Castelo Vampírico: Todo aquele que pede recebe; o que busca encontra; e, àquele que bate, a porta será aberta.

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Diário de Rute Fasano

07 de Janeiro? - Fiquei paralisada ao vê-la, olhar para dentro dos seus olhos era como se perder em uma reflexão profunda, olhar para o mar a noite e sentir a sensação de paz, solitude e uma pitada de desamparo. Encarar de seus olhos me fazia sentir leves vertigens e uma profunda sensação de olhar para dentro de si e não encontrar respostas. Ela não me faria mal, isso me tranquilizava, o professor Monm já havia me dito que ela não faria, mas o que fazer agora? Afastei-me dela, ela também se afastou ficando encolhida no canto do quarto, como se estivesse perturbada. Sua voz, que eram muitas, ficavam falando uma por cima da outra como se alguém estivesse mexendo em um rádio procurando a estação certa. Imitava as vozes de Hadassa, a minha, a do homem que estava em meus sonhos e a do professor Monm. Era como se seu sistema tivesse entrado em curto e ela, em pânico, repetisse e repetisse tudo o que ouviu nos meus sonhos. Suas vozes não estavam mais dentro da minha mente, elas estavam saindo de sua boca, como um lamento, um choramingo estridente, a criatura parecia estar em pânico.

Ela estava tremendo e junto com as vozes emitia uma mistura de gemidos e sussurros estranhos que eu não conseguia compreender. Minha mente estava tão confusa por conta do pesadelo e desse despertar abrupto, que eu não sabia como reagir direito àquela situação. Aquela criatura parecia, de algum modo, ter sintonizado meus pesadelos e talvez isso explicasse seu pânico. Ela estava encolhida num canto, um emaranhado desajeitado se apertando na parede como se quisesse desaparecer. Meu primeiro pensamento foi fugir, mas algo em mim me impediu, acho que era curiosidade, eu não sabia o que fazer, o quarto parecia cada vez mais frio, eu não sabia se era o medo ou a criatura que estava provocando isso. Sem pensar demais, peguei uma coberta e joguei sobre ela, na hora os tremores da criatura pararam e o som que ela fazia foi se tornando um pouco mais baixo, mas ainda não era suficiente, minha presença no quarto parecia piorar a situação. Decidi correr para o professor Monm, talvez ele pudesse me ajudar, ele prometeu que viria hoje, eu apenas o faria vir mais cedo. O encontrei na biblioteca e expliquei a situação e minha voz oscilava entre o desespero e a urgência.

— Ela não me fez mal como você disse que não faria —  falei com pressa —  mas parece estar com medo e eu não sei o que fazer.

Ele não demonstrou surpresa, como se um evento como aquele fizesse parte de sua rotina. Pegou uns instrumentos estranhos dentro de um armário na biblioteca, uma lanterna, uma pequena ampola com um líquido âmbar e um caderno com capa de couro, e caminhamos juntos até o quarto. A criatura ainda estava lá coberta e agora parecia menos tensa, não tinha saído do lugar, nem se mexido. O professor se aproximou com cautela, a examinando com um olhar analítico. Se abaixou, se ajoelhando perto dela.

 — Interessante — ele murmurou, levantou devagar a coberta, passando a lanterna, que possuía uma luz azulada, pelo corpo encurvado da criatura. A luz azul revelou cicatrizes e marcas que pareciam runas que pulsavam de leve, utilizou um instrumento em formato de “y” que parecia com um diapasão na cor de bronze com uma pequena pedra lilás no seu centro, ele tocou o diapasão com um outro objeto que parecia uma haste com uma bola na ponta, fiquei a espera de um som que não veio, mas a criatura pareceu vibrar de leve, depois ele colocou a ampola próxima ao rosto da criatura e um cheiro forte e adocicado, que me lembrava frutas vermelhas, se espalhou pelo quarto, e a criatura ergueu a cabeça. Seus olhos encontraram os meus e eu senti uma onda de emoção que não era minha; medo, gratidão, confusão? Eu não sabia ao certo a emoção exata.

— Ela se ligou a você — disse o professor, com um tom de fascínio. —  De algum modo captou algo dentro de você. — Ele pegou o caderno de couro, abriu tirando um lápis do meio dele e fez algumas anotações, após isso se levantou e disse. —  Preciso investigar isso, ela ficara aqui por enquanto, não irei tocá-la até ter certeza, e te recomendo o mesmo.

