade onde ele se encontrava naquele momento. Como era do tipo de homem que enfrentava todo e qualquer tipo de trabalho, logo foi contratado para a montagem das barracas e do improvisado e combalido parque de diversões – um colorido chamariz para as crianças – que agora fazia parte das atrações do circo. O Grande Circo Chittway – agora já não tão grande – já à beira da falência definitiva, sobrevivendo de minguadas arrecadações – cada vez mais escassas – sempre buscava, na medida do possível, gastar o mínimo, tentando empregar quem cobrasse um soldo mais barato, se possível alguém que trabalhasse por dois e recebesse pela metade de um – talvez seja por essas e outras que tenha surgido o preconceito que alega que o circo seja um antro de pessoas de índole duvidosa.

Thomás, com as finanças quase no fim, com o aluguel de seu biombo por vencer nos próximos dias, e se vendo em sérias necessidades financeiras, aceitou de imediato o parco valor oferecido por uma diária de trabalho. Esse ordenado, mesmo que mísero, foi prontamente aceito, pois vinha acompanhado de uma refeição, que logicamente não era nenhum manjar olimpiano – diga-se de passagem – mas, para quem já havia experimentado os mais abjetos repastos de uma senzala, qualquer comida poderia ser considerada um banquete.

Foi no mesmo dia em que se empregou no circo, numa tarde quente e abafada, com o sol brilhando forte e majestoso num céu límpido e claro, que Darquinha ofereceu ao suado negro Thomás uma refrescante limonada. Este, por sua vez, muito timidamente perante a beleza da jovem, aceitou o refresco e logo sorveu toda a limonada em grandes goles, pois naquele momento, debaixo daquele sol escaldante, a sede o açoitava sem piedade alguma – principalmente após o almoço, que fora composto de arroz com carne de sol e legumes, bem caprichado no sal. Contudo, quando, com toda galhardia, quis agradecer à bela jovem que lhe prestara aquela boa ação, logo lhe foi informado por um dos integrantes do circo que ela era surda desde criança. Thomás também soube pela mesma pessoa que ela havia ficado órfã há pouco tempo. Seus pais – a maior sensação do circo – haviam perecido num trágico incêndio que quase destruíra o circo por completo.

Alguns acreditavam que o fogo se iniciara na barraca de atendimento de Madame Staell, talvez foco de um de seus inúmeros incensos, que queimavam quase todo o tempo em sua barraca de cigana. Como ninguém sabia ao certo se fora realmente ela a responsável pelo incêndio, não ousavam acusá-la diretamente por perda tão irrecuperável – também havia o medo de, ao responsabilizá-la por tamanha tragédia, quem assim o fizesse poderia se tornar uma pessoa não grata aos olhos ferinos da sinistra cigana. Como esse incêndio trouxera enormes prejuízos materiais ao já combalido circo, e também colhera a vida do mágico Norman e sua esposa, a bela assistente Elizabeth, logo a vida de Madame Staell se tornou um tanto quanto insustentável ali perante seus companheiros que, de uma forma, mesmo que velada, estavam praticando certo desprezo pela cigana.

O dono do circo já não tinha tanta simpatia por ela. Primeiro, porque ela nunca lhe dera nenhum tipo de ousadia, mesmo as ofertas tendo sido por demais tentadoras e bastante generosas por parte dele. Segundo, porque os Benetti sempre a defenderam, pois ela era uma espécie de fada madrinha da jovem Darquinha. E por último – talvez, esse o fator mais relevante – o fato de ela ter perdido completamente a visão de um de seus olhos, enquanto o outro olho que lhe restara se mantinha sempre vermelho e remelento, dando-lhe uma feição asquerosa e horripilante. Sendo assim, seu faturamento como vidente havia diminuído substancialmente – afinal, ninguém tinha muita fé em alguém que prometia enxergar o futuro, se nem mesmo conseguia ver o presente. Madame Staell ainda não havia abandonado o circo porque, após o acidente que matara Norman e Elizabeth, a pequena Darquinha – com apenas doze anos – havia ficado sob seus cuidados.

Desde que se associara àquele circo há mais de vinte anos, ainda nas longínquas terras do velho mundo, Madame Staell tinha se afinizado bastante com os Benetti – na época, um jovem casal de artistas de matrimônio recente – e foi justamente ela – ninguém sabe ao certo como – que havia ensinado a pequena Darquinha uma forma de comunicação através de sinais, assim que a filhinha adorada dos Benetti demonstrou os primeiros sinais de surdez. Essa desconhecida forma de comunicação havia facilitado bastante a interação com a pequena equilibrista que, assim como seus próprios pais, também era muito aplaudida pelo público em suas apresentações, tanto por sua rara beleza quanto por sua destreza e coragem em números muito ousados para sua idade.

