É no abismo que os monstros aprendem a sentir
Diário de Sibila von Lichenstein
15 de setembro de 1870
Os dias passam como sombras longas ao entardecer, arrastando-se, pesados e cheios de silêncio. Esta manhã, olhei para o meu reflexo e vi um rosto que reconheço pouco; não sei se ainda sou a mesma Sibila que deixou a Prússia anos atrás. Porém, continuo tentando esquecer os anos de horror que vivi ao lado de Viktor Frankenstein, sem êxito.
Nas poucas horas de sono que tenho conseguido ter, enxergo alívio para minha mente culpada. Mas parece que até mesmo atravessando os umbrais para dentro do mundo onírico, a culpa desvendou um caminho ilegal para dentro dele também.
Então, faz-se necessário eu registrar aqui o sonho que tive, talvez isso me ajude a desvendar o propósito de minha vinda até aqui. Pois bem, estafada de tanto tentar mascarar o cheiro insuportável de lavanda, tentando escrever o dia todo para esquecê-lo. Deitei-me na cama, do que me pareceu ser o meu quarto, dentro desse grandioso e labiríntico lugar que esse castelo se assemelha.
Tão logo relaxei meus sentidos e deixei minha alma buscar o descanso no mundo dos sonhos, vi-me envolta por brumas de tons rosáceos e violáceos que surgiam não se sabe de onde e nem como. Eu estava vestida com um manto branco, adornado por bordados dourados e vermelhos, cujos motivos eram dragões orientais. As mangas eram longas, mas o manto era do meu tamanho exato, de forma que minhas mãos estavam para fora. Ciente disso, caminhei e estendi os meus braços e com as minhas mãos tentei tocar aquelas brumas, mas só pude atravessá-las sem senti-las.
Não me importei, pois notei que o meu sentido do olfato também falhava, estava feliz porque de nada sentia o cheiro. Então simplesmente continuei a caminhar. Até que em minha frente começou a surgir a figura de um rapaz jovem e negro, sua pele era negra, com tons iguais ao de ocre dourado. Eu achei-o lindíssimo, diria que tinha por volta de 17 anos. Seus olhos azuis-claros eram sérios e penetrantes, porém; eu não diria que ele tinha apenas 17 anos, pois seu olhar denotava uma frieza calculada, como se não quisesse dar nenhum passo incauto. Como se cada movimento e frase sua fosse calculado para guiar as suas ações dentro de um plano que as pedia.
— Deve estar se perguntando quem eu sou, não é mesmo, Sibila?
Quando ele terminou de perguntar, foi que eu percebi que a bruma que tomava todo o lugar eram os cabelos dele, eram encaracolados de tal modo, que vistos aos meus olhos se assemelhavam a brumas que volteavam a si mesmas. Talvez por isso eu não pudesse senti-las. Maravilhada com o que via, perguntei sem hesitar:
— Sim, estou! Quem é você?
— Eu sou Lieran, guardião do primeiro umbral de Somníria, eu porto a chave para um portal: o sonho da pessoa com quem mais você precisa conversar agora.
— Mas eu não sei com quem eu preciso conversar, pra falar a verdade, eu acho que não tenho com quem falar. Minha mãe morreu ao dar à luz, e meu pai não resistiu ao inverno. E... bem, eu sou sozinha no mundo desde então. Não tive tempo de fazer amizades, eu não sei o que é o amor, eu cresci com os cuidados paliativos do meu pai para que a vida se mantivesse em meu corpo. Mas como pai, ele pouco esteve presente, pois ou trabalhava ou eu morreria.
— Não temas, criança. Somníria deve saber os desejos do seu coração.
Lieran carregava uma chave pendurada em um cordão dourado e grosso. A chave balançava levemente, seguindo o movimento da brisa que batia em nossos rostos. Apesar de parecer pesada, com seu tamanho grande e os rococós que adornavam cada centímetro de sua superfície, era surpreendentemente leve.
Ele pediu que eu me postasse ao seu lado. Obedeci, observando enquanto ele pegava a chave com a mão esquerda e a encaixava em algum lugar no ar — um ponto invisível que eu não podia ver nem compreender. Quando girou a chave, um som grave reverberou ao nosso redor, como o badalar de um sino distante. Por um momento, pensei ter ouvido sussurros ao longe, como se a própria Somníria estivesse nos observando. E então, diante de nós, surgiu uma porta.
Ela já estava aberta, e, através dela, vi um homem sentado de costas, à beira de um precipício. O portal dava passagem a um campo verdejante que terminava naquele abismo. O campo era vasto, interrompido apenas por ervas daninhas espinhentas que pareciam me desafiar a cada passo. Quando pisei nelas, senti seus espinhos perfurarem meus pés. Doeu, mas as perdoei — quem nunca revidou quando teve o coração ferido?