Passei o resto da manhã mantendo distância, sem perturbar, mas sem tirá-la de vista. O professor prometeu voltar mais tarde trazendo mais respostas, mas eu só conseguia pensar que cada resposta traria consigo mais perguntas e agora só me restava esperar. A noite chegou mais depressa do que eu esperava. Durante o dia, enquanto eu olhava a criatura, me lembrei de algo que eu havia protelado demais: o livro que eu tinha que abrir. Aquela criatura talvez estivesse conectada ao livro, eu trouxe o livro e o livro a trouxe aqui. Eu senti que o livro era perigoso desde o momento que o vi, mas a ideia de trazer Hadassa de volta parecia mais forte ao pensar nele e eu não conseguia evitar esse pensamento, sentia medo de continuar com a ideia mesmo que eu necessitasse muito colocar ela em prática. Esperei o professor voltar, e meio hesitante, decidi contar tudo sobre o livro e o que eu planejava fazer, carregar isso comigo parecia me sufocar, pois no fundo eu sabia que, se algo desse errado, eu precisaria de ajuda. Ele ouviu tudo em silêncio, com um pesar visível em seu olhar. Assim que terminei, esperei que ele fosse me repreender ou me convencer a desistir desse plano maluco, mas ele apenas suspirou.

— Eu entendo, Rute. — ele disse com sua voz calma e firme. — Entendo, talvez até mais do que você imagina, o que é querer trazer alguém de volta. E eu não vou repreendê-la e muito menos te impedir, mas você precisa entender algo, você chegou até aqui porque o castelo permitiu, encontrou o livro porque ele quis que você encontrasse. Tudo o que aconteceu foi uma combinação das suas escolhas e a permissão e vontade desse lugar. — Ele fez uma pausa, como se escolhesse com cuidado as palavras. —  A partir daqui, qualquer coisa que vier será responsabilidade sua, o castelo te ofereceu todas as ferramentas, e você as aceitou, agora cabe a você decidir o que fazer com elas, mas recomendo cautela e muita reflexão, nada que este lugar oferece vem sem um preço.

Sua honestidade me desarmou, depois de ter dito o bastante para me fazer refletir muito antes de dormir, ele foi direto ao assunto em relação a criatura e suas pesquisas.

— Não precisei ir fundo demais em minhas pesquisas, como eu já suspeitava, essa criatura já foi um hóspede do castelo em algum momento, aquele local ao qual você me disse que encontrou o livro talvez fosse seu laboratório. Não posso confirmar com exatidão sua identidade, já que muitos fizeram uso daquele laboratório, só podemos esperar que ela se lembre de quem é. Eu a deixarei aqui com você, tenho outras coisas para resolver no momento, mas não deixe de me procurar se precisar de ajuda, mas acredito que ela não lhe causará problemas.

O professor Monm se foi e deixou a criatura ali, fiquei a olhar por alguns instantes e só conseguia pensar em como neste castelo nada nunca é simples, nem as escolhas e muito menos suas consequências. Os pensamentos me tomaram, as palavras do professor pesavam na minha mente, eu tinha revelado para ele meu plano maluco e agora eu precisava revelar à Ameritt. Era uma necessidade, depois dela ser tão boa comigo, sempre me ouvir e ser uma boa companhia, eu precisava confessar a ela tudo o que eu vinha omitindo em nossas conversas. Fui para o jardim e ela não estava lá, então tomei coragem e fui à casa de Ameritt, pelo menos eu imagino que seja dela, afastada do castelo bem aos fundos do jardim. Andei até os degraus de pedra, observando os musgos e rosa-trepadeiras na fachada da casa também de pedra. Subi os degraus e fui até a porta e me preparei para bater, ainda hesitante. Então aquele incômodo, que não sei explicar, se iniciou dentro de mim, aquele de quando acho que estou incomodando alguém. Bati uma vez e, antes que eu batesse uma segunda vez, a porta se abriu e Ameritt com um sorriso gentil me recebeu.

— Rute-besin, sabia que um dia você apareceria na minha porta. Vamos, entre, não fique aí parada, ou os besouros vão começar a cochichar sobre você.  — ela riu baixinho.

