Diário de Sibila von Liechtenstein
Hoje, mais uma vez, acordei como sempre. Os olhos pesados, a mente turva, mas com uma sensação de alívio que não sentia há muito tempo. Por fim, minha mente poderá descansar. Se eu não estivesse desperta — ou ao menos acho que estou — diria que esse descanso é o que a morte traz.
Há alguns dias, fiz o que fiz com ele. Não sei como atravessei o limbo que permeia os sonhos, mas o fato é que agora habito estas misteriosas paredes. Quando despertei naquele dia estranho, o momento em que fui trazida para cá, não pude perceber logo. Habitar o interior deste castelo, onde me encontro, parece ser a extensão de um sonho, tornando-o perpétuo.
Lembro-me de quando abri os olhos e, com um movimento leve, dirigi-os para a deslumbrante paisagem que se descortinava através da janela. Campos infindáveis de lavandas encantadoras se estendiam diante de mim. Não consegui discernir onde começavam e onde terminavam. O odor, de início suave e agradável, logo se tornou acachapante, quase impossível de suportar.
Ao observar aquele campo florido e o céu em tons de lilás, uma sensação de dissonância me tomou. A palidez violácea dos céus se confundia com os tons púrpura das flores, criando uma sensação de confusão entre o céu e a terra. O jardim ao redor do castelo, naquele dia ousei explorá-lo: você o adentra e se perde, envolto em um absurdo encanto. As lavandas, movidas suavemente pelo vento, traziam uma sutileza apaziguante, como se a natureza estivesse em um estado de constante calma.
Mas então, como um vislumbre da verdade, o que parecia ser serenidade se revelou efêmero. Em meio à quietude daquele cenário, uma sensação sutil, porém palpável, de inquietação começou a se espalhar. As lavandas não eram apenas flores; elas sussurravam. Sussurros terríveis que, embora suaves, me alcançaram com um peso insuportável, obstruindo minha garganta e distorcendo meu olhar. Era como se algo maligno se escondesse entre aquelas pétalas, esperando para revelar seu horror. Parecia que ao olhar com atenção para as flores eu conseguia avistar os rostos delas, as vítimas que eu ajudei a matar.
E eu, que me permiti mergulhar nesse jardim de aparente paz, fui levada aos confins da loucura. O que as lavandas estavam sussurrando? Eram os meus segredos hediondos, ou era apenas minha mente, que já se despedaçava pela culpa e pelo medo, criando esses horrores? Eu não sabia mais se estava sonhando ou se a realidade que agora habitava era mais insana do que qualquer pesadelo. Ainda sim, eu duvido que possa ser pior do que o pesadelo que vivi ao lado dele.
Não posso esquecer como tudo começou. Viktor Frankenstein... Ah, Viktor. Conheci-o na faculdade, com seu brilho nos olhos, sempre tão envolvido em suas pesquisas. Eu era apenas uma jovem ambiciosa, desesperada para continuar meus estudos após a morte de meu pai, um simples trabalhador do campo na Prússia. A morte dele, no inverno rigoroso daquele ano, deixou um vazio imenso, e me vi diante de uma cruel realidade: minha educação, minha ascensão social, tudo estava em risco. Quando Viktor me ofereceu um caminho para garantir minha continuidade acadêmica, aceitei. Não sabia o que me aguardava.
Ao me mudar para sua casa, situada na periferia de uma cidade que ainda carregava as cicatrizes das Guerras Napoleônicas, tão diferente das paredes desse castelo que atualmente habito, tudo parecia promissor, pelo menos no início. As ruas cobertas de neve e o vento gélido da Prússia pareciam distantes da casa de Viktor, mas logo descobri o que ele realmente fazia em seu laboratório. Nunca vou me perdoar pela morte de minha amiga Eleanor, a quem contratei para limpar a casa. Ele a matou. Sim, caro diário que acolhe minhas mórbidas palavras. Ele matava mulheres, inocentes, para seus experimentos. E eu... eu fui forçada a ajudá-lo a esconder os corpos. Eu não tinha escolha, não naquele momento. Era o preço que eu pagava para garantir minha educação, meu futuro.
Cada vez que olhava para ele, um homem brilhante, mas obcecado por sua própria criação, eu me sentia mais suja. Minha consciência se corroía. Ele me forçava a ser cúmplice de algo que sabia ser monstruoso. E assim, as semanas se passaram. Eu o ajudava a enterrar seus pecados, mas a cada corpo, a cada erro, a culpa aumentava. Até que, finalmente, decidi: ele precisava morrer. Eu não poderia mais permitir que suas mãos, imundas de sangue, continuassem a destruir vidas. Depois de Eleanor, uma morte que não o ajudei a planejar, ele me pediu que providenciasse mais vítimas, caso contrário eu seria a próxima e ele providenciaria outra assistente. Com a crescente expansão das indústrias, e sem uma profissão definida, eu me vi sem alternativas. Ou era a minha vida, ou a delas.
Foi numa manhã fria e silenciosa, em uma Prússia já tão marcada pelo avanço industrial e os ecos do passado sangrento, que tomei minha decisão. Acordei, vesti o sobretudo, calcei as botas de abatedouro e fui até o laboratório. Dessa vez, não era para mais uma de suas vítimas. Não, eu faria o que deveria ser feito. Eu o matei. E ao fazer isso, pela primeira vez, consegui dormir sem ter pesadelo algum, após o ato.
Era como se, ao tomar sua vida, eu tivesse me libertado. Quando finalmente adormeci, pensei que talvez fosse o fim de tudo. Mas ao fechar os olhos, um sonho estranho me envolveu. Fui transportada para um lugar sombrio, este castelo, onde agora me encontro. Na ocasião, um homem de semblante imponente me observava das sombras. Eu não sabia como, mas sentia que meu destino agora estava entrelaçado com o dele...
Texto publicado na Edição 11 - Somníria, do Castelo Drácula. Datado de dezembro de 2024. → Ler edição completa
Aryane Braun é curitibana por nascimento, amor e dor. Formou-se em Letras pela UFPR e possui duas graduações na área da educação. Atualmente, trabalha em uma biblioteca de um colégio público em Curitiba e adora o que faz, pois ama o ambiente que os locais de ensino proporcionam. Afinal, que lugar melhor para trabalhar do que uma biblioteca para alguém que sempre gostou de literatura, antes mesmo de compreender o que ela representa em seu intelecto?…
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