A Insondável Redenção

Imagem criada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula, com Midjourney

Ouvia o sussurrante estridor do rígido inverno e o pálido horizonte nevoado assustava-me em sua imensidão anilada. Estes meus incrédulos olhos nunca estiveram de frente a tal terrífica paisagem; tampouco o fremir das ondas sonoras deste estranho sibilar penetrara meus tímpanos alguma vez. No mais longínquo do que eu podia observar, as cordilheiras negras preenchiam uma infinitude sombria e, detrás das nuvens glaciais, havia o sol remoto— eu sei, pois seu reluzir fantasmagórico manifestava-se pelas céleres clareiras repentinas, como rachaduras no céu, eram raras frestas de lume solar, cada vez mais infinitesimais. Facilmente, debaixo daquela intensa nevasca, nada sobreviveria. 

A flama que crepitava na lareira era um vagalume na vastidão azul-grisácea, tomada pelo seu imanente índigo. A madeira da cabana ilusionava-se mais escurecida e úmida, algo deveras insólito; em certo aspecto, parecia envelhecida. Minha percepção era de que a morte, em sua mais bruta manifestação, fomentaria um pavor verossímil à vívida crueldade da natureza climática. Apesar dessa mórbida verdade, a morte era a entidade que espreitava, na sua escuridão, as minhas visões paralelas; como três olhos fundos pelos cantos imersos em um estranho breu, onde a brasa, lânguida, não tateava. Antes do enregelar fúnebre, almejado pelo espectro de Exício que circundava, eu sentia que quando o sopro tétrico do exterior extraísse minha única fonte de aquecimento, o sibilo da insanidade causaria o efeito que narrava em seus decibéis e, então, eu cortaria meu pescoço com a lâmina de tungstênio da minha faca de caça. 

No antro de minha existência, jamais cogitei tal medonha blasfêmia. O sibilo do vento antártico insinuava uma influência perversa, tanto quanto o espreitar da escuridão. A vida, em suas quedas mais abismais, tecera cenários terríficos que assombraram meu âmago, sob angústia e medo, no entanto, jamais ao nível daquilo — e não me refiro ao sopro diabólico da nevasca, tampouco às intimidantes trevas da cabana. Quando já não me era possível permanecer sob a frágil luz da última lenha queimada, protegi-me com o traje adequado, reforçado em razão do nível de horror branco no lado de fora; por instinto peguei alguns itens, como a faca de caça, uma corda, um candeeiro e suprimentos. Meu destino era o casebre da lenha, lar de Gahsper, meu irmão. Não ficava muito longe dali, aliás, deveria ser visível da fenestra do meu quarto, se não fosse o mal tempo. 

Andejar na árdua neve acumulada, com a frígida e impetuosa aragem, assemelhava-se às veredas dos vales das montanhas mais afastadas, as que se enegreciam no horizonte. Tive de armar os báculos para me locomover com mais segurança, no entanto, o casebre de lenha não se desvelava à frente e, em minha análise, nele eu já deveria ter chegado. Quando fitei a bússola estagnada, completamente inerte, entendi que o pressentimento amargo não advinha de uma fraqueza mental, pois algo estava, sem dúvidas, errado; uma aura perigosa cingia-me de modo que, impossível de voltar à cabana para morrer de frio, segui com rapidez arriscada, à frente. Quando encontrei uma poça de líquido vermelho espargido na pálida neve cerúlea, n’uma cor vívida, como se tivesse sido vertido há segundos, empunhei a faca de caça e segui na direção da poça que permeava um corpo indistinguível. Como previ, sangue. O que... aconteceu aqui? E a pobre criatura estraçalhada, decapitada e devorada, era humana. Era Gahsper. Gahsper... 

