Capítulo 7 — Culpa e Proteção
Minha consciência era vívida e sólida. Todo o mobiliário ao redor era pálido e tal cor evidenciava, em maior perfeição, a riqueza dos detalhes vitorianos. A tapeçaria tinha nuances de um lilás rarefeito e pelas fenestras de seus vitrais outrora escarlates, residia um lume profundo e difuso cuja branca essência etérea se manifestava em sua própria condição de fulgor. “Eu... acordei?” — Indaguei em silêncio, aproximando-me devagar até a luz, observando pela janela o Castelo e seu abismo — era o que eu esperava ver. No entanto, confirmando o que eu já pressentia, tudo estava diferente. Vi uma inundação suave de nuvens como uma celestial verdade entre a vida e a morte; um alvililás se expandia na imensidão, e a serenidade silenciosa do derredor era estonteante em sua agradabilidade. Tinha o aspecto de um sonho profundo e belo, porém, sinto que era real, sinto que neste estranho lugar eu estava desperta tal como estou agora.
Ao abrir os umbrais de meu aposento, não vi, pois não havia, o corredor derradeiro. Apenas nuvens. E por elas pude caminhar. A beleza plácida era tão vestal e mágica que, pela primeira vez, senti-me realmente protegida. Um aroma de lavanda cingia-me suave, mas as flores não eram visíveis. O horizonte era perpétuo, não havia sol ou lua, embora tudo estivesse clarificado tal como o dia mais vestal. Pouco depois, enquanto andejava sem rumo, avistei um portal de riqueza insondável. Esculpido no que julguei ser pedras de opalina com seu brilho irisado característico. Neste momento, senti-me instigada a atravessá-lo, como se um estranho chamado silente adviesse do seu interior, embora, aos meus olhos, nada houvesse além de nuvens do outro lado, tal como ali onde eu pisava e tal como em tudo o que havia em todas as direções.
— Tu não pertences a este lugar. — Ouvi. Era um tom suave, embora intenso. Olhei na direção da voz ecoante e avistei uma mulher, de olhos fechados. Seus longos cabelos brancos pareciam movimentar-se suavemente pela brisa. O veemente contraste fascinara-me, pois, sua pele negra-acinzentada, beirando um intenso violeta-escuro, tinha uma perfeição destoante de tantas nuvens e tanta luz. Seus olhos, então, se abriram lentamente, e vi uma íris púrpura e brilhante.
— Nem a este, nem a outro, acredito... — proferi. A mulher sorriu, tinha uma aura serena. Caminhou devagar até se aproximar um pouco mais.
— Seja bem-vinda a Somníria. Se estás aqui, com teus olhos abertos, intriga-me saber de onde vens.
— Não de muito longe — afirmei —, direto de meu leito em um antigo castelo. — Ela pareceu pensativa ao me ouvir.
— O Castelo Drácula, eu suponho. — Eu a olhei com diligência.
— Como sabes? — Minha curiosidade a respeito disto estava estampada em meu semblante. A mulher sorriu outra vez, tão estonteante aura emanava dela.
— Não é fácil chegar a Somníria estando com os olhos abertos como tu estás. Olhos abertos, aqui, significa estar consciente e isso resulta em lembrar-se e lembrar-se resulta em saber que existe. — Ela se aproximou do portal de opalina irisada que, outrora, parecia me chamar e, dentre as plantas lilases ao seu envolto, retirou uma em especial, pálida e com pétalas leves e pequeninas. Entregou-me em seguida, apreciei o perfume doce e sutil da sua natureza. — Sempre-vivas guiarão teus passos em Somníria e, igualmente, por este sonho no portal que chama pela tua alma. — Com as mãos suavemente estiradas, como se indicassem um caminho a seguir, ela direcionava ao portal de opalina irisada. Desejei atravessá-lo outra vez, entretanto, havia mais a saber sobre aquele estranho paraíso.
— Se meus olhos abertos fazem com que a lembrança não se perca de meu lembrar, diga-me teu nome para que o esquecimento seja ainda mais improvável. — Olhei-a e suas pupilas dilataram-se sutilmente.
— Ihvia... — sussurrou. — Peço perdão por não me apresentar a ti, entenda que não há tantos despertos em Somníria e, em consequência, raramente vejo-me na necessidade de uma apresentação formal.
— Não te preocupes, apenas não quero te esquecer... — Havia tanto já esquecido, por esta razão as memórias tornavam-se tudo para mim de modo que eu sentia estar, a cada nova vivência, me preparando para defender, com todas as forças, as minhas novas memórias. Ihvia ficou em silêncio, por um tempo.
