Sonial
Sinto os olhos correrem em desespero por debaixo das pálpebras. Vagas lembranças dos fatos ocorridos na estufa atingiam meu corpo, que tremia, desperto com o insistente menear.
De olhos abertos, permaneço deitada sob um infindável jardim de lavandas. Seu aroma adocicado e suave me abraça. Os galhos eram altos o suficiente para envolver meu corpo. Seu leve toque em meu rosto extraiu de mim cócegas e uma lembrança.
Vejo-me deitada preguiçosamente em suas pernas, no nosso sofá da sala. Estamos assistindo a um dos seus filmes preferidos, “Um Corpo que Cai”. Eu amava os filmes do Hitchcock. Minha mãe acabara de passar creme para as mãos. Enquanto meus olhos estavam na televisão, sinto seus dedos macios e cheirosos sobre meu rosto, deixando o aroma marcante de lavanda.
Mas antes que eu me torne melancólica, devolvo-a, o quanto antes, ao cemitério abandonado de memórias. É melhor assim, digo para mim mesma: “Esqueça isto!”. Em seguida, viro a cabeça para a esquerda, e meus olhos se perdem perante os galhos.
A grandiosidade daquele lugar é, sem dúvidas, arrebatadora. Existe uma aura quase celestial. O silêncio sagrado me causa arrepios. Acima de mim, contemplo algo magnífico: trajando um manto alvo está o firmamento e sua imensidão. Um temor se apoderou de mim. Adoto a posição fetal, como forma de me proteger, pois um mísero raio de sol poderia me exterminar. Mas, de alguma forma, nada aconteceu. Apesar de toda vastidão nívea, a luz parecia inofensiva. Não havia nuvens, nem sol nem lua, apenas o vazio opressor.
Decidi me levantar. Limpei as folhas presentes em minhas roupas. Em pé, pude ter a verdadeira dimensão daquele lugar. Caminho, e as lavandas se destacam. Seu balançar é hipnotizante. Será que estou fora do Castelo? Será o fim da minha mísera existência? Será algum efeito alucinógeno daquele preparo feito por Ameritt? O repugnante gosto ainda faz morada em minha boca.
Cuidadosa, caminho enquanto dúvidas pairam sobre minha mente. Olhar em volta e ver apenas o vazio abissal é angustiante. Será que irei parar na vila de Séttimor? Agora, a menção de Ameritt me causa tremor, porém continuo.
Após muito andar, noto algo perturbador. Um horror indescritível dominava meus ossos e entranhas. Meus membros tornaram-se rígidos, como se alguma força de proporções inimagináveis agisse sobre mim.
Elevo meus olhos, e não posso acreditar. Em meio àquela intensa nívea, um colossal e belíssimo umbral, mais escuro que a própria noite, erguia-se no vazio níveo. Trazia adornos vitorianos esculpidos pelos deuses de outra era. Assemelhava-se a um portal. Ao seu lado, havia também uma criatura tão misteriosa quanto aquele lugar. Sua aparência angelical me deixava confortável. Obedeci à sua reverência e, cautelosa, fui ao seu encontro. Estou a dois passos. Sem dúvidas, estava diante de algo grandioso.
— Bem-vinda à Somníria, Rose. Permita que eu me apresente. Meu nome é Lieran, sou o guardião Arquelua do primeiro umbral. Foi-me ordenado guiar-te pelo sonho daquele que teu coração mais anseia.
Sua voz era como um imponente e doce quarteto de vozes cantando em uníssono, algum canto gregoriano secreto que fora esquecido pelo impiedoso tempo. Seu semblante quase angelical me acalmava. Ele tinha cabelos alvos como a neve, e, mesmo com os olhos fechados, parecia saber exatamente quem eu era. Posteriormente, ele me explicou que Somníria é um reino extrafísico que está além da compreensão. Este lugar cuida do plano onírico daqueles que ainda estão vivos, assim como dos que já desencarnaram.
