Velório penumbral

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Diário de Sibila von Lichenstein
08 de outubro de 1870

Faz alguns dias que tive um sonho com Marcos, a criatura de Frankenstein. Tenho me sentido só neste castelo imenso. Ao circular por aí, tenho visto outros habitantes, mas a minha vida ensinou-me que o perigo espreita em cada esquina, com a morte logo atrás. Por isso, escolhi não conversar com ninguém, preferindo apenas os observar à distância. Claro que, com o passar dos dias, já me sinto mais habituada a esta nova morada; porém, ainda não faço ideia do propósito de minha chegada aqui. 

Explorei os incontáveis cômodos, perdendo-me na sucessão interminável de salas. O único local que tenho mais facilidade para encontrar é a biblioteca. Tenho lido os volumes que estão na minha língua natal; acho que faço isso porque sinto falta da Universidade, embora ela me lembre muito minha amiga Eleanor. 

Hoje, no entanto, o castelo parecia diferente, como se carregasse um peso invisível que refletia o meu próprio. Algo no ar estava mais denso, os detalhes familiares pareciam ter adquirido contornos mais sombrios, e um sutil arrepio percorria minha pele. O corredor que me levava à biblioteca estava mais longo, vazio, e as paredes pareciam estreitar-se à medida que eu caminhava.  

Desde a época que residi com Viktor, habituei-me à solidão. Mas ao perceber que as paredes pareciam vivas ao estreitar-se, desejei ardentemente que alguém aparecesse ou que a porta da biblioteca aparecesse logo para me tirar daquela espiral opressora, sabia que os livros poderiam guiar os meus pensamentos por outros caminhos, quem sabe até o campo verdejante onde encontrei Marcos. Comecei a sentir um cheiro peculiar de velas acesas. Avançava devagar, os passos ecoando como um sussurro de algo vivo, algo que espreitava nas sombras. O tecido de minhas vestes roçava contra minha pele, áspero, pesado. Não era o vestido de sempre; havia algo de errado. A sensação de que algo estava fora de esquadro fez meu peito oprimir-se, dando-me a impressão de que havia um peso enorme sobre ele, dificultando minha respiração.  

Um pensamento intrusivo fez-se presente: "Deus, sendo justo, permitiria que eu escapasse impune do que fiz?". Eu sabia que esse tipo de pensamento sempre me atormentaria, desde que comecei a residir com o Viktor, mas agora eles fervilhavam meus miolos, como se os apodrecesse de dentro para fora. 

Parei no meio do corredor. Decidi olhar para as mangas de meu vestido, percebi que não era mais o meu costumeiro vestido azul royal, e sim um confeccionado de um tecido negro, áspero e pesado. Tão pesado quanto a culpa que eu carregava pelas mortes de todas as mulheres que eu permiti acontecerem. Olhei para a minha longa saia e ela também abandonara o azul intenso para aderir ao escuro vazio e pesado. Assustada, levei a mão ao rosto. Só então, percebi que elas estavam calçadas com luvas de uma delicada renda negra que continha ricos desenhos de rosas também negras. Meus dedos encontraram um véu — fino, escuro como a noite sem estrelas, um que as beatas costumam usar para cobrir a cabeça em velórios. Era como se o véu não apenas cobrisse meu rosto, mas também todo o meu ser, um símbolo opressivo de luto e culpa que parecia pesar sobre minha alma. Lentamente, dei-me conta do que trajava: o vestido de uma viúva ou carpideira. Quando havia vestido aquilo? 

Continuei a caminhar pelo corredor, esgueirando-me, raspando e rasgando minhas vestes pelas paredes estreitadas, até que consegui escapar, estava dentro do salão da grande biblioteca. Eu reconheci o lugar porque já visitara a biblioteca algumas vezes. Mas, assim como o corredor, ela também estava diferente. As janelas longilíneas, adornadas com longas cortinas magenta, permitiam que a luz da lua adentrasse e iluminasse o cômodo.  

Nenhum som se propagava, de modo que apenas os meus passos podiam ser ouvidos, quebrando a quietude do ambiente. O cheiro de velas queimando persistia e estava muito mais pronunciado. Logo vi o porquê: vários castiçais de ouro estavam espalhados pelo ambiente. Junto ao cheiro de cera derretida, outros misturavam-se, era novamente o de lavandas, mas também de outras flores, erguendo o olhar pude perceber que além dos castiçais, arranjos de flores enormes e circulares adornavam o ambiente. Além das lavandas, provavelmente colhidas nos jardins do Castelo, grandes rosas negras conferiam morbidez e robustez às coroas de flores.  

