Capítulo 2: Abíssicas Escolhas
Embevecida pelo silêncio dos sonhos mais profundos, tudo se externava em suavinura. Andejei sob infinda serenidade por dentre um substancial jardim de raras e inigualáveis espécimes florais — as quais eu parecia conhecer tão bem. E a crepuscular solitude felicitava minha alma dulcificada, enquanto no horizonte as cores tórridas se esvaneciam e o sol se amainava conforme a aragem soprava a noite fria. Cessei meus passos e olhei para trás, avistei um colossal castelo; à vista de meus olhos oníricos, a vida exalava de suas entranhas. Cada janela um tremeluzir se via, dos lumes das velas nos castiçais; cada torre ornamental, esculpida como se a mãos, por um único artista, quebrantava os céus, e protegia-me. O alcácer era incomensurável, havia um reino em seu âmago, preenchendo todas as suas terras. Era um lar, tinha alma de lar — como eu queria me lembrar. No entanto, sob a gana de alcançar a memória, desadormeci... e a luz azul-pálida tocara minhas pupilas, vinha da estranha lua túrgida visível das fenestras daquele aposento — em uma delas, uma silhueta viril eu avistei; ele admirava a beleza invulgar do índigo anoitecer perpétuo.
Ainda vestida em escarlate, reconheci o desvario daquele outrora quando os rostos eram terríficas cenas por espelhos fincados em seus semblantes. Lembrei-me de minha angústia, da dança macabra, do mórbido pavor. Contudo, indagava-me há quantos dias este baile acontecera e por quanto tempo residi em ilusões inconscientes. Quem trouxe-me aqui? Decerto aquele homem aguardava-me, talvez tenha salvo-me de meu delírio. Era imprescindível vê-lo, inestimável agradecê-lo e, sobretudo, reconhecê-lo. No entanto, aos meus lentos movimentos, passos serenos, não pude abandonar o lumiar lunar cujos tons níveo-cerúleos expandiam-se pelas trevas n’um azul-mar-abismo. As cores moldavam meu espírito e manipulavam minhas emoções e sei disso, pois ao que revelava meu despertar sonial, transmutava-se a realidade em outro sonho, capaz de extasiar tanto quanto. Assim, conforme me aproximava daquele homem, em desejo frígido — o suficiente para queimar —, eu me envolvia.
— Sentes-te melhor, mítica dama? — Dissera, com seus olhos voltando-se a mim, belos olhos enegrecidos, com escleras igualmente negras; eram como duas helleborus lihri-nocturnus, flor sempre adornada por uma essência invernal. Tal espécime é um cruzamento bastante peculiar entre o heléboro púrpura e o Lírio do Nilo, por isso tem a cor roxa profunda que, aos olhos, assemelha-se a um preto intenso. Um tênue sorriso ascendi ao homem misterioso e reconheci seus lábios, eram os mesmos daquele que me convidara para dançar na fatídica noite. Lëvri... eu me lembro. Lëvri levantou-se, portanto, segurando uma de minhas mãos e beijando-a, amoroso.
— Temo não ter despertado ainda. — Ele sorriu à minha resposta.
— A noite é o mistério índigo dos teus olhos rubros... ou, devo dizer, áureos? — Sua expressão encarava-me com uma virilidade instigante e, sob a estranha noite, eu sentia florescer em meu corpo a frenesia mais pujante.
— Não sei ao certo... não posso olhar para espelhos. — Revelo, ainda incerta; com a reminiscência dos fragmentos espelhados nas faces sangrentas dos convivas do baile. Turvei-me um pouco diante do lembrar e vi a rapidez de Lëvri para segurar meu corpo instável. Olhamo-nos como falésias à escuridão oceânica.
— Frágil... doçura pálida... por que enlevas a escuridão do meu universo com tua alma de Ennehris? — Ele ajuda-me a sentar na poltrona que outrora ele se sentara; sem que seu olhar esvaísse do meu. Pus-me sob a mais intensa luz lunar. Lëvri semi-ajoelhou-se em minha frente.
— Ennehris? — O fitar sedutor metamorfoseou-se em afabilidade.
— A história de Ennehris... Deixe-me contar-te... — assenti — De nome Ennehris, a estrela mais fulgurante do firmamento, tão mais que o sol, porém, longínqua. E de todas as longínquas, Ennehris, inestimável, é sempre a realçada na lúgubre antemanhã. Estrela-fascínio, mentora nas trevas daqueles que caminham ou navegam à noite. Alguns juram tê-la visto descer dos céus, para guiá-los com sua apaziguadora voz. — Segurou minhas mãos nas suas e, seguindo em silêncio, tocou-me a face gélida. — Disseste-me não saber teu nome, porventura esta seja a razão... estrelas da imensidão nunca sabem seus próprios nomes. — Sorri-lhe, pois, quão cativante as suas palavras se proferiam.
