Da selva de pedra e espectros do passado

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

4º relato 

“Nascida na selva de pedra, 
poluição e concreto, vis companhias, 
na prisão onde a alma se quebra, 
vivo e morro em rígidas galerias.” 

Tinha o costume de escrever essas palavras em alguma superfície e, provavelmente, as eternizei na parede do banheiro daquele Pub que já mencionei, o local que era a extensão do que eu sentia, vivia. Era uma criatura da cidade, nasci em meio à cacofonia de ruas lotadas de pessoas que se embarravam, e não se conheciam. Era mais uma na multidão, minhas questões só importavam para mim. Grandes poetas exaltavam a natureza, por suas belezas e capacidade de recomeçar, respeitando os ciclos e estações — em contraste com a nossa existência caótica e perturbada. Não ouso dizer que eles não tiveram suas dificuldades, mas para mim é extremamente difícil falar sobre essas belezas e sobre os sentimentos bonitinhos. Eu somente salvo a mim quando mergulho nas águas turvas e inóspitas das palavras brutas e sentimentos controversos. 

A atmosfera lúgubre do Castelo aflora esses sentimentos, mas não estou infeliz. Sinto-me cada vez mais impulsionada a criar. As palavras escorrem das minhas mãos e encontram abrigo no papel límpido, agora desvirtuado pela tinta magenta ou negra. Na tela, fenômenos semelhantes ocorrem, e as pinceladas dançam na superfície como se fossemos a completude um do outro. 

Após horas de criações, muitas das quais foram descartadas, pois estou cada vez mais exigente — o tempo me é amigo, e eu posso me dar ao luxo de recriar sem me preocupar com prazos ou com pagamentos batendo à porta. 

*** 

Não sei precisar se estava acordada ou dormindo, mas sentia-me num estado de semiconsciência, como se houvesse ingerido alguma substância alucinógena (O que será que Ameritt colocou naquele chá que trouxera para mim?), mas percebi estar a contemplar a minha última obra: era o infinito, o fundo negro com degradê de tons diferentes do negro mais brilhante que já pude ver em uma tinta. As estrelas brilhavam, causando impressão de estarem se mexendo e pulsando no ritmo das batidas do meu coração. As luzes-estrelas se aproximavam e cresciam de tamanho, estavam em velocidades distintas, cada uma seguindo o ritmo autoimposto. 

Não conseguia parar de fitar aqueles belos pontos brancos brilhantes. Minha visão não ficou totalmente enuviada, mas ao passar os olhos por cada uma delas sentia um leve desconforto, semelhante ao que se sente em uma montanha russa: um incômodo que você não recusa, pois diverte, e aceita todas as vezes que lhe oferecem. 

Fiquei naquela posição por um tempo que não soube determinar. As luzes perfuraram o limiar infinito-tela e romperam a barreira da realidade: as luzes projetaram-se para fora, como hologramas e tornaram-se espectros das pessoas do meu passado, justamente aquelas que não queria encontrar novamente. Gritei. Virei-me para sair do quarto, não podia permanecer naquele local com aqueles execráveis. 

— Siga-me — disse Meia-noite. 

— Você novamente... então estou sonhando? 

— Vamos! 

Eu o acompanhei, não me importava para onde ele iria me levar dessa vez, mas qualquer lugar seria menos aterrorizante do que permanecer ali, com eles. 

Corríamos por caminhos e corredores, novamente, nunca percorridos anteriormente por mim. Os corredores eram iluminados por luzes violetas, cujo reflexos nas paredes pareciam recriar seres etéreos, ora divinos, ora fantasmagóricos. Será que novamente eu seria obrigada a entrar naquela banheira? 

Parei. Exigi que Meia-noite me dissesse para onde iríamos. 

— Não, eu não a levarei novamente para a banheira. Mas você precisa enfrentar seus demônios, senão ficará sendo constantemente assombrada por eles. 

— Não há alguma forma de esquecer tudo isso? Eu não aguento mais! 

— Há uma forma, mas você estará disposta a entregar-se? 