— O que tu buscas, Áurea, já está em ti. — Eu não esperava ouvir o que ouvi. — Olhe bem para dentro d’este portal, há algo que te espera no interior dele e, se ele te chama, é valioso que respondas.
— Conheces-me, então? Diga-me como? — Tive esperanças, por instantes, de ter alguém próximo que soubesse quem eu era, ou melhor, quem fui.
— Conheço teus sonhos. No entanto, levo algum tempo até lembrar-me deles e, consequentemente, lembrar de ti. É preciso mansidão para que as recordações aflorem sem dor e sem medo... — Silenciei. Ela parecia falar diretamente o que me tocava no mais íntimo do meu espírito. — Diga-me o que vês, aproxima-te do portal; revela-me o que ouves. — Os umbrais reluziam e o chamado era, não uma voz, mas uma intuição. Aproximei-me de sua esculpida forma e o que antes era apenas infindas nuvens, em sutileza se manifestava em formas e movimentos até transfigurar-se em uma cena esvanecida.
— Uma... mulher... eu mesma... — Proferi em um murmúrio, estando atenta aos detalhes dissipados. Ihvia sorriu quando eu a olhei por um segundo.
— Este é o teu sonho mais recorrente, Áurea. Contudo, ele emerge no teu sono profundo, no subconsciente. Talvez queiras encontrá-lo agora, com teus olhos abertos a ele. — Dissera enquanto eu me aproximava do portal. Sim, eu almejava olhar para o meu sonho recorrente e descobrir as verdades que o habitavam. Em especial pela paz que me trazia o simples aproximar. — Não temas. — Afirmou, no entanto, sua voz já estava longínqua e tão logo vi-me no interior do que outrora assemelhava-se a uma reminiscência.
Tudo ao derredor era pálido, envolvido por uma névoa translúcida com nuances de marfim, era como estar num entardecer melancólico com o sol dourado no horizonte e a sua luz espargindo pelas nuvens no céu, criando esplêndidas matizes. Eu estava em uma casa de madeira, singela e confortável; o sofá com uma colcha de pequi sobre ele ornava com almofadas em tons de bege. Havia um vazo de flores na mesa de centro, neles estavam as sempre-vivas que Ihvia colhera para mim. Eu sabia que eram elas. À esquerda, uma cozinha singela e cuidada, nos mesmos tons, algo era cozido no fogo à lenha, uma panela cujo aroma agradável aquecia o coração. Tomates, talvez? Pimenta e limão? Segui em direção ao cozido, no entanto, um choro tenro me alcançara os ouvidos; um bebê em lamúrias — era um bebê, eu sentia. Segui as ondas do timbre tão delicado e cheguei a um quarto cujos enfeites transmitiam uma sensação macia. Tão logo, avistei um berço.
Meu coração era um relógio cujo tempo contado era célere; meu coração pulsava de uma alegria contida, um amor insondável, uma estranheza precisa. Olhei para o leito e lá estava ele, o bebê; envolto em lã cor de areia, lamuriando como uma pequenina preciosidade. Guiei-me a segurá-lo, era tão petiz... seus olhos se abriam com tanta dificuldade; ainda assim, ao fazê-lo, viu-me admirá-lo e sorriu, sem nenhum dentinho, sem sequer uma expressão facial realmente formada e pronta para a vida. Frágil, tão sensível. Seu choro se foi e, de súbito, ouvi passos apressados e, antes que eu pudesse entendê-los, algo abraçou minha perna esquerda. Olhei para baixo. Uma menina. Decerto deveria ter por volta de quatro anos de idade. Ela sorria. “Mamãe, ele acordou?” — indagara olhando-me nos olhos. Eu era a mamãe, aquela cujo abraço sempre seria a segurança perene; aquela cuja dedicação se estendia pela eternidade. Abaixei-me, deixando o bebê às vistas da menina que, com lentidão e apreço, acariciou-o em sua miúda fronte. O bebê sorriu outra vez.