Não conseguia não parar de olhar para os pés, eu estava envergonhada e odiava esse sentimento, Ameritt era uma pessoa agradável e eu já tinha criado um certo vínculo com ela, me sentir tímida na sua presença me irritava, talvez o que eu tinha para contar a ela fosse o motivo da minha vergonha.

— Eu…eu espero que não esteja incomodando, eu só achei que deveria vir. — Falei com voz baixa.

— Incomodando? Oras, Rute-besin, você acha mesmo que me incomoda receber visitas? Esses degraus aqui — ela apontou para os degraus desgastados — Já carregaram bem mais peso do que esses seus passos hesitantes.

— Eu não sei por que demorei tanto para vir te visitar, mesmo suspeitando que essa casa era a sua, preferia sempre te esperar aparecer no jardim. Não é nada pessoal, entende? É só que eu às vezes acho que posso incomodar entrando no espaço pessoal de alguém.

— Ah, bobagem, a natureza nunca se incomoda com visitas, se o visitante vem em paz. Tudo encontra seu espaço no tempo certo e hoje é o seu tempo. — ela tocou meu braço de leve me conduzindo a entrar na sua casa.

Entrei olhando ao redor da casa, fascinada com aquele lugar que era tão Ameritt quanto possível. No interior da casa tudo parecia acolhedor como ela, a temperatura era morna, com um calor que vinha da lareira de pedra da sala de estar, decorada com vasos de flores e ervas. O cheiro era uma mistura de ervas, terra úmida e um odor amadeirado sutil. Talvez vindo da sopa que Ameritt sempre preparava. As paredes da sala eram cheias de estantes de madeira escura com alguns poucos frascos etiquetados com um caligrafia cuidadosa: “Óleo de lavanda”, “Besouro Agrilus triturado”, “Óleo de jasmim”, “Funghi seco” e outros que não conseguia enxergar a etiqueta. Havia livros antigos com lombadas desbotadas, herbologia, botânica, entomologia, fitoterapia, enciclopédia das ervas mágicas, muitos livros relacionados a plantas, insetos, fungos e magia. O teto da casa era baixo, sustentado por vigas de madeira grossa de onde estavam suspensos vasos de plantas, como samambaias, jiboia, peperomia e lambari roxo, em alguns cantos, no chão, havia mais plantas, espadas de São Jorge, comigo-ninguém-pode, cactos e outras tantas plantas que eu não conseguia identificar. O chão era de pedra, coberto por tapetes antigos, mas que ainda mantinham suas cores vibrantes. Amortecia os passos e parecia ter uma textura agradável para pisar descalço. Espalhados pela casa, havia móveis antigos de uma madeira bem escura: duas poltronas de veludo verde-musgo com almofadas estampadas de flores, uma mesa baixa de centro e, à frente, um sofá de três lugares, também verde-musgo, com almofadas florais combinando.

— É bonito aqui, tem cheiro de ervas e terra molhada. — respirei profundamente para conseguir guardar o cheiro daquele lar em minha memória.

— Claro que tem — ela disse rindo — Essa casa é teimosa como eu, está sempre cheirando à vida, mesmo que seja a uma vida peculiar. Agora sente naquela poltrona, eu vou preparar um chá e não adianta dizer que não quer, porque a água já está no fogo.

— Você é boa nisso, não é? Em fazer as pessoas se sentirem bem. — A pergunta saiu dos meus lábios sem motivo.

— Não sei te dizer se é talento ou prática que vem com a idade, passo tanto tempo conversando e cuidando de plantas e besouros que, quando aparece uma pessoa, parece fácil. — Ela sorriu para mim e logo saiu para pegar o chá.

Um besouro verde-esmeralda estava parado na mesa de centro me fazendo companhia enquanto Ameritt estava fazendo o chá. A casa parecia exalar segurança, conforto, mistério, algo nos seus objetos, seu cheiro, seus habitantes, pareciam querer contar uma boa história, algo que talvez Ameritt um dia estivesse disposta a compartilhar. Após alguns minutos, ela voltou com uma bandeja com chás e biscoitos, deixou na mesinha à nossa frente e se sentou.

— Pois bem, enquanto toma seu chá, me diga, o que a trouxe até aqui? Problemas para dormir? Tédio? Ou um besouro sussurrando em seu ouvido que era hora? Ou só queria me ver mesmo? — ela riu e tomou um gole de chá.