Nunca senti o tétrico gelar da minha alma, mesmo vivendo há tantos anos em Nehen. Ainda, pelo rosto de meu irmão, assombrado em um pânico indizível, por certo, aquela morte não fora causada por um animal selvagem. Seus olhos estavam arregalados, as pupilas congelaram dilatadas. Nunca esquecerei o seu semblante dantesco, nem o seu sangue vertido — a única cor naquela brancura desoladora. Aquilo era tão obsceno e… pavoroso…que não pude chorar, pois, o temor impedia qualquer alarde emocional e, até hoje, inibe. É verdade que por esta razão, tudo o que escrevo é tão frígido quanto o fenômeno daquele dia; eu não sinto nada além do medo, visceral e íntegro, como uma chama no peito, acesa no perpétuo dos meus pesadelos, incitando-me à lembrança hedionda. A opressão deste pânico silencioso arruinou muito do que havia de contentamento em minha vida, pois me ronda, desde então, aviventando o pavor e a solidão que me residem. 

Retirei a corrente de Gahsper, ela repousava no sangue; observei os arredores e guardei o objeto no bolso. Ainda cogitando voltar para a cabana, olhei na direção do meu rastro na neve, prestes a se perder no nevoeiro de gelo. Então, meus olhos viram o que fez meu coração disparar frenético em um macabro assombro. O sussurrante estridor do rígido inverno expandiu-se agônico de modo que meu crânio padeceu, no imediato instante, de uma dor aguda em cada têmpora. Um homem, é o que ele parecia, em uma nudez dismórfica, estava há poucos metros de distância de mim. Sua pele descamava e uma carne enegrecida e pútrida, mesmo longe, podia ser vista por detrás da cútis. Seus braços eram finos, seus olhos enegrecidos eram como dois poços profundos; havia sangue em seu rosto, mãos e torso. Ele fitava meu espírito como somente uma criatura do inferno poderia fazer. Seus dentes eram afiados, ele possuía vários em sua boca oval, e ao contorno da sua silhueta deformada, uma aura de breu, a mesma da cabana, o cingia. No centro de sua face medonha, havia um terceiro olho n’uma metamorfose bizarra na cavidade encarnada de seu nariz. De todos os orifícios de seu corpo absurdo em bestialidade, um escuro líquido espesso gotejava. 

Eu desviei meus olhos da morbífica criatura humanoide e me apressei, ofegante, entre o sopro terrífico que se difundia cada vez mais violento e a paisagem que se tornava, em segundos, mais pálida. A caudalosa invernia, pela nevasca mais perturbadora que já vi, não cessaria; se aquela coisa sinistra me seguiria, eu não deduzi; ao guia de meu mais abismal pavor, apenas corri como me era possível, afundando na neve já embriagada de seu próprio poder destrutivo. Mas, reconhecia meus limites; do meu corpo a fremer de frio e horror, enquanto a imagem das vísceras de Gahsper vinham à minha mente ao lado dos dentes afiados e dos três olhos repulsivos e lôbregos; lampejos de um pesadelo no qual não se pode despertar. Assim fui consumida por uma ansiedade, talvez pela certeza de encontrar a morte de fato, da pior maneira; talvez porque eu não desejasse morrer, pois que eu amava, no mais fidedigno da minha essência, o poético viver naquela cidade perdida e consumida pela noite. Amava, também, todo aquele continente, pelos trens aquecidos, os quais eu viajava por longas horas e até mesmo por dias; pelos mistérios de seus habitantes que me ascendiam a um sentimento de vínculo profundo que galgava os entraves climáticos. Talvez porque eu ainda não tinha sido amada, tal como fora a minha mãe, pelo meu pai, por mais de cinquenta anos. 