— Ah... que formidável seria ter este nome...
— E tens... — Lëvri levantou-se e, segurando-me, levantou-me envolvendo seu braço em minha cintura. — Ennehris... — Seus olhos negros fitavam meus lábios. — Hum... Posso ver... — Dissera-me ao voltar-se aos meus olhos. — Rubros outra vez... — A maneira como Lëvri estonteava-me era inenarrável. Todo o meu corpo respondia ao seu toque, à vivacidade de uma paixão lôbrega nos poros de minha tez. — Teu enigma confunde meus princípios...
—Lëvri... — Murmurei, ocultando-me nas minhas pálpebras fechadas, buscando as sensações do tato, as mãos dele em mim, seu hálito tão próximo de meu rosto e todo aquele palor lunar, induzindo-nos. Senti-o tocar minha nuca com a calmaria dos mais brandos mares. E beijei-o sem que as tristuras, tão humanas, me acovardassem. O beijo de saliva afrodisia, ardente mesmo que fôssemos tão álgidos; e seu sondar em meus cabelos, soltando-os, envolvendo-os para meu delírio íntimo, entre sussurros ininteligíveis. Lëvri pegou-me, à sua força vigorosa, levando-me para a cama onde veemente era a penumbra. Deitou-me, gentil; e toquei em seu torso, passando meus dedos dentre os botões de sua vestimenta, sentindo-o arfante. As veias de seu corpo, em especial em seu pescoço e fronte, avultaram-se de modo significante e seus olhos tornaram-se ainda mais escuros.
— Ennehris... — Soprou Lëvri, sensibilizando com seus lábios o que se enunciava da curva de meus seios por causa do corset e, enquanto seu semblante afogava-se ali, tateei as veias de sua fronte com a ponta de meus dedos. Quão ansiosa eu estava... dentre o índigo sombrio, o predizer soturno da lua plangente; minha alma condenada ao prazer inefável a desprezar quaisquer conjecturas da razão. Lëvri beijou-me voraz, pegando-me o corpo, levantando-me suavemente ao passo em que se mantinha no beijo vesano. E senti suas mãos desatarem os laços de meu corset que se fez tão logo afrouxado e, hábeis, suas mãos vieram a deslizar, com apreço, as mangas de meu vestido, resvalando pelos meus braços. Neste ínterim, pude vê-lo outra vez, sobre mim, livrando-me do vestido, devagar, beijando cada espaço pequeno da pele que se revelava.
— Esculpida... em perfeição... — Ouvi-o dizer, ao olhar-me os seios soltos e despidos. Logo, as veias de seu rosto pulsaram, em plenitude visíveis, e ele parecia sentir dor, pois abaixou sua face, franziu a fronte e fechou seus olhos negros.
— Lëvri? Estás bem? — Indaguei em completo receio, uma preocupação genuína.
— Sim... — Sua resposta não me agradara, mas ele voltou a me olhar, tocando meus lábios com seus dedos. — É apenas... a minha natureza... — Disse em seu tom mais grave. Degustei de seus dedos e o ouvi gemer sem distinguir se era a sua dor ou seu prazer, pois eu sabia que seu corpo sofria pelo desejo. — Tua enseada... há de acalmar... a minha nau... — Murmurou, e toda a minha enseado fez-se o mais bravio oceano. — Venha... — Fui conduzida por suas mãos e, como se dançássemos, Lëvri pôs-me em pé, perto de nosso leito, o vi deitar-se em seguida, ordenando-me que permanecesse de pé, e na cama ele se pôs de modo que pudesse avistar-me por completo. — Desvista-se para mim...
Naquele instante, parecia que o palor da lua túrgida me tocava de fato, senti o tato de seu lume misterioso pelo meu dorso nu. Olhei para os vitrais abertos, mas neles não me demorei. Com a lentidão de minha inocente lascívia, retirei aos poucos a minha vestimenta, exibindo meu corpo para Lëvri e vi minha sombra azul-escura tateando os lençóis daquela cama, os quais eram negros e possuíam uma maciez de lanugem, além de uma sutil transparência. Então, como uma escultura de gesso, eu estava nua e Lëvri semicerrava seus olhos, fechando seus punhos enquanto suas veias pulsavam por sua face e pescoço, cada vez mais animalesco. Assim, mais cuidadoso que outrora, ele se levantou para tocar minha nuca e beijar meus lábios. A brisa da noite anil arrepiava minha tez e conduzia a invernia por cada poro.