— Talvez um pouco de cada e uma confissão a fazer, algo que eu não sabia como dizer. — Segurei a xícara com as duas mãos sentindo o cheiro e o vapor do chá.

— Ah, não precisa dizer nada se não quiser, só aparecer aqui é o bastante. Agora tome o chá e não se preocupe com nada. Aliás, você não é um incômodo aqui, é uma visita esperada e sempre bem-vinda.

Respirei fundo, tomei um gole de chá, coloquei a xícara sobre a mesa e despejei nela a minha confissão, toda a verdade sobre o livro, sobre meu plano maluco de trazer Hadassa de volta, sobre a criatura que talvez tenha sido atraída pelo livro. Falei como me sentia culpada de não ter revelado tudo para ela antes, depois de ela ter sido boa comigo. Ela me ouviu em silêncio e, quando terminei, foi minha vez de ficar em silêncio e esperar sua reação, mas tudo o que ela fez foi sorrir de leve e segurar minhas mãos nas suas.

 — Oh, Rute-besin, já vi tantas coisas terríveis sendo feitas nesse castelo e também coisas boas. — sua voz estava tranquila — O que está planejando fazer, seja bom ou mal, não me surpreende, mas ouça bem, pense muito antes de agir. E qualquer que seja sua decisão, não hesite em me procurar para pedir ajuda.

As palavras de Ameritt sempre me trazem conforto. Junto com seus chás de ervas e, agora, o aroma acolhedor de sua casa, pela primeira vez me fizeram sentir que eu não precisava justificar minhas escolhas ou o motivo de estar ali. Senti alívio, mas também fiquei mais ciente do peso que minhas decisões teriam a partir de agora. Aproveitei para pedir que Ameritt ajudasse a criatura, que ainda parecia assustada, e pedi um de seus chás calmantes ou algo que pudesse ajudar. Ela concordou e insistiu em levar o chá à criatura. Então, me pediu que fosse para o quarto, prometendo que, após preparar o chá, logo viria.

Voltei para o quarto, sentei-me e fiquei observando a criatura, que ainda tremia levemente, enquanto esperava Ameritt. Quando ela chegou, a reação da criatura foi imediata. Ao vê-la, a criatura se acalmou, como se a reconhecesse. Ameritt se sentou ao lado dela, oferecendo o chá com todo cuidado. Murmurava palavras que eu não conseguia entender, o que só aumentava minha curiosidade. A criatura, que antes me causava desconforto, agora parecia vulnerável. Quando Ameritt foi embora, ela permaneceu imóvel, com o olhar fixo em algo debaixo da cama, como se visse algo que eu não podia enxergar. Não sentia mais medo, apenas curiosidade. Ao observá-la, não pude evitar compará-la a um animal abandonado que sofreu nas ruas ou a uma espécie rara e ainda não catalogada. No entanto, logo me esforcei para afastar esses pensamentos. Ela era mais do que isso. E, com o pouco conhecimento que eu tinha, sabia que não poderia compreender o que ela realmente era.

Decidi sair para espairecer e dar à criatura um pouco mais de tempo sozinha.

Caminhei pelos jardins do castelo por horas, sentindo o cheiro das flores, o vento sobre a minha pele, o silêncio. Apesar de tudo, a presença do castelo era constante, eu o senti me observar, à espera do meu próximo passo. Pensar nele como algo consciente não era mais absurdo, talvez ele sentisse que assim que eu voltasse ao quarto, a decisão que eu vinha adiando por tempo demais estaria tomada: era hora de abrir o livro, eu já havia protelado demais, pensado demais, temido demais. Eu não tinha mais o que perder, pois o que mais me importava já tinha sido perdido e eu agora só estava tentando recuperar. Ao retornar ao quarto, encontrei o espaço onde a criatura estava, vazio, ela não estava mais lá, apenas a coberta jogada no canto. Meu coração começou a acelerar, o professor pediu que eu ficasse de olho nela, e agora ela não estava mais aqui. Ouvi um som sutil vindo debaixo da cama, abaixei bem devagar e a encontrei lá, deitada, segurando pedaços de um velho lampião. Reconheci o objeto de imediato, era o mesmo que usei para atacar o monstro que me feriu no antebraço. A criatura estava concentrada juntando pedaço por pedaço do lampião quebrado.

Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. Ler edição completa

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