Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Após sua primeira visita ao Castelo Drácula, Velian, um vampiro há muito acostumado com as sombras e as verdades escondidas da humanidade, encontrou-se em Fortaleza, no calor abrasador do nordeste brasileiro. A cidade lhe parecia irônica: seus habitantes pulsavam com uma vitalidade quase insultuosa, como se a própria existência fosse uma celebração ininterrupta. Mas Velian, sarcástico e introspectivo, via naquela energia um desgaste constante, como se todos ao seu redor consumissem suas próprias almas sem perceber. 

Ele vagara pelos ambientes underground da cidade, observando os humanos em suas ilusórias liberdades noturnas, buscando esquecer sua própria natureza em prazeres fugazes. A superfície de Fortaleza o distraiu por um tempo, mas em cada olhar ou gesto de despreocupação ele percebia um teatro de máscaras. Por mais que se esforçassem, aquelas pessoas, em suas próprias misérias e êxtases, pareciam tão aprisionadas quanto ele. Ao retornar, sua mente ainda ocupada por aquelas imagens, Velian deitou-se em seu caixão luxuoso, cravejado com detalhes prateados, e, finalmente, entregou-se ao repouso. 

Enquanto seus pensamentos desvaneciam, Velian foi atraído por uma névoa densa e misteriosa que o levou de volta ao Castelo Drácula, ou assim ele pensou. Porém, este não era o castelo de pedra e penumbra que visitara anteriormente; era um lugar entre dimensões, onde o concreto dissolvia-se no efêmero. Ele flutuava em Somníria, uma extensão onírica do Castelo Drácula, e ali, o mundo parecia existir entre o real e o irreal, como se cada fragmento do ambiente fosse uma pintura inacabada, uma sombra do que poderia ser. Havia ali uma estranha familiaridade; um eco do castelo, mas em tons mais suaves e etéreos, como se Somníria fosse apenas uma das tantas faces ocultas do Castelo Drácula, uma dimensão onde realidades coexistiam de forma tênue. 

Foi ali que ele encontrou Nívian. A figura exalava uma presença distinta, uma autoridade calma e distante. Suas palavras eram medidas, mas carregadas de uma sabedoria inabalável. Seu rosto, belo e firme, contrastava com uma seriedade quase trágica. 

— Sou Nívian, Arqelua em Somníria — disse ela com uma voz doce, mas imersa em um toque de austeridade. — Isso significa… entre outras verdades… que jamais me desvencilharei do mundo dos sonhos. 

 

Velian a observou com interesse, um sorriso cético e irônico se formando em seu rosto: 

— E o que isso significa para alguém como eu? Estaria preso também a este… reino, como você? — Ele fez uma pausa, gesticulando com a graça de um predador calculista. — Um castelo dentro de outro castelo, dimensões sobrepostas… isso tudo parece a piada final para um ser como eu, que já viu a profundidade e a vaidade das máscaras humanas. 

Nívian sorriu de leve, seus olhos refletindo um misto de entendimento e desafio. 

— Talvez você esteja preso a muito mais do que imagina, Velian. Aqui, em Somníria, os conceitos rígidos que o mundo desperto exige se dissipam. A realidade e o sonho coexistem sem fronteiras. E, diferente de nós, os humanos, ao menos em seus sonhos, podem vivenciar uma liberdade que a vigília nunca lhes permite. 

Ele riu, uma risada leve e amarga. 

— Então, você sugere que até mesmo nós vampiros, que devoramos os mortais e ultrapassamos suas limitações, ainda assim estamos acorrentados a seus conceitos? Diga-me, Nívian, onde fica a nossa liberdade, então? Se até neste castelo que nos promete abismos e mistérios, ainda estamos sujeitos aos mesmos… parâmetros humanos? 

— Nos sonhos, e apenas neles, reside a verdadeira liberdade — respondeu Nívian. — Quando sonham, os mortais podem transcender suas próprias barreiras, as limitações impostas por sociedades e seus julgamentos. Podem ser qualquer coisa que desejam, mesmo que na vigília essas mesmas vontades precisem ser enterradas em segredo. 

