Sepulte-me, Ana
Prometeram,
Prometeram-me que não haveria enredo depois do fim! Quem eles pensam que são?... Como ousam mentir?!
Não há morte, não há honra, não há sono...
Continuidade, Ana! A horrenda continuidade que me assola. Sopro as velas e corro da memória daquela lareira, onde aquecíamos a ponta dos pés, entornando canecas fumegantes de chocolate, lendo a tudo que não se pode ler numa idade como tal. O tempo passou... E malditos sejam eles, com seus terços e cânticos de funeral. Choram bem menos que o morto, quando acorda – brusco, desarmado – n’outro corpo e n’outro lugar.
Bate o peito, Ana...
Há tanto não devia bater! Há tanto ouviste parar... Se ao menos me dissessem porquê! Se ao menos me contassem quem sou...
Onde anda minha alma? Ora, eles cantam. Jane Doe, Jane Doe! O turvo vale roubou meu nome, e nem mesmo o posso praguejar sem que me pragueje de volta.
É o inferno, Ana, é o inferno e o céu, disputando lugar. É a brisa que incendeia os bares mundo adentro, e, ainda assim, não cessam os bêbados de pedirem conhaque. Furioso é o vento... nunca tivera piedade de mim. Vento feiticeiro que me traz o perfume d’outrora. Dos invernos em despercebida completude... Da vida que ascendia horripilantemente, tão bela. Dos pinheiros em oração e das infindáveis conversas sobre o mar.
A vela que aqui queima existe pelo mesmo princípio que ali acendíamos a lamparina. – Nasce do mesmo fogo que assava os leitões. – A chama imparável que reina, grandiosa, sobre o tempo e sobre os homens.
Prometeram-me um fim, e agora o reclamo. E não somente a ele, mas à vida, em impaciente e revoltosa espera. Que me tragam a primavera que não vi! Que tragam aquele amor, sepultado com mácula, roubado com tanta desonra. Clamo por encontrar a água viva na próxima parada.
Quanto me resta até que, ao fechar os olhos, não venham mais as cores de um outro campo? Quantas estações até que se faça o digno e ansiado Ponto final? Não remende o vestido, doce Ana... sempre serei a menina molambenta que apreciavam escarnar. Flores bastam. Sempre hão de bastar.
Diga que vivi com a injúria e a raiva de Artemisia. Que praguejei contra as abelhas e contra a rainha, encontrando a graça no outono e zombando de minha própria estupidez. Que vivi para morrer, e, ainda assim, não encontrei morte alguma para descansar.
Somos ametista bruta emergindo do solo, amiga minha. Um pedregulho no sapato de todo falso pregador. Somos nós a dúvida e a insanidade. Companheiras deste (e)terno velejar.
Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. → Ler edição completa
Vivendo por entre bibliotecas e saraus, desde o início de sua juventude a autora Lídia Machado vem tecendo íntima conexão com a poesia e com a escrita. Primariamente, cronista e fabuladora nas aulas de redação. Depois, aos quinze, jornalista estagiária as quais saía…
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