Soube-se depois que aquela forma de comunicação através de gestos e sinais era uma antiga tradição oriunda dos antepassados de sua avó – A Mudra é uma espécie de dança teatral que envolve movimentos rítmicos misturados com gestos e sinais que conseguem transmitir algum tipo de mensagem sem emitir nenhum tipo de som. Madame Staell conseguiu de alguma forma adaptar a Mudra para uma forma de comunicação que pudesse dispensar os movimentos rítmicos, deixando apenas gestos e sinais. Com zelosa paciência e dedicação, logo a cigana se comunicava abertamente com Darquinha, tornando-se assim, mesmo de uma forma involuntária, sua intérprete oficial para todos os outros integrantes do circo.

Depois da morte dos Benetti, o único parente vivo de Darquinha que ainda havia sobrado em terras brasileiras era seu tio Nicolas – Nico Besta-fera – um indivíduo de índole muito duvidosa, que enfrentava sérios problemas com a bebida – talvez devido à sua condição física – e que piorara bastante nos últimos tempos após a perda de seu irmão Norman, que sempre lhe fora uma espécie de protetor. Como não havia possibilidade alguma de deixar uma donzela – mesmo sendo sua sobrinha – aos cuidados de uma pessoa que não conseguia tomar conta nem de si mesmo – a situação emocional e a aparência física de Nico Besta-fera era cada dia mais deplorável – optou-se pela sensata decisão de que a jovem órfã deveria ficar aos cuidados e proteção da velha cigana, que além de ser uma mulher de comportamento ilibado, também sabia se comunicar muito bem com ela.

Não foi apenas o exagero da bebida que fez com que Darquinha fosse afastada da companhia de seu tio, sendo direcionada à proteção da velha cigana. Na verdade, Madame Staell não era nenhuma pessoa senil ainda. Contudo, após a perda parcial da visão, a decepção com as terras brasileiras, a dor e a tristeza adicionaram um suave toque de velhice à sua aparência – segundo a sabedoria popular: "... nada nessa vida é capaz de envelhecer um ser vivo mais do que o sofrimento...". A olhos vistos, a impressão era que a velha cigana tinha se esquecido do significado do que era esperança – talvez a constante companhia de duas almas sofredoras pudesse ser confortadora para ambas. De certa forma, a assustadora aparência de seu tio Nicolas já era motivo suficiente para manter a jovem e indefesa equilibrista afastada dele, o tanto quanto fosse possível.

Nicolas Benetti era irmão gêmeo de Norman. A diferença entre ambos gerava piadas um tanto quanto maldosas. Vladimir – que não era nenhum pouco simpático ao anão – certo dia, estando zangado com Nico por uma besteira qualquer, chegou mesmo a dizer: – "Quando o mágico Norman nasceu, sua bondosa mãe ficara tão admirada de sua beleza que decidira criar também sua placenta...". Muito diferente de seu irmão, o anão era um sujeito disforme, com uma cabeça enorme sobre uma protuberante corcunda; suas pernas eram grotescas e curtas, numa total desproporção ao seu torso. Sua cabeça, além de grande, era afinada na frente, quase como a figura de um tubarão; suas sobrancelhas unidas sobre o nariz vermelho eram salientes e davam-lhe um aspecto animalesco. Mas a pior parte eram os dentes afinados como os de um cão, além dos olhos que, pela lógica, deveriam ser claros, mas permaneciam quase constantemente olhando sempre em direções diferentes.

Nicolas Benetti fazia parte da família do mágico Norman e, por isso, acompanhava o pacote – o fantástico mágico, a bela assistente e o pequeno monstro. Enquanto Norman e Elizabeth deixavam o público boquiaberto com o universo místico dos passes de mágica, Nicolas Benetti, o anão húngaro do circo, amedrontava mulheres e crianças e divertia os adultos. Era apresentado ao público – na maioria das vezes completamente bêbado e sempre mal-humorado – como Nico Besta-fera, o último mordomo do Conde Drácula. Alguns diziam que o desavisado Conde Drácula havia morrido após experimentar o sangue do anão, nocivo até para o mais abjeto dos demônios.

Fora o próprio Sr. Zacky quem tivera a ideia de que a jovem Darquinha fosse viver na companhia de Madame Staell, ficando assim esta pela responsabilidade de zelar pela integridade da filha dos Benetti. Contudo, havia algo a mais além de toda essa benevolência por parte desse nobre cavalheiro, pois sua verdadeira intenção era, assim que a primeira oportunidade se demonstrasse propícia, abandonar a velha cigana – que há tempos era apenas um peso para o circo, pois era vista pelo público como uma horripilante bruxa. Quase ninguém mais procurava por seus serviços. Se suas premonições eram ruins, eram recebidas como agouro. Se, por outro lado, se demonstrassem boas e promissoras, eram consideradas uma benesse das trevas, que poderiam ser cobradas posteriormente – ficava semanas inteiras sem arrecadar nenhum tostão.

