Castelo Vampírico: O Vale da Sombra da Morte
Diário de Rute Fasano
31 de dezembro? - Um tremular doloroso e frio me consumia, a criatura continuou lá me acalentando e esperando paciente que eu fechasse meus olhos. Tudo ao meu redor começava a se tornar nebuloso e indistinto. Ao pé da minha cama uma mulher vestida de preto, de pele de um cinza escuro e cabelos prateados, me olhava com seus olhos brancos. Seu olhar agudo parecia me culpar pela minha situação. Meus olhos se fecharam devagar, eu estava cansada de lutar para me manter acordada. Fechei meus olhos. Quando os abri, eu estava deitada em outro lugar, entre sombras e neblinas. Me levantei e percebi que estava em meio a um vale cinzento, deitada perto de onde corria um rio com águas que pareciam mercúrio líquido. Olhei de um lado a outro e nem sinal do castelo, apenas neblina e vários tons de branco, vermelho, preto e cinza. E com infelicidade percebi que teria que andar descalça, já que fui para lá sem os sapatos.
Porém ao começar a caminhar comecei a ficar deslumbrada. A flora desse vale cinzento era ao mesmo tempo perturbadora e fascinante, havia uma certa estranheza que me estimulava a querer continuar aqui. Eu caminhei naquele lugar tentando entender a lógica da sua existência, mas era em vão. Observei cada detalhe da flora que me rodeava. As árvores eram as mais impressionantes, seus troncos de um branco pálido, como se fossem ossos muito bem preservados e com sua alvura intacta. Eu toquei a superfície da casca e era fria e lisa, me lembrando de mármore levemente acetinado. As árvores eram altas, galhos retorcidos formando contornos intrincados contra aquele céu nebuloso. As poucas folhas dessas árvores eram de um vermelho tão profundo, quase negro.
Espalhado pelos troncos das árvores havia líquens de um vermelho vivo como se estivesse saturado de sangue recém derramado. A presença de líquens aqui me encheu com uma sensação de alegria, respirei até mais profundamente para testar o ar, aquele líquen era um indicador de que o ar dali era puro, ou pelo menos eu queria acreditar nisso, já que aquela era uma outra realidade. Eu estava extasiada, as flores de lá possuíam um tom vermelho escuro, pareciam crescer em profusão, tinha caules finos e frágeis, mas ao tocá-los percebi que eram incrivelmente resistentes, algumas flores tinham pétalas com bordas serrilhadas que pareciam prontas para cortar qualquer um que as ousasse arrancar dali. Outras flores exibiam um vermelho muito mais intenso com pétalas que se abriam em espirais complexas, o centro delas de um negro profundo que parecia absorver toda a minha atenção como se eu estivesse a olhar um abismo.
No chão, uma vegetação rasteira cobria quase tudo. A grama era de um vermelho enegrecido, e ao pisar nela com meus pés nus, senti como se estivesse caminhando sobre um tapete de veludo. Espalhados por entre as árvores e a grama, havia os arbustos de folhas longas e estreitas, tingidas de uma cor que varia entre o vermelho escarlate e o preto. Esses arbustos estavam cobertos de bagas negras, que exalavam um aroma doce. Peguei uma dessas bagas, mas não ousei experimentar seu sabor, sua textura era macia. Apertei uma delas e um líquido vermelho vivo escorreu por entre meus dedos aparecendo sangue arterial fresco. As rochas que havia ali possuíam uma luminosidade, como se estivessem banhadas de orvalho. Havia musgo em algumas delas de um preto profundo.
Outras flores diversas haviam ali entre as rochas, umas se assemelhavam a lírios de um tom prateado, com pétalas longas e curvadas. Outras eram como lírio-da-aranha-vermelha bem vibrantes que se movimentavam em sincronia em seus caules como aranhas reais mexendo suas patas. Toda a flora daquele ambiente parecia estar saturada de uma vitalidade incomum, uma energia que parecia me fascinar e ao mesmo tempo me levar a uma saudade de algo que eu não sabia o que era, uma saudade equilibrada entre a beleza e o horror. Tentava, por hábito, procurar significado nessa sensação, e talvez decifrar a linguagem das flores que eu via neste vale cinzento. Mas aquele não era o momento para decifrar aquilo, eu tinha que encontrar o castelo.
Andei por aquela neblina, procurando o caminho de volta. E avistei uma vila peculiar, havia pessoas lá, com seus rostos disformes e uma fumaça negra que emanava de seus olhos e bocas, outros nem rosto possuíam, me deixaram intrigada e um pouco assustada. Porém eles não pareciam ser perigosos, mas olhar diretamente para eles me perturbava. Respirei fundo, eu fui até um deles, precisava voltar ao castelo. Cheguei perto com receio.