Minhas lágrimas nasceram em meus olhos e uma dor sutil em meu peito conduziu-me ao choro mais intenso. Aquela cena era sublime... agradável. Um lar construído com amor. O meu lar. Os meus filhos. “O que foi, mamãe? Está emocionada?” — disse a doce criança. Sorri-lhe, tocando-lhe a bochecha n’um carinho verdadeiro. “Diga-me teu nome, pequena? Lembra-me, pois, esqueci-me de tudo...” — pedi, pois, sentia-me acolhida. A garotinha sorriu. “Millimor, mamãe! E esse é meu irmãozinho Ëllior. Promete não esquecer de novo, mamãe?”. Eu prometi. Abracei-a com todo o meu profundo e inalcançável amor. Senti-nos aquecer. Fechei meus olhos e aproveitei o que, talvez, jamais voltasse. Quando pude abrir fazer da visão um sentido ativo novamente, notei que alguém estava próximo, vi sapatos masculinos. Olhei para olhar em sua face, mas despertei antes que o pudesse fazer. Despertei em Somníria.
Por um tempo, fiquei inerte. Lembrando-me. Depois, demasiado abalada, chorei com pesar, soluçando de tristura e angústia entre as límpidas nuvens. Permaneci pelo que me soou ser a eternidade, sozinha entre nuvens lilás, até iniciar uma caminhada que perdurou ainda mais tempo; imersa, porém, em meus pensamentos de saudade, medo e angústia, pouco importava-me a temporalidade das coisas. Desejei habitar o sonho familiar e deixar a vida humana; indaguei de Ihvia havia escolhido isso, pois, estava li em Somníria, porventura tivera uma experiência símil a minha. Por que deduzir que o sonho é de valor inferior à realidade? E por que a realidade seria, de fato, real e não o sonho? Eram dúvidas fidedignas de um ser exausto; imerso em saudades e pavores.
Um murmúrio, todavia, quebrantou meu estado, vinha d’algures dentre aquele infinito. E, embora o local fosse esse contínuo pálido e celeste, não era plano. Assim, descobri aos poucos a origem do sussurro. “Áurea Lihran” — eu ouvia. Vinha de um mastodôntico e deslumbrante portal, constituído por diamantes negros, cingido por purpureanidas ao redor— uma flor que jamais vi pessoalmente, de pétalas n’um violeta-escuro, sépala negra, um degradê sombrio em seu interior, próximo ao óvulo; filetes espinhosos, anteras de uma penugem suave. É considerada uma espécie mágica, de raridade mística; associada à morte e ao medo, polinizada apenas por abelhas-basalto de Amorttam. No interior daquele obscuro umbral, as nuvens se dissipavam em uma escuridão perniciosa. Era... admirável e... amedrontador.
Deslumbrada, aproximei-me e ao passo que o fazia, uma vertigem me acometia e o sussurro, outrora indistinguível, agora era agourento e grave, como a voz de um demônio, como as sete vozes do abismo. Temi e, trêmula, tentei recuar, porém, a energia mórbida do portal induzia-me a seguir até o seu interior; isso me causou uma estranheza e um horror inexplicáveis. No meu coração, parecia haver um violino macabro com acordes fugazes; um violino de mil volutas, em cor de sangue; pois emergia de mim um horror que não se podia medir. No antro daquela escuridão, senti que me aguardava a morte, ou algo pior do que ela; uma morte vertida à vida, impossibilitando que o verdadeiro descansar em paz fosse possível. Era utópico defender-me daquela gravidade infernal; então sucumbi ao seu âmago, mas, não só.
Pouco antes, enquanto o sussurro vinha aos meus ouvidos, um de cada vez, soprando meu nome como uma carne dilacerada o faria se pudesse; como a terra de um cemitério de mortes hediondas, decerto diria se assim fosse capaz. Enquanto uma contagem regressiva longínqua estrangulava-me em pânico, ouvi o som de imensas asas a domar o ar e, em átimos, senti mãos viris segurarem meus braços em tentativas poderosas de impedir que o insalubre negrume engolisse meu corpo e ser. Fiz o possível para olhar para trás e reconhecer aquele que tentava me salvar; porém, fomos tragados e torturados na imensidão negra. Medo. Arrepio. Breu perpétuo e insalubre. Uma imersão em um pesadelo cruel.
Vi-me caída em um lugar hostil e sôfrego, denso e escuro; um tipo de paisagem terrífica onde urros e bramidos de terror se alastravam por todos os lados; senti uma presença tétrica, macabra e perversa próxima a mim, em alguma direção. Até que vi o Piche do Oblívio, caminhando em sua lentidão, vindo até mim, com seu cantarolar moroso e horrendo. Quis correr em uma fuga célere e dediquei-me a isto, porém, quão bárbara era a densa atmosfera, o firmamento em nuvens cinzas e eletricidade em raios, trovões, tudo carmim; fendiam os céus enquanto debaixo deles as sombras e a destruição assombravam. Eu corria... mas, devagar; era contraditório, entretanto, o esforço para o fazer mostrava-me claramente o quão lenta eu estava. E ele, o Piche, vinha atrás de mim, caminhando e, desta vez, com seus olhos vermelhos, talvez sorrisse se tivesse expressão e semblante.