A jovem equilibrista, por sua vez, também não rendia os mesmos aplausos de outrora. Logo após a trágica morte de seus pais, ela ficara meses sem se apresentar – fato que foi respeitado por todos num primeiro momento – e, quando aos poucos foi voltando ao picadeiro, suas apresentações eram insalubres e sem nenhum brilho. Chegando mesmo, por algumas vezes, a abandonar o palco chorando numa sofrível agonia – quem conhecera os Benetti a aplaudia nesses momentos de tristeza, solidarizando-se com seu sofrimento. Mas como não há alegria que seja eterna e nem tristeza que perdure para sempre, logo até mesmo a morte dos Benetti virou história, e quem pagava para ver o espetáculo não se interessava por um show de lágrimas.

Sr. Zacky muitas vezes se perguntava se seu circo, que outrora fora grande e majestoso, havia se tornado uma casa de apoio a deficientes e idosos – na Europa, havia sempre a renovação do quadro de artistas. Era comum sempre aparecer indivíduos com algum talento artístico em busca de emprego. Desde que chegara ao Brasil, nenhum artista fora incorporado ao grupo, quando muito, um ou outro ser com alguma aparência estranha. Desde que chegaram ao Brasil, muitos haviam abandonado o circo para tentar a vida como colonos em grandes fazendas de café. Os que restaram eram algo deprimente de se ver: um anão bêbado em constante crise existencial, uma vidente praticamente cega que não via mais o futuro e nem o presente e já demonstrava esquecer até mesmo seu próprio passado, uma equilibrista que levava tombos da vida a torto e a direito e que havia ficado completamente surda, e por fim alguns outros artistas, sem muita importância, que já estavam ficando velhos e obsoletos. Por mais leviana que pudesse parecer, sua intenção de se livrar da cigana e de sua protegida – uma despesa supérflua – era tentar cortar todo tipo de gasto desnecessário de um circo que praticamente já não arrecadava quase nada.

Sr. Zacky, por muitas vezes – quando em madrugadas insones, quando todos dormiam e tudo se aquietava – deitado em seu leito na solidão de seus pensamentos, se arrependia amargamente de um dia ter abandonado sua terra para se lançar numa louca aventura, baseado em promessas vazias feitas por um desconhecido endinheirado e nos conselhos de uma sombria cigana – que advogava em causa própria. Mesmo que a situação do circo naquele momento na Europa fosse desesperadora, deveria ter sido mais prudente e não se deixar levar pelas circunstâncias. Infelizmente, em momentos de solidão e carência, toda e qualquer companhia é bem-vinda e, para quem está faminto, qualquer repasto é banquete. Naquele momento desesperador, tanto a sua realidade quanto a de seus companheiros fora substituída pela promessa de dias melhores em terras de além-mar.

Madame Staell – a pedido do próprio Sr. Zacky – tinha visto em suas cartas que a vida de todos no circo seria bem diferente no Brasil. Como as cartas não mentem jamais, a cigana tinha dito a verdade. Realmente a vida de todos que acompanharam o circo para terras brasileiras havia mudado bastante. Sr. Zacky suspirava de desgosto e arrependimento. Em outros tempos, quando ainda era jovem, a aventura de vir para o Brasil ou qualquer outra parte da América poderia ter sido diferente, pois sabia ele que o maior inimigo de um homem era o frio cortante dos anos acumulados em suas costas. Assim que o calor da juventude se esvai pelo corpo, pelas constantes decepções acumuladas, jamais essa chama poderia se aquecer novamente. Com o corpo frio e sem perspectivas para dias melhores, por diversas vezes havia cogitado a ideia de abandonar tudo e retornar sozinho para a Europa em busca de algum parente que ainda lhe restasse ou mesmo algum amigo que pudesse lhe dar guarida para terminar seus dias com dignidade em sua terra natal. Em sua concepção, a vinda para o Brasil se demonstrara um erro terrível. Mas, até que sua resolução de retornar à Europa fosse viável, deveria ele tentar cortar todo tipo de gasto desnecessário, pois, às escondidas e com muita dificuldade, na medida do possível, estava ele ajuntando míseros tostões para que pudesse custear seu retorno ao velho mundo.

O circo, cada vez mais decadente, havia se instalado naquela cidade – onde Thomás estava de passagem – devido a uma animada festa de quermesse, que se iniciaria duas semanas depois. As festas de quermesse, em muitas cidades do sertão, são sempre ansiosamente aguardadas pela população local e adjacente dessas ermas localidades, que em sua grande maioria não têm muitos atrativos. Essas festas religiosas são grandes acontecimentos, onde há muita bebida, comida farta com várias novidades, tanto de mercadorias comercializadas nas coloridas barracas de mascates, quanto nas barracas de jogos e diversão e, vez por outra, algo um tanto quanto mais diversificado como um circo, por exemplo. Após três dias de trabalho duro – com o auxílio do negro Thomás – logo o circo já estava todo montado e pronto para um colorido espetáculo.