— Olá. Poderia me dizer em que lugar estou e como posso voltar ao castelo? — perguntei receosa.
— Essa é a Vila de Séttimor — ele respondeu com paciência. — Nem todas as pessoas são bem-vindas aos umbrais de Drácula ou aos cuidados de Olga Nivïttiz, então criamos aqui um lugar para existirmos. Para voltar ao castelo você deverá seguir em direção ao ramoso nevoeiro. — Ele apontou para esquerda para um lugar cheio de brumas e ramos brancos translúcidos que pareciam vivos. — Você é hospede do castelo? — ele perguntou se virando para mim.
— Sim, mas de alguma forma que não entendo, vim parar aqui.
— Você é bem-vinda aqui, se quiser ficar por um tempo. Mas ficar por tempo demais distante do castelo pode te fazer perder partes do seu corpo, memória, moral, consciência e existência. Tudo será corroído pelo paradoxo da atemporalidade. Nós, os settimôros, nos acostumamos a isso. Mas aconselho que, se não for da sua vontade, é melhor não permanecer por muito tempo aqui.
Mesmo com esse aviso eu não sentia vontade de ir, não naquele momento. A aparência fora do comum dos habitantes, aquele vale, aquela vila, tudo parecia me acolher. Enquanto eu o seguia para a vila em meio àquela neblina densa, pude reparar nas casas cinzas e de telhados pretos, alguns tão pontiagudos que pareciam espetar a neblina que ocultava aquele céu também cinzento. Em certos telhados eu podia ver aquele líquen vermelho como sangue, diferente do vale em que eu havia acordado, a flora daquele lugar parecia morta, flores secas e árvores altas com troncos e galhos enegrecidos. Os habitantes, apesar das aparências perturbadoras, não transmitiam perigo algum, assim como o morador que me guiava pela vila. Todos pareciam viver suas vidas, crianças, jovens, velhos todos, mesmo que sem nenhuma expressão em seus rostos vazios e cheios de fumaça, pareciam transparecer felicidade. Suas vestimentas variavam em estilos e cores, alguns usavam mantos longos e escuros, outros se vestiam com roupas que pareciam feitas de couro. Existiam aqueles que se apresentavam com trajes nobres em cores entre vermelho, preto e tons cinzentos, com diversos adornos. Resolvi ficar um pouco mais naquela vila, talvez para entender o motivo de eu me sentir tão confortável lá.
O morador, que depois se apresentou com um nome que parecia soar como Dalvk, ou coisa parecida, virou-se para mim talvez percebendo meu interesse na vila.
— Vejo que está interessada na vila, muitos que acabam aqui perdidos a acham extraordinária, outros a acham terrífica. Eu posso apresentá-la para que você tire suas próprias conclusões. Você aceita?
— Sim, claro. — Eu disse animada.
Ele me guiou pela vila me mostrando cada parte dela, me levou até uma das casas que era cinzenta também por dentro e dominada pela neblina que vinha de fora. Ele me mostrou um pequeno altar e me explicou que havia um desse em todas as casas da vila, onde diariamente eram deixadas oferendas ao Ente. Alguns deixavam pedras preciosas, flores colhidas no vale fora da vila, ou objetos feitos à mão. Ele me explicou que o Ente era uma entidade que representa para os habitantes da vila o entendimento além do paradoxo, ele representa a paz em meio ao desconhecido. Me contou que o Ente se manifesta para aqueles que estão próximos de sucumbir ao paradoxo, guiando-os.
Ele relatou que em noites de lua nova, os moradores vestem roupas cerimoniais em preto ou cinza e acendem velas em um ritual silencioso. Essa cerimônia era chamada de noite das sombras, onde eles homenageavam aqueles que passaram pela sétima e última morte. Toda a vila ficava em silêncio enquanto as velas eram levadas até o cemitério e deixadas sobre as lápides. Acho que ele percebeu que eu não estava entendendo essa coisa de “sétima e última morte”, pois olhou para mim como se sorrisse e me explicou.
— Eis as sete mortes que conduzem a vila. Me permita explicar cada uma delas.
— Sete mortes? — eu disse curiosa.
