Capítulo 6: Engrenagens do destino

Imagem criada e editada por Sahra Melihssa, para o Castelo Drácula
Estou diferente. Não sei dizer exatamente o que, mas estou. As interações com o ambiente parecem ter adquirido novas roupagens — “‘roupagens’, de onde tirei essa expressão?!”. — Como vês, o meu linguajar foi uma das mudanças, não me lembro nem de pensar... Agora falo.
Tenho lembranças envoltas em uma névoa penumbral, como se as memórias não me pertencessem e eu as tivesse tomado de seres cósmicos. Meu contato com todos à minha volta ficou intenso e sinto apetites insaciáveis, mas ao menos ela está mais feliz do que nunca.
Assim que proferi a primeira palavra causei um espanto imenso, principalmente nela, mas aos poucos foi se acostumando com as minhas novas habilidades.
Dizem que somos sarcásticos, egoístas e que não zelamos por nossos pais humanos ou que não gostamos de suas companhias, mas isso é mentira. Eu daria a minha vida por ela novamente, ela é o ser que ilumina meus caminhos, todos dias e noites. Ela também está diferente, menos ferida e preocupada e isso me deixa muito feliz.
***
Ela dormia. Eu ouvia barulhos irreconhecíveis, imaginava ser efeitos colaterais da viagem que percorri por instinto de volta à vida. “Será que tenho alma?”. Os barulhos me irritaram tanto que tive que ir procurar o que diabos causava aquilo. Neste ponto, estão certos sobre nós: gostamos de sossego e ambientes aconchegantes.
Não me lembro qual caminho segui, mas cheguei ao lugar que havia selado — ao menos temporariamente — meu destino. Engraçado a forma alucinada com que desenvolvo minha habilidade de comunicação, deve ser influência de todas as lorotas que ouvi durante minha vida. “Será que agora sou imortal?”. Não sei se quero descobrir, talvez eu tenha de fato sete vidas e já gastei uma... Mas não pretendo decifrar tais segredos tão cedo.
O barulho aumentou. Um som de ferragens, acompanhado de uma claridade anormal para o período noturno. Quando olhei para o alto fitei duas bolas de fogo e, de alguma forma, já naquele momento tive a certeza de que me olhavam de volta... Ouvi sussurros lamuriosos, ou assim eu pensei. Essa parte ainda é turva para mim.
Descobri que tenho conexão com seres de outras dimensões. Conheci meu antepassado. Ele é o passado, o presente, o futuro e tudo o que há entre eles. Seu corpo colossal é um monumento de eras fundidas: engrenagens ancestrais e circuitos modernos pulsando em um coração preenchido do éter puro.
Seus olhos — ou o que se pode chamar de olhos — são como dois sóis ardentes, esferas de plasma incandescente, irradiando calor e segredos que poderiam queimar a própria realidade. Fulguram como brasas eternas, com filamentos de fogo líquido que giram como tempestades solares.
A armadura que cobre seu corpo é um mosaico de eras e estilos: peças de ferro entrelaçadas com filetes de ouro, que brilham como astros em um céu simétrico, mecânico. Tubos de vidro transpassam seus membros, conduzindo um éter luminescente que serpenteia como relâmpagos aprisionados. Do interior de suas articulações saem estalos de vapor e silvos de válvulas, como se o próprio tempo fosse seu combustível. Os barulhos que eu ouvi provinham dessas válvulas e das enormes engrenagens que simulavam uma rótula de joelhos humanos.
Das costas de Listheron — Sim, este é seu nome —, também saem engrenagens, como asas mecânicas que giram lentamente, produzindo um som profundo, semelhante ao eco de um relógio marcando o fim e o recomeço de todas as coisas.
Em sua presença, o espaço vibrava e o ar se preenchia com o aroma metálico do ferro queimado e da eletricidade que percorria seus dutos-veias.
Sua voz é tal qual um trovão filtrado por alto-falantes, misturando chiados, estalos e profecias. Suas palavras são códigos, fórmulas e segredos do universo, compreendidas apenas pelos que atravessam as brumas entre ciência e magia.
Listheron é o guardião dos ciclos cósmicos — o eterno tic-tac entre criação e colapso. Buscá-lo é arriscar-se a ser desintegrado por seus sóis flamejantes... ou ser reconstruído, peça por peça, com engrenagens feitas de estrelas e alma.
É... parece que as minhas habilidades estão evoluindo, não imaginava ser capaz de descrever a beleza daquele ser ancestral.
Ainda não sei se tenho alma, mas Listheron me disse que isso era irrelevante e que eu poderia experimentar coisas inimagináveis se eu aceitasse a minha forma verdadeira, assim como ele o fez. O tempo atual seria dobrado como um lençol recém passado e todos iriam sumir feito poeira da estrada.
O convite era tentador, mas eu tinha alguém para proteger... Não podia fazer isso com ela, que deu seu sangue por mim... Sei que ela não sobreviveria com essa perda.
No instante em que recusei, meu ancestral se dissolveu no ar, tão enigmático quanto havia surgido. Mas não houve hesitação em meu coração — eu sabia que minha escolha era a correta.
Então, ouvi uma voz trêmula, desesperada, rasgando o silêncio:
“Lisa! Lisa!”
Sem pensar, sem olhar para trás, corri. Corri para os braços da Alana, para o lar que escolhi.
PS: Imagino que estejam curiosos sobre quem escreveu esse relato. Se eu aprendi a falar, por que não poderia datilografar? Ah, ainda ouço o chamado, mas ainda não é o momento de partir...
Texto publicado na Edição 14 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa
Michelle Santos Nascimento é paulistana, mãe, esposa e amante das artes, em todas as suas formas de expressão, desde que aprendeu que há todo um universo fora dela. Ama as ciências humanas, mas também tem predileção pelas exatas…
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