Durante esses três dias de trabalho, por incentivo do dono do circo – que, independente de qualquer coisa, sempre fora muito gentil e benevolente com todos que trabalhavam com ele ou para ele – por duas ou três vezes, Darquinha havia servido algo para Thomás; um refresco aqui, um gole de café acolá e até mesmo uma satisfatória fatia de broa de milho que ela mesma havia preparado sob a supervisão da velha cigana – que havia visto em suas premonições algo muito promissor para ambas na presença daquele simpático e educado negro. De certo modo, de uma forma bastante substancial, Thomás fazia parte do futuro tanto de uma quanto da outra, mas bem longe do circo e de todos aqueles que as conheciam.

O destino, esse deus – entidade, espírito, ou seja, lá o que o valha – um tanto quanto confuso às vezes, para a simples e limitada compreensão humana, tornou a presença de Thomás – um homem já maduro – muito confortável para a jovem, que após muito tempo de tristeza voltou a sorrir e ter o olhar brilhante outra vez. A cigana, mesmo com a visão bastante comprometida, logo percebeu certa afinidade entre eles. Mesmo sem ela pronunciar nenhuma palavra e nem ao menos poder ouvir qualquer coisa que ele dizia, parecia que a troca de sorrisos e olhares entre ambos dava mostras de estarem travando longos diálogos. Madame Staell, muito interessada em tudo aquilo, decidiu questionar sua protegida. Através de gestos cuidadosos e com bastante parcimônia, perguntou a ela:

– Por que tanta gentileza para com aquele negro desconhecido?

Darquinha, por sua vez, também através de gestos, mesmo com certa timidez, mas bastante confiante, respondeu:

– Há algo de curioso no modo como ele me olha, e o jeito como ele me trata me deixa bastante segura e muito confortável, como se em seus gestos gentis e seu sorriso sincero houvesse algo que me fizesse lembrar meu saudoso pai.

Assim que conseguiu se fazer entender, caiu num doloroso pranto, abraçando fortemente a cigana, que logo a amparou em seus braços, deixando que ela pudesse desabafar toda a tristeza que havia retraída em seu ser por tão irreparável perda.

Darquinha, vez por outra, em raros momentos de descanso, flagrava Thomás com um livro nas mãos. Um livro em si era sinal de grandeza de caráter – seu pai, que era um assíduo leitor, sempre dizia que os grandes espíritos se formavam através de sabedoria e muito conhecimento – concedendo ao seu portador ares de boa índole, tal como seu próprio pai fora um dia. Um homem amante das letras, portando sempre consigo um bom livro, seria incapaz de cometer qualquer tipo de grosseria ou indelicadeza com quem quer que fosse.

Quando ela ainda era uma criança e ainda podia ouvir algum tipo de som claramente, certa vez questionou seu pai porque deveria aprender a ler e a escrever, sendo que aquele tipo de atividade não era tão relevante para eles ali no circo, onde não havia muitos livros para serem lidos. Seu pai, um homem de traços serenos, sempre muito paciente e carismático, lhe respondera citando um antigo provérbio árabe:

– “A ignorância é vizinha da maldade.” Pessoas sábias são benevolentes por natureza.

Mesmo já com os primeiros sinais de surdez, quando seu pai lia algum livro para ela ou lhe ensinava algo, Darquinha escutava com silenciosa atenção, coisa que só se via na face de um aluno quando o professor era objeto de sincera admiração. Em seus inocentes pensamentos, um homem que admirasse os livros e que amasse as letras saberia o verdadeiro significado do amor.

Madame Staell tentou lhe gesticular sobre a diferença que havia entre eles, não só de cor – que era proporcional ao dia e à noite – a origem e tudo o mais, mas principalmente a idade, que era demasiadamente incompatível para um relacionamento entre ambos. Darquinha então se recordou de um livro que seu pai lera para ela há muito tempo. Nessa obra escrita pelo filósofo Platão ainda nos tempos áureos da humanidade, o enredo tratava de um grande banquete onde um elogio era feito para o Amor, esse deus infinito de sentimento sublime. Dentre os diversos elogios que foram cantados, um se destacou acima dos demais; dizia que no princípio éramos seres ligados como se fôssemos apenas um, formando duas partes que se completavam para formar um todo. Até que um dia os deuses – por ira ou talvez até mesmo inveja da felicidade humana – nos dividiram por toda a eternidade em duas partes distintas e, a partir de então, erramos pelo mundo de coração vazio e alma atribulada, sempre em busca de nossa outra metade. Quando encontramos a outra parte que nos completa, nada mais importa. Nenhum tipo de riqueza, status ou posição social faz sentido até nos ligarmos de forma incondicional a essa metade e sermos completos novamente.