— A primeira morte é adentrar ao paradoxo, o nascer na vila. Esta morte é o início da nossa jornada, o momento que deixamos o desconhecido e entramos nessa existência. A segunda morte é sentir o paradoxo, na infância. Nesta fase começamos a sentir o paradoxo e nos deparamos com a complexidade do nosso mundo pela primeira vez. A terceira morte é perceber o paradoxo, na pré-adolescência. É quando começamos a perceber claramente as inconsistências do paradoxo, questionando a lógica que nos cerca. A quarta morte é questionar o paradoxo, na adolescência. Nessa fase, começamos a questionar o paradoxo em busca de respostas. A quinta morte é compreender o paradoxo, na vida adulta. É quando começamos a aceitar e entender o paradoxo e abraçando sua complexidade e sua existência. A sexta morte é desejar o paradoxo, na velhice. Nesta fase passamos a desejar o paradoxo buscando a complexidade que antes nos desafiava. E, finalmente, a sétima morte é sucumbir ao paradoxo, a morte em si. É quando deixamos essa existência e vamos de encontro ao um estado mental de paz, somos consumidos pelo paradoxo, nos entregando ao desconhecido uma vez mais e indo de encontro ao Ente.
— Isso é tão profundo e bonito. — Eu fiquei fascinada com a sua explicação.
— Sim, cada fase é uma pequena morte que nos transforma, nos prepara para a nossa próxima morte. Venha, quero te mostrar algo.
Eu o segui por entre o cemitério da vila, e a cada passo eu queria fazer parte daquele mundo e daquele povo. Ele me levou até um local que parecia um pequeno templo, sentado lá dentro algo que parecia um homem envolto em um manto negro sentado em posição de lótus, com o rosto virado para cima como se olhasse fixamente para o teto. Seu rosto paralisado, olhos profundos e negros, uma fumaça cinza escura que parecia sair dos seus poros.
— Este é nosso líder ancião Kvvus, ele está passando pela sétima e última morte. Ele não fala mais, não escreve, apenas fica a meditar e a sucumbir lentamente ao paradoxo. Logo o paradoxo o consumirá, e acredito eu, ele encontrará o Ente.
Não sei se foi a presença do ancião ou estar em um cemitério, mas comecei a me sentir estranha. Um enjoo, sonolência, uma sutil sensação de pavor que subia pelo meu ventre e se fixava no meu estômago. Olhei para minha pele que antes era um marrom claro e estava adquirindo um tom acinzentado.
— Os efeitos do paradoxo chegaram cedo demais para você. Aconselho que vá agora, pois depois não conseguirá sair mais. Venha.
Ele me levou até o ramoso nevoeiro e disse que eu deveria seguir por ele sem olhar para trás. Me despedi dele como quem se despede de um amigo de longa data e me surpreendi ao abraçá-lo sem pensar. Ele retribuiu o abraço e disse para que eu fosse logo. Caminhei por entre a neblina e cada passo era um desafio, sentia vertigens que se intensificavam aos poucos. Eu precisava encontrar alguém, a solidão que antes era uma necessidade para mim, agora era um incômodo insuportável, talvez o encontro com os settimôros tenha me deixado com a necessidade de estar no meio de outros. Eu não queria estar sozinha, eu queria voltar para a vila. Os galhos do nevoeiro me prendiam tentando me arrastar de volta para névoa e dentro de mim a vontade de apenas me deixar ir e ser levada por ele de volta à vila era quase irresistível. Enquanto me deixava ser puxada vi uma sombra parada para além da névoa. Eu precisava saber o que era ou quem era, sua aparência me era familiar. Então ela apareceu diante de mim, imponente e serena. Seus olhos de um branco cadavérico. Era a mulher que me olhava ao pé da minha cama. Ela me olhou por um tempo.
— Não é a sua hora, você não deveria querer estar aqui. — Sua voz era suave como um sussurro. — Hadassa não te culpa por nada. — Ela pegou um globo parecido com uma bola de cristal só que menor e me mostrou ela em um jardim cuidando de belas flores negras. — Ela está em paz e quero que permaneça assim. Esse apego está te matando aos poucos, volte para o castelo. — Ouvir o nome da minha amada sair de seus lábios fez com que eu sentisse um frio subir pela minha espinha e um incômodo no peito. E, enquanto escrevo essas palavras em meu diário, a lembrança do evento faz com que consiga sentir outra vez esse frio me percorrer.
Enquanto eu olhava para ela, tentava processar suas palavras. Minha mente era um turbilhão de pensamentos e emoções. Vê-la feliz em um jardim, saber que todos os encontros que tive com ela foram talvez reais, despertou uma ideia que dominou minha mente. Comecei a falar comigo mesma em voz alta, gesticulando de maneira incontrolável com as mãos, andando de um lado a outro.
— Será que é possível trazer ela de volta? Drácula fez isso, se eu soubesse como talvez eu poderia fazer o mesmo. Mas como ter acesso a esse conhecimento?
Perdida em minhas reflexões, mal percebi que a mulher tinha desaparecido e que a névoa ao meu redor se adensava. Seus ramos me reconfortavam de forma sutil. Só que agora com essa ideia na mente eu não queria mais permanecer lá, por mais tentador que fosse. Eu corri e seus ramos se moviam rápidos na bruma, mas meus esforços pareciam em vão. A mulher misteriosa de antes apareceu de novo, dessa vez carregando um lampião prateado, ela me entregou ele.