Velian considerou as palavras, sentindo-se vagamente atingido por elas. Ele, um ser que se orgulhava de sua liberdade, de escapar das leis e costumes humanos, percebia-se agora confrontado. A liberdade que ele pensava possuir era, talvez, apenas mais uma forma de prisão. 

— Então você afirma que o que vivenciamos agora é tão real quanto a própria vigília? E que este mundo onírico, tal como o que deixamos ao adormecer, é só mais uma camada? — Ele fez a pergunta como um desafio, mas havia nela uma admissão relutante. 

Nívian respondeu, seu olhar assumindo uma intensidade que Velian não esperava. 

— A realidade é como as camadas de um sonho, Velian. E os sonhos são reflexos da nossa verdade mais íntima, daquilo que o mundo desperto reprime. Nas vigílias, homens e mulheres reprimem seus desejos, se aprisionam em normas, se anulam em papéis. Você, mesmo entre nós, ainda carrega máscaras, acredita no seu próprio personagem… mas aqui, nos sonhos, o que somos é puro e destituído dessas molduras. 

O vampiro sentiu um arrepio ao perceber a profundidade daquilo que Nívian lhe mostrava. Ali, no etéreo, ele se sentia menos restrito, menos… coagido a um papel. Ele reconhecia em si algo que sempre temera reconhecer plenamente: uma fluidez que jamais admitira aos outros nem a si mesmo. 

— Então, diz-me, Nívian — disse ele, os olhos brilhando com um misto de sarcasmo e genuíno interesse —, o que se é, afinal? Um monstro? Um ser humano? Ou nada? Essas camadas, esses papéis… têm algum sentido real? Ou são apenas ecos de uma sociedade que insiste em moldar todos, até mesmo os monstros, ao seu jeito? 

Ela observou Velian por um longo momento, como se medisse sua resposta. 

— Somos aquilo que nos permitimos ser, Velian. Mas o mundo desperto aprisiona, nos obriga a seguir as regras de uma humanidade que insiste em formatar e restringir. A fluidez da identidade, tão natural aqui, é temida na vigília. E essa fluidez, mesmo para você, não deve ser algo a esconder. Você é, afinal, tanto o que os outros esperam quanto o que você ainda não ousou reconhecer. 

Ele soltou um riso seco, mas algo em seu olhar havia mudado, uma sombra de compreensão em meio à sua usual descrença. Como um vampiro, já possuía uma vida fora das normas, um ser que deveria transitar entre o mundano e o imortal sem limitações. Contudo, ali em Somníria, entendia que ainda estava preso a noções que jamais haviam sido completamente dele. 

— E onde tudo isso termina, então? Em mais sonhos e em mais realidades sobrepostas, até que tudo o que sou se torne apenas… vazio? 

Nívian balançou a cabeça, seus olhos refletindo uma sabedoria que o deixava inquieto. 

— Termina onde você se permite que termine. Talvez no entendimento de que a realidade é uma ilusão; talvez na aceitação de que tanto o sonho quanto a vigília são partes do todo. Um ciclo constante entre o que você é e o que poderia ser. 

Velian se sentiu como se houvesse tocado a superfície de algo vasto e incompreensível. Quando percebeu, Somníria já começava a se dissolver ao seu redor. Despertou com a última visão de Nívian em sua mente, seu rosto austero e a voz firme dizendo: "Você tem a eternidade, Velian. Use-a para ser livre." 

Ao abrir os olhos, de volta ao mundo desperto, ele ponderou sobre tudo aquilo. A fluidez da identidade, a liberdade que sempre julgara ter. Talvez a própria existência fosse uma camada indefinida, onde os sonhos e a vigília se entrelaçavam. Sentiu um desejo repentino de caminhar pela Fortaleza de seu tempo, observar os humanos e refletir sobre o que realmente significava ser livre. A noite o aguardava, e o Castelo Drácula, ele sabia, o chamaria de volta. 

Mas, por ora, Velian desejava apenas misturar-se entre aqueles que, com toda a sua humanidade, ainda tinham tanto a lhe ensinar. 

Texto publicado na Edição 11 - Somníria, do Castelo Drácula. Datado de dezembro de 2024. → Ler edição completa

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