Desde que o homem pisou nessa terra, talvez fosse essa a melhor explicação para o Amor, esse estranho sentimento que une as pessoas sem fazer distinção de gênero, cor, idade etc. Não que o amor seja cego, na verdade apenas consegue ver muito mais além do que os olhos podem enxergar. Madame Staell, uma mulher muito versada nas questões que envolvem os sentimentos e até mesmo a própria alma, se deu por convencida e nada mais acrescentou.

Na noite de estreia do circo, tudo estava belo e colorido como num sonho. Naquele pequeno vilarejo, era a primeira vez que um circo se instalava ali. Para a grande maioria – de uma população relativamente pequena – o circo era uma fantástica novidade, e todos estavam bastante ansiosos pelas apresentações. Até mesmo Darquinha, que há tempos não se apresentava como outrora sempre fizera, naquela noite em particular, estava bastante eufórica.

A festa da quermesse se iniciara assim que o sol se pôs e deu lugar a uma bela noite enluarada de tempo fresco e agradável. Havia comidas e bebidas dos mais variados tipos. Barracas coloridas anunciavam muitas novidades da cidade grande e o circo, sem muita demora, logo iniciara suas apresentações. O espetáculo foi um tremendo sucesso, mesmo que a plateia não fosse tão numerosa quanto o esperado. No entanto, a meia centena de pessoas – talvez até um pouco mais – que assistira ao espetáculo ficou admirada com tanta maestria dos artistas. O mais deslumbrado dos espectadores era o negro Thomás, que contemplava a apresentação de Darquinha boquiaberto. A jovem equilibrista estava inspirada naquela noite e fez uma de suas mais belas apresentações, mal sabendo que aquela seria a última vez que atuaria como uma artista circense.

Assim que as apresentações se encerraram e todos estavam contentes com o resultado – alguns porque ficaram admirados com toda a magia do circo, outros porque logo terminara. Somente Sr. Zacky estava cada vez mais acabrunhado com os parcos resultados da bilheteria, que, mesmo para uma noite de estreia, mal cobriam os custos da montagem do circo. Os artistas, que pareciam já estar acostumados com aquelas poucas migalhas, se deram por satisfeitos e, assim que terminaram suas apresentações, quiseram também – na medida do possível – aproveitar a festa. Nico Besta-fera, que antes mesmo de terminar as apresentações já estava caindo de bêbado, assim que o circo deu por encerradas as atividades da noite, logo se recolheu e foi tentar curar sua bebedeira com uma tranquila noite de sono. Alguns seguiram o exemplo de Nico e também foram se recolher.

Muitos outros quiseram estender a noite. Enquanto Vladmir se exibia com suas habilidades com as facas para algumas moças e rapazes, viu que Darquinha dava certa ousadia ao negro que ajudara na montagem do circo. Percebeu que os dois estavam ficando íntimos demais, pois o negro já havia lhe comprado um mimo na barraca de bichos de pelúcia e também haviam tomado refrescos juntos. Estando ela sempre muito sorridente para aquele estranho. Vladmir que outrora cultivara um amor platônico pela bela mãe de Darquinha, com a morte desta, entendeu que esse amor poderia ser estendido para filha que a cada dia que passava, ficava tão bela quanto a própria mãe. Ele que estava mordido de ciúmes pelo comportamento que Darquinha despedia a um estranho, – intimidades que a ele nunca fora permitida – decidiu que se quisesse alguma chance com a jovem deveria agir muito rapidamente. Como na feira havia bebidas à vontade para quem pudesse pagar, ele acabou exagerando no consumo e em pouco tempo já não era senhor de seu juízo perfeito e arquitetara para aquela mesma noite tomar Darquinha por companheira, mesmo que tivesse que obrigá-la a tal feito. O único problema era a velha cigana que trazia sua protegida sempre debaixo de seus olhos, mas como ele já havia tomada aquela resolução ficaria a espera da melhor oportunidade para colocar em prática seu vil intento. 

Antes da meia noite, quando as luzes começaram a se apagar e todos já estavam se recolhendo, o casal de apaixonados também decidira dar aquela noite por encerrada e após se despedirem com algumas trocas de carícias foram se recolher. Thomás se dirigira para o quarto onde estava hospedado radiante de alegria, tal como uma criança que ganha um brinquedo novo. Darquinha por sua vez, vivia os momentos mais intensos de sua tão lastimosa existência e se encaminhara a passos lentos para a barraca da velha cigana, que naquela hora já estava recolhida, mas ainda acordada a espera da jovem protegida. O circo estava montado ao lado da igreja e o acampamento dos artistas um pouco mais atrás. Entre o circo e o acampamento havia um pequeno trecho que àquela hora da noite, com céu já começando a se fechar para uma chuva que se anunciava para breve, estava um pouco escuro, mas era o caminho que ela deveria seguir até a barraca em que estava alojada.