— Eu não sei, depende do que me será exigido... 

— Você irá descobrir... 

Um frio gélido lambeu minha espinha. Meia-noite esboçou um sorriso enigmático, mas que me assombrou. Continuamos seguindo um destino incerto para mim, mas agora andávamos calmamente. Aos poucos as luzes do ambiente foram transmutando-se de violeta para leves tons de escarlate. Ouvia sussurros entrecortados e sôfregos concediam ao local aspecto dantesco. 

Chegamos a um salão amplo. Os lustres transbordavam luzes vermelhas. Havia estantes recheadas de livros clássicos, com capas vermelhas, verdes e azuis belíssimas e estilizadas com letras douradas, que reluziam como se feitas de ouro (e provavelmente eram, pois o luxo não era problema naquele Castelo). Os vastos móveis, mesas, armários e cristaleiras eram adornados de objetos metálicos de prata e ouro envelhecido, cujos reflexos enuviavam minha visão. As poltronas e cortinas eram de veludo vermelho, similar as que tinham no meu quarto. Enquanto observava maravilhada cada detalhe, nos móveis, teto e paredes, percebi que ao fundo havia quatro portas, e Meia-noite, antevendo a minha pergunta, começou a proferir: 

— Atrás de cada porta haverá um acontecimento de sua vida, uma violência que foi causada por um daqueles que estiveram em seu quarto. Você poderá interferir, poderá eliminá-lo da forma que quiser. Mas saiba que qualquer alteração do seu passado irá reverberar no presente: Novas versões suas serão criadas. A sua versão atual será a principal e continuará aqui no Castelo, em segurança, mas não terá consciência das outras, elas também não saberão sobre você. Elas terão novos destinos, outras pessoas irão cruzar os caminhos delas. Elas poderão passar por situações muito piores que as suas, mas você irá se livrar das suas dores, pois todas as memórias tristes que envolviam o eliminado serão apagadas, como se nunca tivessem ocorrido. 

— Todas? 

— Sim, todas. Mas as suas outras versões poderão continuar o tormento... 

Eu nunca me considerei uma pessoa altruísta. Não fazia trabalho voluntário ou doações, não porque não considerava importante, mas porque gastava meu tempo tentando sobreviver na selva de pedras e, sendo sincera, não queria me esforçar para deixar os outros bem. Mas eu nunca fiz o mal para os outros de forma deliberada. A ideia de condenar outra pessoa — ainda que versões de mim — à uma vida miserável me incomodou extremamente. 

Quando virei para falar para Meia-noite que iria recusar a tal proposta, deparei-me com uma figura enigmática. Esse Castelo ainda me deixará entregue à loucura!  

Permaneci inerte enquanto fitava-o, e ele retribuía minha hesitação com um olhar cortante. Era alto, belo e trazia sobre os ombros uma capa negra com finos entalhes dourados, conferindo-lhe um ar altivo. Alguém que já havia encontrado anteriormente. 

— Drácula? — Perguntei com voz quase inaudível. 

— Sim... Fiquei intrigado com a vossa escolha. Faz eras que não cruzo o caminho de um mortal cujo coração, embora puro, pulsa dissabores e destila amargura. 

— Eu não tenho o coração puro... 

— Quero lhe mostrar algo... — disse ele, com o olhar sombrio e hipnotizante, enquanto apontava para uma estreita passagem entre as estantes, onde antes havia quatro portas, agora desaparecidas. 

— Eu não sei se quero entrar... 

— Compreendo... Passastes por experiências incompreensíveis neste Castelo, e é natural que as descobertas lhe causem inquietações. Deves adentrar a passagem por tua própria vontade. Aguardarei a tua vinda... Venha quando estiveres preparada. 

E, sem aguardar minha resposta, envolveu o rosto com a longa capa e desvaneceu no ar, como se atravessasse um portal oculto para as sombras. 

Quais descobertas me aguardam através da passagem? O que Drácula reserva para mim? Espero em breve descobrir. 

Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. Ler edição completa

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