Álveo ninho... deitei-me sobre a lanugem negrume, colocada, novamente, pelas mãos firmes de Lëvri. E o vi-o tocar suas roupas... após fechar-nos no dossel que ilusionava aos nossos olhos uma suave névoa ao derredor. — Feche estes teus pulcros olhos rubros... minha Ennehris... — Eu estava atenta, ele percebera... eu estava atenta ao seu movimento e àquilo que eu veria por detrás daquela indumentária escura. Todavia, fui privada por aquele momento, hesitei em obedecê-lo. — Ah... sim... tua curiosidade... — Lëvri tocou-me os lábios outra vez... — Antes de vê-lo... tu sentirás... em ti... — Fremi e sei que gemi, ocultando minha visão e sentindo Lëvri se aproximar... sua respiração ofegante e o seu, agora, estranho calor. Ali, na penumbra em índigo poder, o corpo de Lëvri sobre o meu e o toque de sua rigidez... tão perto. — Sinta... assim... devagar...
Todo o seu teso viril, firme adentrara-me pouco a pouco e... eu o senti... em toda a sua extensão consistente... dilatava-me à margem de uma leve algia, no entanto, o prazer se ressaltava para mim e meu corpo tremia, tanto que meus olhos se abriram e meus lábios se entreabriram, e vi evaporar dos olhos vis de Lëvri um fumo umbroso, o qual eu respirava, pois estávamos próximos. Respirá-lo trazia-me vertigem, como um elixir fumegando e tendo suas essências difundidas. Tudo o que cruzava minha visão vinha zonzo, letárgico... e a penetração parecia tocar-me o ventre... eu lacrimejava. — Tão... fundo... — Sussurrei.
— Eu posso... regressar... — Disse-me, com uma voz bestial, embora fosse ainda a sua voz.
— Não... — Quantas intensas e antagônicas sensações, eu não poderia abdicar delas. — Quero... me sentir completa... — Ao revelá-lo meu anseio, embrenhou-se rígido ainda mais em mim, onde a gruta inundada sofrera estendida e contraída. Fui tomada por um tipo assombroso de energia que me convulsionava. Lëvri movimentou-se, então, n’um ir e revir de anômala rapidez e os sons que emitia, gemidos e sussurros de dor vinculados à extrema luxúria, ampliavam meu delíquio pelo vapor negro de seus olhos. As veias de seu avultoso poder, dentro de mim, estavam igualmente protraídas, tal como em seu pescoço e face... era um deleite senti-las em minha arculva. Todavia, Lëvri estava cada vez mais instável; sua cabeça se movia célere o tanto que sequer eu a compreendia, em determinada hora, quando aquela alcova parecia mais brilhante, como se a lua tão cheia excedesse no infinito a sua luminosidade, senti o aroma se sangue esvair pelo seu corpo, mas eu estava tão enervada...
— Por... favor... — Implorei e isso o fez amansar em segundos.
— Estou... hum... Ennehris... estou ferindo-te? — Senti-o acariciar meus cabelos, preocupado apesar de sua... natureza.
— Não... eu... — Era tão difícil proferir quaisquer palavras racionais. — Sinto-me... eu não estou... — Seus movimentos diminuíram, embora penetrasse compassado. Então suas mãos tocaram minha garganta e pressionaram-na para cessar minha respiração. Pude vê-lo outra vez sem desanuviar a imagem, pois não mais inalava a insanidade da sua aura sombria. Isso recuperou um tanto de meu vigor o que me levou a contrair meu interior; rapidamente Lëvri soltou-me, respirei apressada; seus olhos de escuridão fitaram meu espírito.
— Gostas... minha Ennehris... que eu faça... devagar? — Ouvi-o, embriagada. Meu sorriso o respondia que sim, envolto aos meus gemidos acentuados. — Agrada-me teu riso pulcro... doce... longânime... — Segurei-o firme, no intenso êxtase, arranhava-lhe as costas a cada aprofundar de seu plenitúrgido em mim e, assim, em certo instante, eu nada via além de meu abstrato prazer, um regozijo lascivo excelso atravessava-me violento vibrando minha alma, carne e pele. Então, pacifiquei-me, e ainda de olhos fechados, senti se entranhar em meu ventre um tórrido néctar, como um caule de Nelumbo Nucifera, e em meus ouvidos disseminaram-se os murmúrios sombrios de Lëvri, os quais me fizeram abrir os olhos. O seu corpo deslizara para meu lado, em nosso leito, e apreciei todas as veias negras desaparecerem lentamente, na imensidão do que vivíamos, pela natureza dele e a minha. Lëvri fitou-me em seguida e afagou meu rosto, deitei-me em seu peito sob seu chamado.