 Foi justamente nesse trecho que Vladmir decidiu esperar por ela e dar seu golpe de misericórdia. Assim que Darquinha se aproximou do local onde ele estava de tocaia, ele se fez visível e para que ela não se assustasse gesticulou para que ela o reconhecesse. Como conhecia o faquir há muitos anos, ela pareceu não dar muito importância a ele e continuou caminhando até o momento que ele a segurou firmemente pelo braço tentando arrasta-la até uma construção em ruínas ao lado do caminho. Qualquer pessoa teria tentando gritar por socorro, mas para a jovem Darquinha isso não era possível, e ela mesmo que muito relutante, teve que se deixar levar, pois Vladimir tinha quase o dobro de sua força e parecia estar completamente descontrolado. Ela pode sentir o hálito de bebida e mesmo na penumbra da noite parece que podia ver algo estranho em seu olhar. Brilho que só aparece nos olhos de alguém que está friamente determinado a fazer algo terrível.  

Darquinha estava, naquela noite, trajada com um belo vestido de cetim de cor amarelo com belos motivos florais. Tinha os cabelos soltos apenas com um enfeite de prata para prender a franja que lhe caia nos olhos, e usava um agradável perfume que trazia notas de refrescantes flores silvestres. Até o momento que fora abordada por Vladmir estava numa noite esplendorosa, mas se vendo presa nas garras daquele ignominioso crápula experimentou um momento de terrível desespero. O até então, gentil e prestativo faquir, finalmente revelara sua verdadeira natureza e estando os dois a sós resguardados pela penumbra e a quietude da noite tentava de todas as formas arrancar as vestes de Darquinha com o ímpeto de possuí-la a qualquer custo e depois tomá-la por esposa. Naquele momento o terror enfrentado por Darquinha era algo inominável, sabendo que ali naquele local e àquela hora da noite sem poder gritar por ajuda, ninguém viria em seu socorro.

 Contudo, o ser humano desde sua origem mais remota, nos momentos mais terríveis de sua existência sempre conseguira encontrar uma forma de vencer as adversidades que a vida lhe apresentava e foi agarrada a essa desconhecida força que Darquinha encontrou a ajuda que necessitava naquele instante. Sabendo que suas forças e capacidades físicas eram inversamente desproporcionais a daquele asqueroso ser que a atacava como um animal selvagem, ela utilizando-se da capacidade de dissimulação que só os seres humanos têm, deixou de resistir e deu mostras que consentiria tudo o que ele quisesse.

Estando ele muito entretido em seu intento, parecendo que ela havia cedido as suas investidas e também por estar sobre forte efeito do álcool, abriu sua retaguarda e nem mesmo percebeu quando ela num ímpeto incrível de sobrevivência e defesa da honra arrancara-lhe uma de suas facas – que ele sempre trazia consigo na cintura – e num único golpe certeiro, cravou-lhe em seu peito com toda a força que possuía – a energia que um ser vivo consegue canalizar quando se encontra na iminência de algo perigo letal, é algo inacreditável. – Vladimir que jamais poderia esperar uma atitude daquela, vindo de alguém que até então tinha sido de uma meiguice extraordinária, deu alguns passos para trás e caiu de joelhos tentando arrancar a faca de seu peito. Todavia, o golpe havia encontrado o destino certo e o coração que outrora já batera doridamente pela mãe de Darquinha, naquele fatídico instante encerrava seus movimentos de uma vez por todas e colocava um fim definitivo na errante e frustrada vida daquele distinto faquir, que em último ato de desespero havia puxado a faca da ferida recém-aberta sacramentando seu próprio fim.

Assustada com todo aquele sangue que esvaia em jorros da ferida de seu algoz, sem saber se ele estava vivo ou morto, Darquinha saiu correndo na direção do acampamento que não estava muito longe. Logo na entrada do local onde as barracas estavam instaladas parou por um instante, para que pudesse recuperar o fôlego e tentar se recompor. Parada encostada a uma pequena árvore olhou ao redor e pôde então perceber que àquela hora já bastante avançada da noite, todos haviam se recolhido. Tudo estava quieto e silencioso, somente na barraca de Madame Staell ainda havia luz e movimento. Mesmo estando o céu quase todo encoberto por pesadas e escuras nuvens que ameaçavam derramar um aguaceiro a qualquer momento, naquele instante uma réstia de luar brilhou em seu rosto pouco antes dela entrar na barraca da cigana, que de alguma forma sobrenatural pressentia que algo não estava certo e já a aguardava ainda de pé bastante ansiosa. 