Afundei na neve nívea quando vi no céu as sombras fúnebres perpassarem com a chegada da noite. Ofegante cada vez mais. A escuridão era quase tangível, achegava-se como o vento pujante e se não mente a minha lembrança, a vi distorcer-se em determinados momentos, como se dançasse junto à nevasca, como se fosse sobrenatural. E eu, eu não conseguia correr nem mesmo um metro à frente. Avistei partes de uma torre ao longe, eu decerto estava próxima de um possível abrigo. Era tarde demais, como geralmente é quando encaramos demais o semblante da morte. A visão que antecedera o meu desmaio, fora da plenitude noturna e daquela mesma sensação que tive na cabana… o estranho breu que parecia me encarar com três olhos… ali, no entanto, diferente de antes, eu sabia muito bem que tipo de coisa me encarava daquela forma na escuridão. 

O sopro da morte álgida, em frações de tempo, dissipou-se. O silvo se fez rarefeito, um símbolo à lembrança perturbadora. Meus olhos se abriram com uma lentidão difusa e queria eu ter visto a madeira da cabana e ouvido o crepitar na lareira, estalando a lenha; seria, inclusive, aceitável estar debaixo de um monte nevado, sentindo meus membros necrosarem. No entanto, nada disso era factual. Quando fui capaz de distinguir as sombras no verter do fluído de minhas retinas — as quais, cobertas pelas pálpebras, descansaram sabe-se lá por quantas horas — então, avistei paredes de pedra úmida e ouvi sons de correntes coincidentes aos meus movimentos. O que... o que é isso...? Meu corpo frágil desidratava, olhei em direção ao som ferroso e vi uma grossa argola enferrujada a prender meu tornozelo a uma corrente fundida na parede rochosa. Arfei trêmula, puxando a corrente diversas vezes. Foi em vão. E pairava um contínuo ruído por aquele ambiente sanguinolento, eu ouvia minha respiração cada vez mais acelerada, destacando-se no ruído. Esperei a morte, com duas faces: meu corpo decepado sobre a poça vermelha, como Gahsper, e ser necrosada até a morte pelo frio cruel. Todavia, estava encarcerada; nada do que eu poderia prever. 

Fica... calma... Um enjoo germinou pútrido no meu estômago, decerto ocasionado pelo odor de plasma, de morte, de umidade. Turva, levei minhas mãos ao rosto, qualquer alívio seria suficiente. Então vislumbrei minha possível e única saída, advinha dela uma luz trêmula e fraca de pontos longínquos de luz por um corredor estreito; um lume que permitia as sombras do gradil se propalarem pela minha cela. Nestas grades arqueadas, contudo, um corpo jazia... contorcido. Discerni algumas coisas ao seu respeito, pois, a visão era limitada. Primeiro, o que me era mais inestimável, um molho de chaves esplendia em sutileza, resvalando do bolso do indivíduo; e seu cadáver vestia um tipo de traje específico, símil a uniformes usados pelos Humanos da Ordem, quando se erguia o inverno no continente acima. Era mais que fundamental alcançar o falecido, mesmo que para isso fosse inevitável uma irreparável perda. Não tenho escolha... Então comecei a esticar meu corpo, apoiando-me no chão enegrecido e sujo. Eu sentia a argola enferrujada rasgar a pele de meu tornozelo, um suor intenso escorria de minha testa e o enjoo se intensificava. Eu... me lembro... me lembro do quanto as emoções foram suprimidas e, meu corpo, distendido; lembro da minha carne sendo penetrada por aquele grilhão oxidado, a dor... a dor inominável... e o grito escravizado pelo medo sob as asas da mais verossímil aflição. 

Alcancei as chaves e me libertei das correntes. Mas vi os ossos e tendões de meu calcanhar, tudo esfolado em uma ardência que parecia subir aos nervos de toda a perna esquerda. Aquela cena foi o meu estopim. Regurgitei tudo o que me era possível, à espera de expelir, talvez, minha própria alma. E quando fui capaz de cessar o vômito, percebi o perigo daquela perda excessiva de sangue. Rasguei a roupa do cadáver para envolvê-lo em mim, para extinguir o que vertia contínuo. Retirei do sujeito uma adaga, fincada em seu tórax — algo que vi ao abrir as grades do cárcere. Sim, eu caminhava, lenta e com vívida dor, mancando, decerto e apenas, por causa da adrenalina. O defunto nas grades, usava em sua face uma estranha máscara negra que escondia sua feição, ilusionava estar unificada à pele de seu rosto; de uma estranheza terrífica. Já o corredor, segui cambaleante por sua amplitude, no lado direito cuja luz espargia fraca. Fui buscando uma saída do pesadelo mórbido que preenchia todos os meus debilitados sentidos. 