Não sabia quem era o homem sentado à minha frente. Ele tinha costas largas e vestia uma camisa puída, que um dia já fora branca. Ao me aproximar, percebi que ele era muito bonito, com uma aura e aparência apolíneas. Seus traços eram perfeitos; não havia cicatrizes ou marcas que quebrassem sua simetria impecável. Seus dentes eram branquíssimos, e ele sorria para mim — mas aquele sorriso não chegava aos olhos. Era impossível ignorar o que se escondia ali, no âmbar de seu olhar: a marca de alguém que contemplou o abismo e nunca voltou inteiro. Uma tristeza e um desespero profundos habitavam aquela expressão serena.
— Sente-se, Sibila — disse ele, sua voz tão bela quanto o resto de sua presença. — Venha contemplar as brumas do desconhecido junto a mim.
Senti-me intrigada, mas também estranhamente confortável. Ele parecia saber meu nome, muito mais, parecia conhecera minha alma, mas eu não fazia ideia de quem era. Retirei meu casaco, coloquei-o no chão ao lado dele e me sentei, contemplando o vazio do precipício. Peguei uma pedra próxima e a joguei. Esperei por alguns segundos, mas não ouvi o som de seu impacto. Era como se a pedra tivesse sido engolida pelo próprio nada, tão profundo quanto as emoções que esse estranho parecia carregar.
— Sinto que o conheço, porém nunca o vi em toda a minha vida — falei, tentando romper o silêncio.
— Acho que é porque você já ouviu muito sobre mim. Pode me chamar por Marcos, o nome que escolhi para mim, já que meu criador não se dignou a me dar um — respondeu ele, com um tom que misturava mágoa e resignação.
— Seu criador? — perguntei, sem desviar os olhos do vazio à minha frente.
— Sim — disse ele, e seu semblante mudou, como se mergulhasse em lembranças que preferia evitar. — O homem que moldou minha carne e deu vida a este corpo, mas não a um propósito. Ele me deu força, mas não direção. Beleza, mas não aceitação. Você o conheceu, não foi?
Meu coração apertou. O nome de Viktor veio a minha mente repentinamente, um peso que eu sempre tentava evitar. Ele fora tudo para mim antes de se revelar o que realmente era: um manipulador, um cancro que envenenava tudo o que tocava.
— Não imagino quem possa ser. Tampouco sei como me conhece. Lieran apenas me disse que precisávamos conversar, mas até o momento me pergunto o porquê — respondi, tentando esconder a tensão que me invadia.
— Então você realmente não faz ideia de quem seja o meu criador. Foi Viktor, aquele que você matou. Não me pergunte como sei disso, nem mesmo eu sei como sei de certas coisas por aqui. Confesso que pensei que encontraria a paz, alguma espécie de alívio, ao saber da partida dele; no entanto, sinto que essa notícia em nada aliviou o meu fardo. Estou há tempos encarando esse abismo à minha frente, perscrutando todas as reentrâncias. Ele representa minha mente: profundo, vazio e ao mesmo tempo cheio de grandes coisas que nada querem dizer.
Suas palavras me atingiram como uma bofetada. O nome de Viktor, dito em voz alta, trouxe de volta memórias que eu preferia enterrar. Ele era tudo o que eu queria esquecer, mas também tudo o que eu nunca conseguiria. Como ele pôde criar algo como Marcos e ainda ser tão monstruoso?
— Eu o conheci — admiti, hesitante. — Mas nunca soube sobre... sobre você. Ele nunca falou de você. Eu apenas li sobre você, acho que li. Marcos, é esse o nome que você escolheu para si mesmo? Viktor sempre que escrevia sobre você... — Interrompi-me, hesitante, as palavras morrendo na minha garganta.
— Você fala como se também tivesse sido moldada por ele — disse Marcos, sua voz baixa, mas incisiva. — Não com bisturis e costuras, mas com palavras e manipulações. Estamos mais conectados do que você pensa, Sibila.
Meus olhos voltaram ao abismo. O que me trouxe aqui? Será que era o peso da culpa que carregava? Ou o desejo de entender o que significa criar algo para em seguida desistir de tudo e abandonar? Não sabia ao certo, mas os olhos de Marcos pareciam esperar mais de mim do que eu sabia oferecer.
— Não precisa ter medo — disse ele, sua voz suave como o vento. — Eu sou apenas um sonho... Tudo o que está aqui é um constructo da sua mente e da minha, mas nada pode ser realmente tocado.
— Não estou com medo, na verdade eu nunca o vi como um monstro. Eu sentia pena de você e pude me colocar no seu lugar. Com Viktor eu desenvolvi dependência. Deixei e depois passei a desejar que ele me possuísse, para me sentir bela. Deixei que ele regesse a minha vida acadêmica, depois minha vida financeira e por fim, quando me dei conta ele havia retirado tudo de mim. Um verdadeiro monstro.