Adormecemos juntos sob o esotérico luar, abraçados como eternos amantes, todavia, amanheci outra vez, acredito que em poucos instantes depois, pois a imensa lua alumbrava da mesma forma. O que me levara a avivar meus sentidos fora um cântico mágico, o qual me guiara, em estranha curiosidade, para os jardins secos do inverno lá fora. Lëvri se mantinha na profundez de seus sonhos soturnos. Caminhei descalça, em níveo damanoute, pelo álgido índigo, sem me importar, pois, o cântico era como um encantamento que me protegia da friagem hedionda. “As sombras e o silêncio guiarão. A luz da tua memória ofusca o ouro. O escuro abraçará teu coração. Recorde estrela mítica, tesouro. Teus olhos brilharão, rubáurea rara.” — O cântico entonava em uma língua estranha, mas eu compreendia.
Um lago, de águas em tom azul-claro, avistei, e o vocalizar vinha de seu interior. Era uma queda-d'água, esplêndida por não estar congelada diante tais baixíssimas temperaturas. Em seu envolto, flores azuis bioluminescentes e altos pinheiros sombrios. Havia também pedras cinéreas a cingi-lo, como uma mágica fonte termal. No meu achegar, a neve deslizara das nuvens lívidas da imensidão anil-umbrosa, numa nevada de flocos tenros, no entanto, o Luar mantinha seu reinado poderoso. Assim me aproximei do lago envolvente e pouco a pouco fui reconhecendo aquela voz feminil... era a minha voz, fleumática como a neve que pendia na aragem. Ajoelhei-me sobre o pálido manto macio e fitei o interior do lago. O que vi não fora o meu reflexo, mas sim o de uma criatura símil à máscara que usei naquele baile carmim-dourado. Ali ela estava vívida, olhava-me atenta, piscava e respirava como eu. Parecíamos unidas na fantasia daquelas águas.
Era um animal magistral. De tez símil a um dragão, de um tom rubinegro que se alastrava acima para o vermelho vivo e abaixo para o preto profundo. Tinha um crânio corvino em osso marfim puro, e grandes olhos dourados. Seu corpo era como o de uma ampla serpente, conquanto rastejasse como uma, por vezes, comportava-se muito mais como um dragão, embora não voasse. Os pormenores de suas condutas não refletiam nas águas, sem embargo e decerto por uma lembrança fidagal, eu os compreendia. Gostaria, porém, de saber ao certo de onde vinha a criatura e qual seria a sua ligação comigo, eu percebia que havia muito dela a colidir com meus momentos desde que despertei, assim como o sangue — o qual me fascinava degustar. Então, como, porventura, Narciso fizera à sua própria venustidade, amantética vi-me no refletir onde a criatura mítica, tão estonteante, aparentava desejar algum diálogo comigo. Toquei as águas serenas, por fim, tão embevecida eu estava com o animal de áureos olhos.
Resvalei da neve de súbito, imergindo-me na imensidão do lago cerúleo cujas águas eram como um licor de luar e noite invernal, dentro delas, então, havia uma voragem, um infinito de escuridão, tal o oceano pacífico. Completamente imersa. Ouvi o cântico debaixo desse abismo. “As sombras e o silêncio guiarão. A luz da tua memória ofusca o ouro. O escuro abraçará teu coração. Recorde estrela mítica, tesouro. Teus olhos brilharão, rubáurea rara”. Destarte, tão brusco como a queda d’outrora, avistei, assustada, o lago; eu não havia imergido em seu interior e já não havia a criatura mítica no reflexo da fluência das águas encantadas, havia apenas eu; e vi meus olhos, por fim, um em tom rubro intenso e o outro em dourado nitente. Foi nesta surpresa misteriosa que uma voz feminina serena alcançou meus ouvidos, dispersando o ruído do vento; não era mais a minha voz. Olhei na direção da entonação e uma criatura se fez corpórea à minha frente, seduzindo meus sentidos.
— Bem-vinda, alma perdida. — Dissera-me. Levantei-me da regélida maciez alva e fitei os detalhes daquele espírito cuja forma assemelhava-se a uma mulher de longos cabelos brancos; seu corpo era um espectro azul-celeste. Um fantasma, eu diria, translúcido, porém, tangível, ao que me parecia. — Somente as mais pulcras essências são despertadas pelo meu lago. O que buscas, coração ferido? — Indagara com um tom de voz tênue que espargia longínquo.
— Quem... tu és? — Eu estava deslumbrada, cativada e envolvida pela aparição.