Subi por escadas longas e vi mais celas e corpos mutilados pelo caminho e era... tenebroso... ainda mais pelo contínuo ruído baixo... como se aquele lugar fosse vivo.... cada parede de pedra... cada sangue jorrado... algum tipo de energia. Dentro da última sala, após me esgueirar por escombros, encontrei um candeeiro e mais uma adaga, a qual, todavia, diferente da anterior retirada do torso do homem no gradil, esta era feita de algum tipo de material peculiar, como um quartzo bem rígido. Subi, portanto, mais uma quantia de degraus e entre o ruído aterrorizante, vozes longínquas passei a ouvir enquanto um cômodo se revelava à minha frente; sua amplitude era considerável e tinha um formato encíclico, nele difundia-se uma luz avermelhada que evidenciava altas estantes cheias de livros e mais dezenas de símbolos estranhos pelo chão e paredes, organizados criteriosamente. Pensei que encontraria a origem das vozes, cada vez mais altas em meus ouvidos como sussurros de morte, socorro e gritos abafados entre palavras indescritíveis. Contudo, ao adentrar de vez pela porta semiaberta e fitar cada detalhe daquela ritualística câmara, nada havia lá dentro... ninguém além de mim... enquanto as vozes tornavam-se verdadeiros bramidos.... Alessia... Alessia... aos meus tímpanos... Socorro... Ajuda-nos... Alessia... Socorro... Ajuda-nos... como se dezenas de pessoas estivessem ao meu redor. 

Choro morbígero, urros bestiais... as vozes cada vez mais altas entre risos distorcidos... Alessia... Salve nossa alma... Socorro.... Enlouquecida, ajoelhei-me no chão, tapei meus ouvidos em busca de alívio, mas... aquilo estava dentro de minha mente... Alessia... inclusive a voz de Gahsper. Entre tantos clamores bizarros, eu o ouvia... Irmã.... fuja... fuja agora... minha... Alessia... Fechei meus olhos, cerrando minhas pálpebras em busca de um despertar. As lágrimas caíam de meus olhos vedados à força, verdadeiras como na infância, quando não se sabe de onde vem a primeira dor sentida... De súbito, porém, entre as frases e gritos desconexos, logo fitei a sala pelo pavor de sentir a presença de outro ser no ambiente... Ninguém... ninguém que podia ser reconhecido pelos meus olhos amedrontados. Comecei a retroceder, tendo aquela presença invisível cada vez mais próxima... arrastando-se contra mim, fazendo-me de imã à sua atroz consciência inominável. Socorro... Cuidado... Morra! Morra! Ajude-nos! Foi... extremamente difícil sair daquele lugar... o fiz com extensa agrura, fechei a porta da sala carmesim e empunhei a primeira adaga de ferro entre a porta e a parede, impedindo-a de ser aberta por dentro. Não importava saber o que havia naquele lugar, mas, decerto, importava-me trancar, o que quer que fosse, lá dentro. 