— Ele retirou tudo de você ou foi você que se deixou se enredar? E no fim? Sibila, minha cara, quem de nós é mais monstro? Será que é apenas Viktor, ou só estamos replicando o que nosso criador fez, sendo egoístas e nos dobrando às nossas próprias emoções, sem ter real controle sobre nossos atos. Ou será que alegamos não termos autocontrole, quando na verdade isso é uma mera desculpa para aliviarmos o nosso próprio fardo e continuar a viver?
— Eu não sei, não me considero um monstro por mata-lo. Acho que ele procurou pela própria morte, se tornara um velho asqueroso, uma casca enrugada, cega por suas vontades e desejos vis. Viktor abusava delas. No entanto, eu sei que sou culpada por atrair aquelas mulheres para lá. A morte delas recai sobre mim. Acho que estou aqui, porque preciso perguntar a você sobre isso. Como você se sente sobre todas as vítimas que fez?
Marcos olhou para o vazio diante de nós, seus olhos agora perdidos em algo que apenas ele podia ver. Sua voz, quando finalmente falou, era baixa, quase sombria.
— Eu entendo suas palavras, Sibila. A morte de Viktor, de certa forma, me parece inevitável. Ele buscava a destruição de tudo o que tocava, e você... você apenas respondeu ao que ele fez a você. A culpa que sente não pode ser sua, não por aquilo que ele provocou. Mas, como você, eu também sou culpado. Não de uma única morte, mas de tantas outras, tantas almas que encontrei pelo caminho. Eu os vi, cada um, antes do fim, e sabia que o que fazia não era certo. Eles eram pessoas com histórias, com sonhos, e eu... eu arranquei isso deles. A morte deles recai sobre mim, e o peso disso nunca sai da minha mente.
Ele pausou por um momento, como se pesando suas próprias palavras, antes de continuar, mais suave, mas não menos carregado de dor.
— Não sei se me sinto arrependido. Talvez em algum lugar, eu devesse. Mas me pergunto: seria o arrependimento apenas uma tentativa de eximir-nos da responsabilidade por nossas ações? Ou será que apenas tentamos escapar do abismo que criamos dentro de nós, fugindo de nossa própria natureza, de nossa própria essência?
Marcos voltou a me olhar, seus olhos profundos, como se procurassem algo dentro de mim.
— Eu sinto... tristeza. Tristeza por não ter tido a chance de fazer diferente, de não ter sido... mais humano. Não sei o que é ser humano, Sibila. O que sei é que, após tantas mortes, tantas escolhas erradas, a única coisa que me resta é esse vazio, esse eco de almas perdidas. E talvez isso seja o verdadeiro castigo, mais do que qualquer julgamento divino.
Ele se virou lentamente, fixando os olhos no abismo diante de nós, como se, ali, pudesse encontrar uma resposta para sua própria existência.
— E você, Sibila? O que espera encontrar aqui? O perdão, a absolvição? Ou talvez a resposta para sua própria dor?
— Eu esperava que você pudesse me dar essas respostas. Mas agora, ao ouvir tudo o que disse sobre a culpa que carrega, percebo que as respostas para nossas perguntas não habitam nem o passado que nos assombra, nem o futuro incerto à nossa frente. Este lugar, Marcos... é um reflexo da sua mente, um eco do que ficou. Lieran me explicou que eu adentraria o sonho de alguém com quem eu precisava falar. — Suspirei profundamente, sentindo o peso do momento. Olhei para o seu rosto, tão perfeito, mas carregado de culpas, medos e questões não respondidas. Seus olhos dourados captaram minha atenção, e seus lábios escureciam como o céu antes de uma tempestade. Então, naquele instante, percebi que não estava diante de um monstro, mas de um ser profundamente humano.
Fiz uma pausa, minha voz tornou-se mais serena enquanto as palavras fluíam com clareza:
— Então, compreendi, Marcos. As respostas não estão lá fora, nem no que já foi, nem no que virá. Elas vivem em nós, aqui e agora. O presente, esse fio invisível que nos conecta ao que realmente somos, é tudo o que temos. Este é o nosso domínio. O passado nos molda, mas não podemos revertê-lo, apenas aceitá-lo. O futuro é uma miragem, distante demais para ser tocado. Já o presente... o controle sobre nossos corpos, mentes e corações, isso sim nos pertence, e só isso é verdadeiramente nosso.