Eu sabia que estava na biblioteca, mas as pesadas estantes de carvalho que abrigavam os livros — pelos quais eu tanto ansiava, para aliviar a minha mente do seu pesado fardo — não estavam mais lá. Em seu lugar, uma fileira de caixões. Todos estavam fechados, com exceção de um central, cuja tampa repousava em pé, apoiada ao lado e no próprio caixão. Ao me dar conta que eu estava em um velório, e que um dos cheiros que eu sentia misturado às velas e às flores era o de corpos em decomposição, senti o sangue abandonar a minha face. Tive ânsia de vômito, vontade de correr para fora, mas ao me virar notei que o cômodo não tinha porta, apenas janelas e as tão conhecidas paredes frias de pedra. O caixão central, apesar de exercer horror, ambiguamente me atraía, eu precisava saber quem repousava ali. 

Privada de outra escolha, comecei a caminhar em direção a ele, no corredor central que os outros caixões formavam. Não ousei olhar para os lados, mas minha visão periférica notou que uma espécie de líquido negro e viscoso estava sendo vertido de dentro deles e escorria pelo chão, em grandes quantidades. O corredor era longo, ou o fio do tempo se esticava? Parecia que, quanto mais eu caminhava, mais longe o caixão central estava. Demorei tanto a alcançá-lo que o líquido negro escorrera pelo chão da biblioteca, molhando a barra do meu vestido e tornando-o mais pesado ainda. 

Quando finalmente alcancei o caixão central, algo em meu peito se apertou, como se uma força invisível me impedisse de avançar, como se ao redor de meu coração uma mão o esmagasse e o liquefizesse. O líquido negro ainda escorria pelas paredes, pelas pedras do chão, mas minha atenção estava fixada na madeira escura, polida, que repousava diante de mim. Joguei a tampa do caixão com toda a minha força no chão. Ali, dentro do caixão, repousava ela. 

Eleanor. Primeira vítima que atraí para as garras de Frankenstein. 

Meu corpo tremia, mas não conseguia desviar o olhar. O silêncio da biblioteca, antes pesado e opressor, agora parecia ensurdecedor, preenchido apenas pelo som de minha respiração, profunda e apressada. O cheiro das flores e das velas se mesclava ao ar denso e pesado de morte. Uma única lágrima escorreu pela minha face, tão fria e solitária quanto eu me sentia. A conversa que tive com Marcos, embora eu soubesse que fora apenas um sonho, me ajudara a lidar com a culpa que eu sentia, me ajudara a teimar em continuar a minha vida. Mas a visão de Eleanor, naquele estado, no caixão, perturbou-me sobremaneira. Martirizei-me, morta por minha culpa, porque eu a atraí para o covil do lobo. Eu simplesmente não suportei olhar para seus cabelos dourados e seu rosto pálido, e debrucei-me sobre seu corpo, finalmente dando vazão à torrente de sentimentos através das lágrimas que brotaram cada vez mais. 

Fiquei alguns segundos imóvel ao perceber que o peito dela se movia fracamente para cima e para baixo. Um calafrio percorreu minha espinha quando, ao mirar seu rosto, vi seus olhos abrirem-se lentamente. Ao invés do azul da cor do mar, estavam putrefatos, tomados por vermes. Seus lábios se entreabriram, ela girou o rosto inesperadamente, com um movimento inumano, escutei o som dos ossos de sua nuca rangendo, então ouvi ela dizer, porém seus lábios não se mexeram: 

— Você me trouxe até aqui, Sibila! Você me fez fazer parte do seu pesadelo, agora pague o preço! 

— Perdoe-me, minha querida. Eu não sabia que Viktor faria o que fez com você. Sinto muito, por favor, me perdoe. 

— Eu não posso te perdoar, pois não existo. O perdão reside muito mais no interior de cada um que o almeja do que qualquer outra coisa. 

— Como assim, Eleanor? Por favor, eu lhe rogo, tire o peso que está sobre meus ombros! Não posso mais continuar a viver com essa dor que me aflige dia após dia, hora após hora. 

— Você quer se livrar da dor, Sibila? — A voz de Eleanor soou fria, quase etérea, como se ela não fosse mais de carne, mas de um espírito vago e inatingível. — A dor que você sente é um reflexo daquilo que você fez, da sua escolha de me arrastar para aquele inferno. Não há redenção para quem se recusa a ver a própria culpa. 

Ela se inclinou ligeiramente para frente, seus olhos agora completamente tomados por uma podridão viscosa, seus lábios se curvando em um sorriso grotesco. 