A insanidade prospera quando o horror irriga o espírito... e nunca sabemos como lidar com tamanho abismo, por isso, somos sorvidos pelo estado catatônico de nosso semblante e pelo instinto à sobrevivência... a qualquer custo... a qualquer preço. Mesmo à parte daquele salão de espectro aterrador, em estado de perturbação, com as vozes já dilatadas, eu corri numa pressa sobre-humana, abrindo todas as portas que via e entrando em todas as salas que eu podia em busca da saída. Corri... sem questionar como... sem sentir nenhuma dor no tornozelo... e encontrei a primeira luz pálida vinda de uma imensa porta meio vertical, em uma cor prata, lisa, com um único símbolo estranho, entalhado no material, algo jamais imaginado por mim ou por qualquer outro ser humano, tenho certeza. Ela estava entreaberta, a fresta de luz também carregava o frio e a nevasca hedionda, a esperança de sair outra vez na densa neve nunca me soou como tamanho alívio e proteção, mas ali me soava. 

Uma sombra, entretanto, parou frente à fissura e ouvi uma voz humana masculina, grave e avultada, proferindo a seguinte palavra: “Ttyrttyuor” — deduzo sua grafia. Sob seu som, a porta cujo lume de seu exterior era minha única esperança, abriu-se em completude de modo a exasperar meus olhos. A palavra era a sua chave. Esgueirei-me em escombros próximos e notei serem duas pessoas, uma delas vestia-se como o guarda da minha cela. O outro sujeito, porém... era uma opaca sombra indistinguível na escuridão, uma silhueta de um homem alto com uma face oculta — não busquei olhar sua face vazia, nem mesmo compreender a sua existência... ele era como a energia pesada daquela sala... sua presença assemelhava-se àquela do cômodo escarlate como se fosse, ele próprio, o cômodo em si. Escondi-me como pude, prendi minha respiração. 

Certifique-se de que todos estão mortos, prenda-os se não estiverem. Estarei no anfiteatro sangrento. — Arrepiava-me ouvi-lo, era temível estar em sua presença abissal. Ainda assim, dediquei-me ao silêncio e respirei apenas quando estava prestes a esmaecer mesmo depois de não sentir mais a proximidade deles, no dissipar daquela energia diabólica. Retornei, portanto, à porta fechada, sem nenhuma fissura de luz; e restou-me pronunciar o que ouvi... e o fiz, em sussurro, com os lábios bem rentes ao símbolo esculpido. 

Ttyrttyuor... — Uma intolerável dor cingira-me repentina, pulsando meu organismo como um pêndulo que se abala, dramático e solene, no antro de uma catedral; e vi minha pele rasgar em inúmeros cortes onde o sangue verteu célere e vigoroso e tomou a forma do símbolo entalhado. A porta se abriu em um segundo posterior e, imersa em pungente algia agônica, corri pela neve... desesperada... sem olhar para trás, com o rastro do meu sangue na palidez e o cruel sopro gelado coagulando, aos poucos, as cissuras da pele. Eu jamais pronunciarei aquilo outra vez... muitos daqueles cortes permaneceram em minha pele... mesmo após tantos anos. E, como se ainda fosse vivido, a energia hedionda daquele homem... daquela sala... afluiu-se pelos poros de minha pele, à minha carne, ossos e sangue vertido... senti perder o controle de minha alma, por átimos de um tempo além do tempo... e quando vi a neve, quando corri para minha liberdade, eu estava... instável... desnorteada e... oca... 

À beira da morte pelo frio, correndo sem cessar debaixo da eterna nevasca, tive a impressão de ser cercada por escuridão, outra vez, a energia... deduzi que era a morte ou a proximidade dela, todavia, a luz retornou às minhas retinas como se cobertas, tão somente, por uma espessa nuvem passageira, então, quando tive de volta a minha visão, percebi haver casas à frente, era uma vila desconhecida; luzes tremeluziam nas janelas de algumas delas, pinheiros indicavam vida aos arredores e, se posso dizer que sorri, naquela condição desgraçada, não estaria mentindo, pois algum tipo de sorriso construiu-se em meu semblante traumatizado quando observei um homem na janela de uma das primeiras casas avistadas e, com minhas últimas forças, levantei meus braços para sinalizar minha decadência, meu pedido de socorro. 