Quando sua protegida entrou ainda esbaforida e com escuras manchas de sangue respingadas em quase todo o vestido, a sábia cigana logo concluiu que por mais uma vez sua intuição não estava errada e muito rapidamente acolhendo a assustada jovem em seus braços tentou acalma-la com carícias e afagos. Assim que percebeu que sua respiração se desacelerava e ela estava um pouco mais calma, questionou o que havia acontecido a ela e o porquê dela estar naquele estado tão lastimável. Através de gesticulações ainda desconexas, Darquinha lhe relatara todo o acontecido e tentava a todo custo convencê-la a segui-la para mostrar-lhe o local onde Vladmir tentara lhe violentar e ela o havia ferido. Mesmo sendo vítima daquela vil criatura, ainda assim, demonstrava uma profunda preocupação pela vida daquele ser, e ansiava por tentar ajuda-lo de qualquer forma. 

Madame Staell sendo uma mulher já experimentada em anos de vivência e com a maldade humana, decidiu que não seria correto irem sozinhas até o local de um possível homicídio. Sem demora, foram chamar o dono do circo, mas antes fizera com que Darquinha trocasse o vestido sujo de sangue e lavasse bem o seu rosto, tentando apagar qualquer traço de culpa que pudesse lhe incriminar. A velha cigana fora categórica ao dizer que ela deveria manter tudo àquilo no mais absoluto segredo, e de forma alguma deixar que qualquer pessoa ao menos desconfiasse que ela tivesse algo haver com o assassinato em si. Diriam apenas que, estando ela voltando de um passeio pela cidade se deparou com alguém caído no caminho e quando ela por curiosidade foi ver de quem se tratava, percebeu que era o faquir e este, estava ferido de morte.

Como a hora já era um tanto quanto avançada, Sr. Zacky com muita má vontade e um mau humor bastante amargo, se levantara praguejando a tudo e a todos, quis logo saber quem o estava incomodando àquelas horas tão tardias. Com palavras rápidas e diretas, logo a cigana o colocara a par de toda a situação e mais que depressa lhe rogou que as acompanhasse até o local para quem sabe ainda poder ajudar o infeliz faquir. Rapidamente se encaminharam para o local do acontecido.

Quando chegaram onde tudo ocorrera, Sr. Zacky logo percebeu que o faquir estava sobre uma poça de sangue como se todo o sangue de seu corpo tivesse se esvaído e logo pôde verificar que Vladmir já estava sem vida, e que nada mais poderia ser feito por ele. Pediu a velha cigana que lhe repetisse toda a historia uma vez mais. Enquanto Madame Staell lhe relatava a história que ela mesmo criara em todos os seus pormenores, sem mudar uma única silaba se quer, ele com o dedo sobre o lábio superior tentava entender como aquele fato se dera. Mesmo achando toda aquela historia muito estranha. Pois, sabia ele que Vladimir era um homem forte e muito ágil e não deixaria se ferir tão facilmente daquela forma com uma facada no peito, havia algo muito errado naquilo tudo, mas de forma alguma ele ousou duvidar das palavras que a cigana lhe relatara.

Deixando o dono do circo digerir a historia bem como entendesse, deu-lhe alguns minutos de reflexão e logo em seguida questionou-lhe de forma categórica e muito convincente:

– O que faremos Sr. Zacky? Este homem foi assassinado! Devemos acionar as autoridades imediatamente! Ou pelo menos dar o alarde pela cidade, quem sabe assim poderemos esclarecer o que aconteceu com nosso companheiro.

Darquinha se mantinha de cabeça baixa sem conseguir levantar os olhos – pois sabia que qualquer um poderia ver culpa em seus olhos – se mantinha quieta ao extremo tentando manter até mesmo a sua respiração num movimento cadenciado e muito silencioso, vez por outra dava um suspiro profundo e balançava a cabeça em movimento negativo. Quando a cigana propôs acionar as autoridades, de alguma forma ela pode entender o que estava sendo dito, mesmo sem poder ouvir nenhuma palavra se quer. Um frio arrepio correu por toda a sua espinha e todos os pelos de seu corpo se eriçaram, sorte sua que as trevas da noite ocultaram aquela infeliz e involuntária reação perante aquelas palavras de sua tutora. O dono do circo decidira que o melhor a se fazer era primeiro alertar seus companheiros, e somente depois, acompanhado de outras pessoas de sua confiança irem em busca das autoridades locais, pois sabia melhor do que ninguém que a polícia no Brasil não era muito sociável com estrangeiros e nada benevolente com estórias mal contadas. 