Eu tive medo. Porém, quando ouvi as asas domando, novamente, o ar sufocante; olhei para cima e vi um homem em roupas negras e grandes asas de igual tom, ele descia da imensidão entre centelhas de cor escarlate e estrondos ensurdecedores; atrás de mim, frente ao demônio, ele pousou com elegância e poder; muito mais rápido do que eu, parecia imperar sobre todo o ambiente e ser capaz de agir para além do que a circunstância parecia impor. Vi com perfeição as suas asas, ainda não pude ver a sua face. O homem, portanto, ajoelhou-se no chão e proferiu o que não pude ouvir. Uma imensa marca pálida se materializou, um estigma, um enigma, um sigilo mágico; atravessando o chão de pedra fria e em seu âmago, tão somente, o Piche. O Piche ficou estático e eu senti um impacto em meu peito, como se o aprisionamento da criatura me afetasse, permitindo a minha liberdade.
Enfurecido, o Piche demoníaco do Oblívio, estendeu seu lodo asqueroso, e o envolveu em meu pescoço; seu olhar rubro indicava com evidência a sua ira. O meu anjo protetor — é o que eu poderia pensar ser naquele átimo — desembainhou uma espada negra com lume lilás reluzente, a qual parecia ser etérea, imaterial. Extirpou o lodo sem piedade; e seu urro de dor espalhou-se pelos céus, e no horizonte ecoou. Trêmula e amedrontada, eu nada fazia — era-me impossível diante tamanho terror. O lodo do Piche que envolta de meu pescoço afligia, desfez-se no mesmo instante; e antes que qualquer coisa pudesse acontecer, fui pega pelo anjo e o vento quente colidiu com minha tez lívida, e voei com ele, mesmo mortificada; e vi o Piche do Oblívio na terra fria, dentro do círculo com infindáveis símbolos que pensei nunca ser capaz de compreender.
Então atravessamos o portal e as nuvens brancas, e tons de lilás vestal, se apresentou aos meus sentidos novamente; bem como o aroma de lavanda. Fui colocada, gentilmente, em um amontoado de nuvens confortáveis. Com as mãos cujo toque ela tenro, fui acalmada. Palavras quais, desta vez, ouvi com mais compreensão, irradiou do anjo e fez com que o umbral de diamante negro desaparecesse; sucumbiu como se nunca tivessem existido. Alívio. Alívio em mim e, creio, no anjo; ele finalmente me olhou com seus olhos violeta e com uma ternura cândida que eu compreenderia, pois, no acalmar do meu coração espavorido, o semblante daquele anjo não me pareceu, em nenhuma instância, desconhecido. Levei alguns minutos, pois sentia que estava vasculhando todas as lembranças recuperadas até então; no entanto, seu falar direcionado a mim, trouxe o reconhecimento imediato.
— Tu estás bem, Áurea? — Eu ouvi. Meu coração pulou no peito, causando uma ansiedade súbita.
— Lorrt? — Era Lorrt, ou idêntico a ele? Ou muito parecido? Eu estava perplexa. Instante por instante, eu tinha certeza de que era ele; as lembranças que haviam em mim eram como um sonho vago, cujo sentido principal eu tinha total conhecimento, mas os detalhes vertiam, esvaíam; decerto por isso não notei, em primeira instância, que era Lorrt; contudo, não demorou para a certeza envolver minha alma. Ele fitava-me com um carinho infindo, inenarrável. Eu... entristeci-me, pois, eu não o amava mais como sei que o devo ter amado quando estávamos juntos, mas de tudo esqueci; como poderia revelar isso a ele? “É só um sonho” — eu pensava, tentando crer que tudo era uma criação de minha mente perturbada.
— É... agradável... revê-la... — Ele disse. Um tom manso, viril, terno; uma expressão de paixão, respeito, carinho e saudade. Eu não conseguia retribuir.
— Perdoa-me... eu... não consigo... eu perdi minhas memórias... eu não sinto mais a mesma coisa... — Expressei com uma culpa, uma angústia, sem perceber que talvez não fosse preciso dizer tudo aquilo. O semblante de Lorrt tornou-se infeliz, entretanto, era tão sutil; parecia-me que ele, com uma força profunda, mantinha, o máximo possível, suas emoções controladas. Ele se aproximou.
