O Céu das Alfazemas
Efervesce a penúltima instância dessa madrugada que precede a miséria. A cova estreita, madeira de bétula, os vermes e comichões... É o meu dia que chega! E felicito-me por recebê-lo assim, com uma despreocupação tão geniosa e sagaz. Que tenho a perder agora, homem? Diga!... nem mesmo o inferno tem algo para mim. Nada mais temo ou anseio. Mas a recusa, sim! A recusa me servirá como redenção. Vou-me ao pé dos quadros de Diana, nunca na cela fria deles.
Por que nos fizeram tão frágeis, minha amada criatura?... Onde puseram as lamparinas que conosco deviam seguir, impregnando de luminosa bondade esses campos fadados à escuridão? Podes ouvir quando sopro, nas pedras, teu nome?
Ao pecado do amor – demasiado, maldito e incorrigível–, a sentença: nunca mais amar, nunca mais o cheiro dos campos e a vida das montanhas, nunca mais... A morte! A morte aos que cometem heresia. Eu e tu, no breu prateado dessa infinidade. Eternos, como é eterna a dor e a tragédia nessa terra de gente vil. Escute!...Um coral de passarinhos sobrevoa! Zombam dessa bruxa velha, que há de morrer sem aprender a voar. Cai dum vasilhame ambarado o primeiro sinal dos olhos do sol. Pairam estrelas nesse horrendo céu de alfazemas, guerreando por espaço com a turvidão das nuvens, carregadas de toda, toda, toda a tristeza da vida.
Perseguida pela praga daquele dezembro, revejo-te incansavelmente, a cada hora, indo de encontro ao chão. Por três segundos olhou-me, por três segundos aspirou um sorriso, por três segundos amou-me com a feição... era a vida deixando a ti, como a alma de uma festa, abandonando a todos os convidados – famintos, mortos de sede–...
Por que, meu bem, por que tivera de condenar a mim e a ti? Ouso dizer que convenceria a Morte. Se ao menos houvesse tentado... Agora vou eu, fadada a seguir-te submundo adentro. Como poderia não ir? Acorrentaram-me em teu punho, e eu mesma vivo a lustrar as correntes.
Como cheiram os jasmins... quão intoxicante é a vida aqui, crisálida e perto do fim. E na moldura de carvalho que me permite observar a vida lá fora, ainda repousa a lua, lançando-me um fraco sorriso. Como se até mesmo ela sentisse alguma piedade de mim. Bela é a porcelana que carrega a camélia, adoçada em leite e gotejada por alma de beladona. Colhidas do abandonado jardim de um enforcado. É o fim, meu bem... é o fim! É o fim da desonestidade, e se pretendem nos prender, que encontrem corpos. Corpos a enterrar.
E não diga, nunca – e em parte alguma desse vale – que és um homem só. És metade formosa e sempre bem acompanhada. Lembra-te do pacto de perseguir, juntos, a chama da vida, e rasteje impiedosamente. Não pare, nem por um segundo. Não pare até me encontrar.
O vento sussurra promessas de primavera, com perfume de orvalho do passado. O céu de alfazema reina, onipotente contra a falta de sangue e coração daquele povo, tão firmado na descomunhão com tudo que é de visceral e estranha natureza. Em marcha lenta, cruzarei a ponte dos mundos, conformada de que nunca havia de entregar-me ao julgamento daqueles que se opõem ao fluxo que tem o corpo e o pensamento. Aos que andam assassinando as bruxas e poetas, julgando com fogo a cada delito, o mais sincero escárnio. Já é hora de partir, deixando para trás a indecência da repressão, indo à vida que emerge da morte, para nunca mais sofrer. Para nunca mais voltar.
Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. → Ler edição completa
Vivendo por entre bibliotecas e saraus, desde o início de sua juventude a autora Lídia Machado vem tecendo íntima conexão com a poesia e com a escrita. Primariamente, cronista e fabuladora nas aulas de redação. Depois, aos quinze, jornalista estagiária as quais saía…
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