Como está o chá? — A voz de Samael era suave, embora viril como seu rosto. Abriu a porta de seu lar para mim, sem saber quem eu era. Ao ser acudida por ele, tive os cuidados mais inestimáveis; e deitada entre as cobertas tórridas, frente à lareira mais serena, tomei de seu chá de especiarias. Conversamos um pouco, não o revelei minha terrífica história. 

Perfeito... — murmurei, ainda exausta. 

É impossível sobreviver a tal nevasca... o Criador tem planos para a tua vida... tenho certeza...  

Criador? — Eu não entendia, genuinamente. Samael olhou-me atento. 

Tu não és de Múrmura? — Demonstrei desconhecimento através de meu silêncio angustiado. 

Estranho... Tens a marca de nascença de todos os múrmuros... No seu tornozelo... 

Então olhei, pela primeira vez desde a cela, quando me turvei pelo sangue, pelos ossos expostos, pela mórbida dor... eu olhei para meu tornozelo. Nele residia um imenso estigma, uma perfeita cicatriz contornando todo o espaço onde fora corroído pela argola enferrujada quando eu estava naquele inferno. Sobre parte desta cicatriz, um símbolo estranho estava marcado, como se feito à ferro quente em minha pele. Tudo, porém, curado. E jurei ter visto o mesmo emblema naquele quarto escarlate, quando caí no chão, perturbada pelas vozes. Samael mostrou-me o mesmo símbolo em seu braço direito e explicou-me que advinha do batismo sagrado realizado com os recém-nascidos por toda a província em que estávamos. 

Tu estás em Múrmura, estranha-me que sejas de Nehen, pois... não existe este lugar... quero dizer... é uma província denominada “fantasma”, lugar aonde não se chega, a menos que sejas guiado por Lúcifer. 

Lúcifer? — Minha cabeça doía, minhas mãos tremiam a cada fisgada em minhas têmporas. 

Acalma-te, Alessia... — Samael sentou-se ao meu lado, levando à minha fronte um cálido pano banhado outrora em águas fumegantes. — Não te entulharei com indagações ou explicações agora, perdoe-me. Descanse... os próximos dias serão melhores, eu prometo. 

Os dias foram, de fato, melhores, no entanto, a lembrança perdurou a cada adormecer; não posso esquecê-la, mesmo sob a benção do Criador que, hoje sei, esteve comigo a todo o momento, embora eu não compreenda como poderia aquele antro horrífico carregar um símbolo sagrado, igualmente desconfio de como pude não ser assassinada enquanto fugia, visto que, não há como negar, aquele homem sombrio e sem face possuía um poder diabólico que, sob uma impiedosa habilidade, me desolaria em segundos. Ainda assim, eu fugi... e desde então, tudo se fez reminiscências de um pesadelo. Mantenho o colar de Gahsper dentro de minha Bíblia e, no baú, a adaga de quartzo negro. Não compreendo, não vejo lógica ou explicação que possa elucidar o horror que vivi, por mais que eu tente pensar — e aqui escrevi com esse intuito —, parece que quanto mais insisto, mais distante de uma resolução eu me encontro. Eu continuo sem compreender... talvez seja, realmente, melhor assim. 

Texto publicado na 6ª edição de publicações do Castelo Drácula. Datado de junho de 2024. → Ler edição completa

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Sara Melissa de Azevedo

Diga-me, apreciaste esta obra? Conta-me nos comentários abaixo ou escreva-me, será fascinante poder saber mais detalhes da tua apreciação. Eu criei esta obra com profundo e inestimável amor, portanto, obrigada por valorizá-la com tua leitura atenta e inestimável. Meu nome é Sara Melissa de Azevedo. Sou Escritora, Poetisa e Sonurista. Formada em Psicologia Fenomenológica-Existencial. Sou a Anfitriã dos projetos literários Castelo Drácula e Lasciven. Autora dos livros “Sete Abismos” e “Sonetos Múrmuros”. SAIBA MAIS

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