— Acalme-se. Respire. Não há culpa, nenhuma culpa. — Ele segurou minhas mãos, ajudou-me a me sentir melhor. — Diga-me, tu reconheces o pesadelo que chamara teu nome naquele portal? Reconheces aquela criatura?
— Eu o chamo de... o Piche do Oblívio; aparecera-me quando me doía a lembrança de minha amada mãe e minha família... eu estou amaldiçoada, Lorrt... — Lamuriei, tanto que o lacrimal emergiu com seu brilho cristalino em minhas retinas.
— Maldição? — Lorrt estava visivelmente preocupado.
— Em busca das minhas memórias, fiz um acordo com uma entidade; agora tenho um demônio ao meu lado, dentro de mim, e sinto a dor mais horrenda existente sempre que me vêm à memória novas lembranças. Esta dor materializou-se no Piche.
— Respire devagar, Áurea... Tu sabes onde estás? — Indagou, plácido e sério.
— Ihvia dissera-me que este é o reino de Somníria, e que tenho nele meus olhos abertos e, portanto, estou consciente e posso me lembrar do que acontecer aqui. Ihvia sabia que eu vinha do Castelo Drácula. Há tanto a contar... — Desabei em meu choro, agora translúcido. Lorrt tocou sutilmente meu queixo, levando-me a olhá-lo; no entanto, parecia hesitante em me tocar, assim que eu o olhei, ele se afastou.
— Permita-me ensinar-te um ritual de exorcismo; use-o para manter este demônio afastado sempre que precisar. Não posso trazer ao teu conhecimento uma magia capaz de destruir o vínculo que possuem, pois, isso não é possível em Somníria. No entanto... — Lorrt passou a movimentar as nuvens ao redor. — A quebra temporária do elo, será suficiente para te levar à busca do conhecimento que precisas para realizar o ritual completo. — Olhei, atenta, para ele. E aprendi sobre cada símbolo que ele fazia ser visto com a manipulação das nuvens; cada verbo pronunciado, também fora guardado em minha mente com bastante esforço; compreendi os passos de um ritual mágico perfeito. Lorrt ensinava com brandura e apreço; todas as minhas dúvidas eram sanadas por ele. Em evidência, sucumbira todos os seus sentimentos de modo a priorizar minha proteção, eu percebia.
— Se algo errado ocorrer, Lorrt? — Temi.
— Este não é um ritual forte o suficiente para te causar danos; erros levarão apenas ao súbito desaparecimento dos sigilos em um fogo fátuo. — Compreendi e fiquei em silêncio. Observando-o. Ele fez o mesmo comigo. Olhá-lo acalmava-me, queria amá-lo como amei. Quis abraçá-lo como, decerto, um dia abracei. Porém, de repente, um abalo e um estrondo símil ao do pesadelo, destruiu a contemplação e, também, meus pensamentos, ecoando pela paisagem alvililás.
— Está na hora de despertar, Áurea; quanto mais tu permaneces aqui, mais instável Somníria se torna. — Explicara Lorrt. Mas havia tanto para dizer e perguntar.
— Eu te verei outra vez? Há tanto que eu gostaria de falar... de compreender... — Lorrt não pôde esconder sua tristeza naquele momento, seus olhos lacrimejaram.
— Sim, se assim desejares...
— Como? — Insisti.
— Encontre-me em teus pesadelos, zelarei por eles...
— Meus pesadelos? — Mais um estrondo, seguido de um tremular amedrontador, como se uma chuva se predissesse. Olhei ao redor, assustada. Lorrt se aproximou, segurando, com sutileza, os meus braços. Tocando a ponta de seus dedos em minha fronte.
— Eu vou cuidar de ti, Áurea. — Senti uma dor, como se uma agulha perfurasse minha fronte. — Acorde! — Ouvi e vi, pela última vez, o semblante de Lorrt. E o dossel carmim ressurgiu embaçado; a visão ébria de um adormecer profundo. Toquei a seda negra. “Meu leito...” — sussurrei. Notei que anoitecia. “Eu não esqueci” — murmurei. Mantive-me deitada, apenas relembrando. Somente relembrando. Nada mais.
Minha consciência era vívida e sólida. Todo o mobiliário ao redor era pálido e tal cor evidenciava, em maior perfeição, a riqueza dos detalhes…