Marcos permaneceu em silêncio por alguns instantes, a expressão no rosto indecifrável, enquanto seus olhos pareciam absorver as palavras de Sibila. Uma lágrima solitária começou a rolar pela sua bela face, como se estivesse se libertando de uma teia invisível que o prendia àquela dor constante. Então, finalmente, ele respondeu, ainda carregado de uma tristeza profunda, sua voz estava embargada:
— Eu passei tanto tempo buscando respostas no passado, nos erros de Viktor comigo e nos próprios que cometi. Me fixei demasiadamente no que eu poderia ter sido, que nunca percebi que a única coisa que realmente tenho é o presente... O único momento que realmente posso tocar e mudar. Mas como? Como posso abraçar isso, quando o peso de tantas vidas perdidas ainda pesa sobre mim?
Ele olhou para ela, como se ela fosse a única pessoa capaz de entender.
— O que você me diz, Sibila? Como podemos, de fato, aceitar o que fomos e ainda assim encontrar algum tipo de paz? Como, depois de tudo o que fizemos, podemos ainda acreditar que a redenção é possível?
Sua voz falhou por um momento, e a tristeza nos seus olhos era palpável. Ele parecia frágil, vulnerável, mais humano do que qualquer monstro poderia ser.
— Você tem razão, o futuro não está em nossas mãos, nem o passado. Mas o agora? O que podemos fazer com o agora, o único tempo que realmente temos?
Marcos olhou para mim em silêncio por um momento, como se as palavras que eu disse estivessem se acomodando em sua mente, pesando em seu coração. Quando finalmente falou, sua voz parecia mais suave, mais próxima, como se a dor e a culpa ainda estivessem ali, mas agora fossem mais fáceis de suportar.
— Talvez você esteja certa — ele disse, a voz tremulando, como se fosse uma confissão que ele nunca havia ousado fazer. — Eu passei tanto tempo tentando buscar respostas nos escombros do passado, tentando entender as escolhas de meu criador e os meus próprios erros, que me esqueci do que realmente importa... o agora. Eu vivi em função daquilo que não posso mudar, e o futuro, que nunca saberia se chegaria, ficou como uma sombra sobre mim, me cegando para o presente.
Ele fez uma pausa, os olhos fixos em mim, como se me visse de uma maneira nova, como se tivesse acabado de perceber a verdade de minhas palavras. Ele sorriu levemente, mas dessa vez o sorriso não parecia tão amargo, como se houvesse uma leve compreensão, uma aceitação incipiente.
— Talvez, no fim, o monstro... não seja tanto o que fizemos, mas o que deixamos de fazer. E agora, talvez, seja hora de parar de fugir de mim mesmo.
Levantei-me. Sentia que algo estava se fechando ali, mas ao mesmo tempo, uma nova jornada se abria, desconhecida e cheia de enigmas. Voltei a sentir uma leve brisa em minha face, também voltei a sentir um cheiro adocicado, um que estava sentindo antes de cruzar a porta que me levara para o sonho do monstro. Ele permaneceu sentado, talvez refletindo sobre o que dissera ou sobre o que eu lhe dissera.
— Você não está sozinho. Existe um lugar... um castelo onde talvez eu possa encontrar mais respostas. Talvez possamos descobrir mais sobre nós mesmos lá, juntos.
Ele franziu as sobrancelhas, surpreso, mas algo em seu olhar dizia que ele entendia, que ele sentia a mesma necessidade de seguir em frente, de buscar algo novo, ou talvez, de finalmente encontrar algo que o libertasse. No entanto, quando eu quis abrir minha boca novamente, para convidá-lo a vir comigo, a imagem de Marcos começou a desvanecer-se.
A paisagem bucólica que nos circundava rapidamente começou a sumir e a dar lugar ao local anterior, onde eu me encontrava com Lieran.
— Ele está desaparecendo... — murmurei, ainda com os olhos fixos no espaço onde Marcos estivera segundos atrás, agora tomado por uma névoa que se dissolvia como fumaça ao vento.
— É o destino dos sonhos, Sibila. — A voz de Lieran soou serena, mas havia algo de enigmático nela. Ele segurava a chave dourada, que agora parecia brilhar mais intensamente. — Eles nunca duram para sempre, mas sempre deixam algo em quem os vive.
Eu virei para encará-lo, o peso de tudo o que fora dito ainda apertando meu peito.
— Por que me trouxe aqui, Lieran? Por que esse sonho? Por que Marcos?
Lieran sorriu levemente, mas não respondeu diretamente. — As respostas que você busca não estão apenas nos sonhos.
— Eu poderei vê-lo novamente, Lieran?
Lieran inclinou levemente a cabeça, como se considerasse algo. Antes que eu pudesse perguntar mais, a chave em sua mão girou no vazio novamente, e tudo ao meu redor desapareceu em um lampejo dourado, deixando apenas as palavras de Lieran ecoando na minha mente:
— A esperança reside nos sonhos, Sibila! Ela é a fagulha inicial de todos os sentimentos e entendimentos...
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…