— Sou Lahgura, um espírito vilíneo. — Sua voz ecoava, um eco longo e exuberante. — Se posso ser vista pela tua heterocromia, então fui evocada por teu sortilégio... aquele que até mesmo tu desconheces. — Eu não a compreendia, era um ser insigne. Seu esvoaçar aproximou-se de mim, reluzindo em perfeição.
— Tens as respostas que busco? — Tremi pela possível resposta, ciente de que tudo naquele estranho lugar era guiado pelas mãos d’algum ilusionista.
— Posso tê-las... sim... eu sinto a tua esperança. Diga-me, flor pálida, diga-me o que desejas.
— Eu... desejo lembrar... eu... — Lágrimas nasceram em meus olhos ardorosos — Eu gostaria de... estar protegida... como no meu sonhar desta manhã... o belíssimo jardim de raras espécimes... o castelo familiar...
— Pulcra lacrimal, densa emoção. Ouça que tão logo desvanecerei... Eu, Lahgura, concedo-lhe o que vocifera em silêncio a tua tristura. Mas, não lhe posso abençoar sem um preço.
— Preço? Eu... eu... nada tenho a oferecer... — Sua corpórea espiritual tocava minha face, deixando-me aquecida.
— Não peço, gentil languidez, porém, tudo o que te darei trará consigo uma sombra. À memória recordada, virá tua dor a cada lembrar-se futuro. À tua proteção perpétua, virão as sete vozes do abismo. — Ponderei por longos instantes, entendendo a maldição que o enigma daquele ser conduzia.
— Recordarei tudo? Todo o meu passado?
— Singelo ser, a grandeza da penumbra equivale à amplidão do teu desejo... Lembrar-te de tudo o que és, resultará na maldição mais perversa que o esquecimento.
— Então... o que lembrarei?
— Cândida femínea, trar-te-ei uma memória de valor, tua, que precisa com urgência vir à consciência. — A compreensão começava a florir d’um peculiar botão enterrado em minha angústia e regado pelo meu medo.
— Após esta revelação, toda e qualquer outra, trar-me-á dor ao retornar à consciência. Tenho compreendido?
— Sim, vestal.
— E a proteção trar-me-á sete vozes do abismo... elas estarão sempre comigo?
— Virão quando estiveres em conflitos mentais. Entenda que o que sou é uma dádiva e uma calamidade; limiar do infortúnio à benção. Contudo, vejo em tua fronte um poder surreal, lidarás, decerto, com maestria a ambos os horrores. — Silenciei a ouvi-la, ponderando. — Uma única lembrança inestimável será o guia para tua existência e a proteção trará o sangue dos hostis aos teus lábios vampíricos.
Eu não poderia negar uma lembrança que lumiaria minha escuridão, embora aquele cântico... tão meu... entoando que “As sombras e o silêncio guiarão”. Por que eu diria tal desatino a mim mesma? Nada se vê no escuro, nada que não o temor. Que custosa fora tal decisão, e a tomei antes de articulá-la por fim. E Lahgura constatou. Ergueu suas mãos finas para que as flores bioluminescentes em anil envolvessem-me dos pés aos olhos em suas pétalas que se erguiam sutis, frígidas e vívidas. Rezou Lahgura, uma reza que não distingui. E então eu me lembrei; reconheci aquele que amei, morto pela Rosaemori, da espécie de classe única, veneno ao nosso clã. Presenciei outra vez o sangue flavescente, suas últimas palavras para mim e a crueldade dos olhos negros. Lembrei-me e, quando voltei a fitar o horizonte, nenhum lago permanecera e tudo o que ficara fora o intenso frio e a compreensão amarga.
Retornei ao cômodo que outrora estive, debaixo do dossel. E vi, tão logo aproximei-me do leito, era Lëvri. Adormecido. E em suas costas, ao meu espanto, porém, previsível em algum nível singular, seu dorso contemplava uma imensa Rosaemori tatuada em sua tez. A rosa maligna. O veneno do clã. E sim, eu o amei, o senti dentro de mim e vi bem seus olhos de trevas. Finalmente eu entendi quem ele era.
“Mate-o"...“Ele é um traidor”... “Mate-o”...“Mate-o agora!”... “Ele é um traidor”...“Ele está vulnerável”... “Mate-o”...“Não seja fraca”... “Mate-o agora!”...“Destrua-o"... “Não seja fraca!”... “Ele matou seu único amor”... — Ouvi, insistentes e perenes, repetindo enquanto eu fitava o dorso de Lëvri. Eu ouvi... caóticas e intensas; mórbidas e lúgubres... eu ouvi... ouvi as sete vozes do abismo.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…