— Como pode dizer que não enxergo a minha própria culpa? Não há um dia sequer em que eu não pense no que fiz a você e a elas. Por favor, me perdoe. Sinto muito. Por isso que Viktor não vive mais entre nós; eu dei um fim a ele, nem seu corpo fiz questão de esconder ou enterrar, tamanho o asco que sentia daquele velho. Eu confiei nele, Eleanor, assim como você confiou em mim. Nós duas somos vítimas dele. 

— Nós duas? Olhe pra mim, eu sou apenas uma casca sem vida, sendo devorada por vermes. Antes de me matar, ele violou o meu corpo, várias vezes! Ele me amarrou e me vendou, injetou diversas substâncias psicotrópicas em mim. Passei dias e mais dias com frio, fome e fora da realidade. Você acha que matar Viktor apagará isso? — A risada de Eleanor soou vazia, ecoando nas paredes da biblioteca. — Não, Sibila, não é assim que a culpa desaparece. Não é o corpo dele que nos persegue, mas sim o que ele deixou em nós, nas escolhas que fizemos. 

— Eu não sabia...! Eu preciso, Eleanor, preciso do seu perdão e o de todas elas. Onde está sua compaixão? — Agarrei seus ombros e a chacoalhei dentro do caixão. 

Suas feições se tornaram mais horrendas e ameaçadoras: 

— Onde está a minha compaixão? Não existe redenção, Sibila. Não enquanto o veneno do que você fez correr em suas veias. Você não pode apagar o que já está marcado em sua alma. O perdão é uma ilusão que você criou para tentar se livrar da sua culpa, mas ela não desaparecerá. Não se você continuar se escondendo nela. 

Ouvi o terrível som de seus ossos se movimentando, suas mãos agarraram o meu pescoço. Tentei falar, insistir no tão almejado perdão, mas ela tinha uma força sobre-humana.    

— Eu te trouxe até aqui, você sabe disso. Eu sou a dor que você cria quando se recusa a encarar sua responsabilidade. E agora... — Eleanor inclinou-se ainda mais para frente. — Agora você vai entender o que significa pagar o preço. 

Senti as suas unhas gélidas cortarem a minha carne, afundarem no meu pescoço, enquanto ela rapidamente apertava suas mãos ao redor da minha garganta. O ar começou a faltar, e a pressão em meu peito me fez lutar por um suspiro. Tentei resistir, mas a visão turvou-se, como se eu estivesse mergulhando num poço profundo e sem fundo, engolida por aquele líquido negro e viscoso, o qual invadia meus pulmões e lentamente me atraía para o além-vida. Não consegui enxergar mais nada, mas senti... 

“O que é isso?” O que senti foram pelos roçando meu nariz, algo macio, mas úmido, como se estivesse me tocando suavemente. 
— Acorde, Sibila! Acooorde... 

Fixei-me na voz que tentava me despertar. Meus sentidos foram voltando aos poucos, e ousei abrir os olhos. O que vi foi um gato negro, ronronando e deitado sobre o meu peito. Eu já o vira zanzando pelo castelo anteriormente. 
“Mas quem falou comigo? Como esse gato entrou no quarto?” 

— Acorde, Sibila! Para o seu bem... 

— Eu não acordei? 

— Não, você está entreplanos. Prazer, me chamo Meia-Noite. 
— Um gato? Eu devo ter morrido mesmo. Gatos não falam. 
— Já disse, você está entreplanos. Se estivesse morta, eu nem poderia estar falando com você, já que o deus que governa o mundo da morte é Tânatos. E, só para sua informação, eu não sou apenas um gato; sou um Nocturvo. 

— Um Nocturvo? 

— Para encurtar a conversa, porque eu sei que você, dado o seu espanto, fará várias perguntas: Nocturvos são guardiões ou guias de pesadelos. Eu, para ser mais exato, resgato pessoas de seus pesadelos antes que morram. Em Somníria, o plano no qual estamos, os pesadelos ganham forma e poder. Quando alguém não está preparado para enfrentar seus próprios pesadelos, eu as resgato segundos antes da morte onírica, salvando-as de consequências irreversíveis. 

Eu ia responder Meia-noite, mas ele não me deu a chance. Arranhou o meu rosto e no mesmo instante acordei. Levantei-me em busca de água e, ao mirar o meu reflexo no espelho, pude ver hematomas ao redor do meu pescoço. 

Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. Ler edição completa

Leia mais em “As Crônicas do Castelo Drácula”:

Anterior
Anterior

Onde as Névoas se Rompem

Próximo
Próximo

Castelo Vampírico: Todo aquele que pede recebe; o que busca encontra; e, àquele que bate, a porta será aberta.