— Isso a guiará de volta ao castelo. — Voltei a me movimentar pela névoa e a mulher misteriosa segurou meu braço me obrigando a voltar a olhar para ela. — Que ela permaneça em paz onde ela está, para sua segurança. — Seu tom soou como uma ameaça e isso me alarmou. Ela soltou meu braço com delicadeza, fechou os olhos por uns segundos como se parasse para refletir. — Há mistérios que não precisam ser conhecidos. — Ela disse isso e desapareceu em meio à névoa, me deixando sozinha com o lampião.
Voltei a correr, segurando firme o lampião, e de repente me senti puxada na direção em que eu seguia. Logo me encontrei no quarto como se estivesse acordando de um sonho. Me sentei sobressaltada, uma euforia febril tomou conta de mim. Senti uma dor muito forte no antebraço esquerdo, a criatura estava roendo-o. A visão era horrível, seus dentes afiados cravados na minha carne, o sangue escorrendo. Senti uma onda de desespero e instintivamente, com toda a força que pude reunir, bati com o lampião na cabeça da criatura. O impacto foi brutal e deixou o lampião em pedaços, espalhando vidro e metal pelo quarto. A criatura urrou de dor, recuando com o golpe. Aproveitei a oportunidade e corri para fora do quarto, sentindo o coração bater forte e o sangue pulsar em meus ouvidos. Os corredores do castelo se estendiam intermináveis diante de mim, mas eu não podia parar, precisava escapar da criatura.
Corri até minhas pernas começarem a doer e meus pulmões arderem. Parei em um corredor por um momento para tomar fôlego. Havia uma grande janela à minha direita, me aproximei. Fiquei sem palavras com o que vi, depois de 6 dias de completa escuridão azulada, o céu estava finalmente clareando. Uma manhã cinza e enevoada, as flores estavam mortas e as árvores sem vida. A solidão que antes eu tinha como refúgio, agora me consumia. Aquela manhã gelada e cinza parecia tornar tudo mais incômodo dentro de mim. Eu não queria estar sozinha, não depois de passar um tempo com os settimôros e ver neles toda aquela união e o desapego por aquilo que era permanente. De repente, ouvi risadas. Risadas infantis, ecoando pelos corredores. Dissonante naquela atmosfera solitária. Sem pensar muito segui o som, na esperança de encontrar qualquer coisa.
Quanto mais eu me aproximava das risadas, mais meu coração acelerava de ansiedade. Passei por salas vazias com apenas retratos antigos que pareciam me seguir com o olhar. Cheguei a uma porta e as risadas vinham lá de dentro. Empurrei a porta e fiquei perplexa com aquele salão imenso e alto, bem iluminado, cheio de brinquedos, artes penduradas nas paredes de pedra e várias crianças brincando. Seus rostos angelicais, suas roupas anacrônicas. Ao me verem entrar pararam de brincar e me olharam com curiosidade. Uma das crianças, uma menina de cabelos negros e olhos brilhantes, se aproximou de mim.
— Você está perdida? — ela perguntou com uma voz inocente. Senti as lágrimas virem e as segurei enquanto olhava para aquelas crianças.
— Sim. — Respondi com a voz tremendo. — Estou perdida. — A menina sorriu e segurou minha mão.
— Venha talvez depois da aula eu possa te ajudar a encontrar o caminho.
Ela me levou para o fundo da sala, me sentei no chão e fiquei observando as crianças enquanto elas pareciam brincar. Então algo perturbador chamou minha atenção, sete espectros brancos agindo como sombras e imitando cada movimento das crianças. Cada espectro de tamanho diferente. De repente uma das crianças, em segundos, se transmutou e assumiu a forma de um adulto. Fiquei surpresa quando uma a uma as crianças assumiram a forma dos espectros e se transformaram cada uma, umas em adultos, outras em adolescentes, outras em velhos. Me lembrei das sete mortes dos settimôros, e senti falta daquele lugar incomum ao qual passei tão pouco tempo. A menina de cabelos negros havia acabado de se transformar em uma adulta e logo depois voltou a ser criança.
— Como isso é possível? — Perguntei cheia de curiosidade e espanto.
— Todos aqui são aprendizes do domínio do tempo. Aprendemos a nos transmutar com o professor Monm. Podemos viver a infância em um segundo e logo depois nos tornarmos adultos. Quer aprender? — Ela me perguntou cheia de entusiasmo na voz. Hesitei por um momento, mas a curiosidade de experimentar esse conhecimento era tentadora.
— Sim. — Respondi trêmula e fiquei um pouco em dúvida se era o certo a fazer.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…