Em poucos minutos todo o circo estava de pé. O alvoroço foi completo como se o Juízo Final tivesse se iniciado. Houve diversas acusações, profundos lamentos e várias conjecturas infundadas. Todos pareciam ter uma resolução predeterminada para o que havia acontecido. Sr. Zacky a todo o tempo tentando se manter calmo e como líder daquela trupe, buscara com palavras de bom senso manter os ânimos amainados. Dizendo em tom sereno, mas de uma forma firme, que todos deveriam tentar falar um pouco menos e agirem um pouco mais. Reuniu alguns homens consigo e acompanhado da velha cigana foram em busca de alguma autoridade na cidade. Madame Staell dera ordem a Darquinha para que se recolhesse e em hipótese alguma deveria manter nenhum tipo de diálogo com quem quer que fosse. 

Logo toda a cidade estava sabendo do acontecido e como era um lugar onde a paz era absoluta, aquele trágico acontecimento era uma novidade que por muitos dias serviria de entretenimento nas rodas de conversas. Antes de tudo, havia a necessidade de tentar solucionar o crime. Naquela mesma noite, um pouco mais cedo, algumas pessoas da cidade presenciaram uma violenta discussão entre Nico Besta Fera e o Faquir Vladimir. Para os integrantes do circo aquilo era algo mais do que normal, mas para uma população pacífica e bastante fraterna, aquela contenda era algo desnecessário e bem possível de ser evitado. Para quem presenciou a discussão, não restava dúvidas de quem era o assassino do belo e simpático rapaz que a todos agradara naquele pequeno lugarejo. Vladimir, quando lhe era conveniente sabia muito bem como ser agradável e muito dissimulado. Assim que a notícia do assassinato chegou aos ouvidos do padre – principal autoridade local – e os relatos da discussão se fez presente, rapidamente fora dada a ordem para que o anão do circo fosse detido para um breve interrogatório.

É dito em mesas de bares e rodas de conversas que uma desgraça nunca vem sozinha. Nico Besta Fera que dormia sossegadamente, curtindo mais uma noite de bebedeira, nem mesmo poderia imaginar o que estava acontecendo quando um grupo de homens lançou-se sobre ele para o manietarem e o levarem perante o padre que já havia chamado o coronel, para que em sua presença o acusado pudesse confessar seu hediondo crime. O anão que despertara de um sono ebriamente pesado, se assustara bastante com tudo o que estava acontecendo. Primeiro pensou estar tendo um terrível pesadelo, mas logo pode perceber que realmente estava sendo amarrado e amordaçado por um monte de pessoas desconhecidas naquela escuridão da noite. 

Como ele dormia numa espécie de oficina do circo, junto a várias ferramentas e apetrechos, num ímpeto de tentar escapar daquela situação, deu alguns pinotes e empurrando um daqui e derrubando outro acolá tentou fugir pela única porta que havia naquele improvisado dormitório e quando se lançou em sentido a porta, acabou por derrubar a única mulher que estava naquele grupo que viera com intuito de prendê-lo. Na queda a mulher foi de encontro com um ancinho que havia caído com toda aquela balburdia. Os dentes da ferramenta lhe cravaram em seu crânio de forma letal, causando a segunda morte da noite naquela então pitoresca e pacata cidadela. 

O anão sem saber do que se tratava, ainda tentou de todas as formas escapar de seus algozes, mas sua tentativa desesperada de fuga era prova mais que suficiente de sua culpa pelo assassinato do faquir. Aquele incidente com a mulher na porta de sua barraca selara de vez o seu destino que se resolvera em poucos minutos, quando a turba enfurecida com a cena da mulher que perdera sua vida avista de todos após o anão tê-la empurrado na tentativa de se evadir do local. Nicolas Benetti fora linchado por um grupo de pessoas, que até então se demonstraram ser bastante calmos e muito benevolentes com forasteiros, mas naquele momento perdera por completo o sentimento de piedade. Sob uma torrente de socos e pontapés vindos de todos os lados, em poucos instantes a vida do anão do circo também fora tolhida.

Aquela noite que se iniciara com fogos de artifício, muita música e uma alegria incontida por parte de todos que prestigiavam a festa, terminaria com um saldo bastante negativo. Três mortes bastante incomuns. O primeiro deles, – um assassinato sem sombra de dúvidas – não havia certeza plena de quem era o criminoso – apenas conjecturas –. O segundo havia sido um infeliz acidente causado pelas sinistras tramas do destino. E o terceiro, – também um crime certamente –, mas os assassinos eram muitos e não havia como indicar um único culpado. Pois, fora um grupo, que sob a proteção da escuridão da noite conseguiu se livrar de qualquer tipo de acusação. Tudo foi tão rápido que ninguém viu nada e se alguém o viu, preferiu por se manter em sigilo numa espécie de autoproteção mútua. De certo modo tudo estava esclarecido. O que restava era cada qual chorar e lamentar pelos seus mortos e dar prosseguimento para as devidas exéquias de cada um.

Texto publicado na 6ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de junho de 2024. → Ler edição completa

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