Lieran contou que, em Somníria, tanto os umbrais quanto os guardiões são infindos. Explicou que existem diferentes espécies de guardiões: alguns cuidam dos sonhos, sendo chamados de Arquelua, enquanto outros se dedicam a vigiar pesadelos — os Nocturnos. Disse ainda que há tipos de Nocturnos especializados em pesadelos densos, enquanto outros vagam por pesadelos fúnebres.
Amortecida pelo que acabara de ouvir, observei mais uma vez aquela criatura. Ele se assemelhava a uma escultura de um deus grego esculpido em mármore. Seus traços delicados e marcantes me prendiam, e a possibilidade de entrar em um sonho era intrigante e muito me interessava.
Antes que eu dissesse qualquer palavra, ele fez um gesto para que eu atravessasse o umbral e disse:
— Por favor, tenha cuidado. Visitar sonhos pode ser mortal. Vi que tens alguém em mente. Concentre-se e atravesse. Lembre-se: para retornar, basta dizer meu nome.
Agradeci, respirei fundo e, assim que atravessei, senti uma forte vertigem, como se caísse em queda livre no vazio. Ainda enjoada, abri os olhos e não pude acreditar que funcionara.
Acordei em meu quarto de infância. Tudo estava intacto: os pôsteres de filmes de horror, como Psicose, Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai, O Exorcista, O Iluminado, entre outros. Minha estante preta decorada com livros, incluindo romances como Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito, O Morro dos Ventos Uivantes — em vida, eu acreditava no amor. Minha escrivaninha estava cheia de cadernos e canetas espalhados. Ao folhear um deles, deparei-me com anotações sobre magia e ocultismo.
Ao vê-las, lembrei-me de um certo livro que está no Castelo. Ele ainda me causa fascínio e repulsa. Recordei sua capa feita de pele, num tom viscoso de carmim quase vivo, suas páginas puídas e o cheiro pútrido que senti ao abri-lo, bem como o toque repulsivo.
Lembro que o livro estava no final da biblioteca, sobre uma mesa redonda vitoriana, coberto por um manto negro. Ele não saiu da minha cabeça: sua natureza desconhecida e o modo como foi confeccionado me intrigavam. Que segredos infindáveis aquelas páginas escondiam? Recordo vagamente ter visto o desenho de um ramalhete naquela terrível noite de nevoeiro.
O Castelo tem me proporcionado experiências inexplicáveis. Aquele baile aterrorizante foi muito marcante. Preciso continuar. Olhei para a direita: algumas roupas estavam empilhadas sobre uma cadeira. É verdade que prometi enterrar estas lembranças, mas decidi fazer este último passeio e despedir-me para sempre.
Tristezas e sorrisos me acompanham. Encosto na maçaneta e sinto um tremor. Ao abrir uma fresta da porta, vejo minha mãe deitada no sofá da sala, como costumava ficar. Mas havia algo perturbador em seu semblante. Seus olhos inertes assistiam à televisão, e o cansaço era visível em suas pálpebras. Seus braços estavam imóveis, e, na palma da mão direita, notei uma marca que parecia um pequeno terço. Deduzi que, em algum momento, ela o segurara com tanto fervor que provocara um ferimento. Após um tempo, uma lágrima caiu de seu rosto, e um sussurro ecoou pela casa:
— Ainda tenho esperanças de que minha filha voltará um dia.
Isso quase arrancou um grito de mim, mas silenciei com as mãos. Não posso mais ficar aqui. A culpa parecia deliciar-se com meu sofrimento. Na cozinha, meu pai preparava o almoço. O cheiro de bife com cebolas fritas me causou enjoo.
Tomada por uma profunda tristeza, murmurei:
— Se não tivesse aceitado aquele convite, talvez estivesse em seu colo, mãe. Eu sinto muito pelas minhas escolhas.
As inevitáveis lágrimas escorreram. Fechei a porta e sussurrei:
— Lieran.
Após isso, senti uma forte sensação de sono até que, finalmente, meu corpo encontrou o solo.
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…