Velian: Incertezas nas Sombras
A noite pairava densa sobre Fortaleza, as luzes artificiais competindo com o brilho distante das estrelas. Velian, em sua forma mais recente, caminhava pelas ruas do centro da cidade, envolto em um manto de mistério. A brisa morna trazia o cheiro salgado do oceano, e as vozes vibrantes da cidade o cercavam como ecos distantes. Ele talvez ainda apreciasse o contraste que Fortaleza oferecia, uma cidade viva, que pulsava com o calor e o caos da vida humana, quando não estava em seus momentos mais tristes.
A noite em Fortaleza parecia eterna, como se o tempo estivesse suspenso naquele instante. Velian, com seus olhos penetrantes, observava a vastidão do mar à sua frente. A vida moderna ao redor pulsava, mas ele, um ser de 700 anos, sentia-se desconectado da realidade que o cercava. Tudo era efêmero, passageiro. O mundo humano mudava constantemente, mas ele, imortal, permanecia preso ao mesmo ciclo de busca, prazer e tédio. Aquele sentimento de desconexão o acompanhava há séculos, e agora, mais do que nunca, pesava em seus ombros.
Há séculos, ele conhecera o esplendor da Europa, o frio das catedrais góticas e o peso da história que as cidades do Velho Mundo carregavam. Agora, Velian encontrava refúgio nas metrópoles brasileiras, especialmente no Nordeste, onde as tradições locais e as lendas populares coabitavam com a modernidade. Fortaleza, em particular, lhe chamava a atenção; a cidade vibrava com uma energia que ele não encontrava mais na Europa, um fervor quase primordial.
Em sua identidade fluida, Velian havia adotado o codinome Serpente, uma figura andrógina que desliza entre as sombras, observando e manipulando aqueles ao seu redor. Naquela noite, no entanto, algo diferente estava no ar. Havia uma tensão que ele não conseguia ignorar — um chamado silencioso que se infiltrava em seus pensamentos.
Velian parou na orla da Praia de Iracema, sentindo a maresia misturada com um estranho frio que não condizia com o clima tropical. Era como se o tempo estivesse se dobrando sobre si mesmo, e o ar ao seu redor começava a mudar. Sua mente, sempre afiada, começou a perder o foco. Ele piscou, e a cidade ao seu redor parecia desvanecer, como se estivesse sendo puxado para outro lugar, outra dimensão. Antes que pudesse reagir, o mundo se fragmentou.
Quando abriu os olhos novamente, Fortaleza havia desaparecido. Velian se encontrava agora em um lugar que não reconhecia — um vasto salão de pedra escura e fria. O silêncio era opressor, e as paredes ao seu redor exalavam uma energia ancestral. Ele não precisava de explicações. Estava no Castelo Drácula, um lugar que há muito tempo era apenas uma lenda entre os seres imortais e que Velian não tinha certeza que existia, mas naquele momento pode ver sua certeza se concretizar.
Seus olhos, ajustando-se à escuridão densa, observavam o ambiente ao seu redor. O castelo era imenso, atemporal. As paredes não pareciam seguir as leis naturais do espaço ou do tempo; ele percebia a arquitetura mudar à medida que avançava, como se o lugar estivesse vivo, se moldando à presença dele.
Velian não sabia como havia chegado ali. Não era comum que seres como ele fossem convocados para aquele tipo de lugar sem uma razão. O castelo era mais do que pedra e sombras — ele vibrava com um poder incomensurável. Sentiu em seu peito um peso desconhecido, como se uma força oculta o estivesse observando, medindo suas intenções e sua essência.
Enquanto explorava o salão principal, começou a sentir as presenças ao seu redor. O castelo não estava vazio. Havia outros seres, entidades poderosas que ocupavam aquele lugar. Velian, sempre acostumado a ser o predador, agora se via em um território onde não sabia quem era o caçador e quem era a presa.
Então, duas presenças se destacaram, emergindo do fundo do castelo, como correntes de energia antigas e primordiais. A primeira, uma força esmagadora, era forte, rígida, carregando a essência do que se convencionara chamar de masculino — uma energia que dominava, que destruía e conquistava. A segunda, uma presença fluida e envolvente, exalava o que os humanos nomearam de feminino — algo mais complexo, que atraía e moldava o que tocava, adaptando-se às circunstâncias, mas igualmente devastador em sua força.
Velian, com sua identidade fluida, sentia ambas as energias em si, como reflexos de sua própria natureza. Ele oscilava entre essas forças, reconhecendo em cada uma delas um aspecto de si mesmo. Não era nem puramente um nem o outro, e o castelo parecia amplificar essa ambiguidade, deixando-o mais consciente de sua própria dualidade.
Mas o mistério maior permanecia: Por que estava ali? Qual era o propósito dessa jornada? Ele não tinha respostas, apenas mais perguntas. O castelo o havia atraído para algum fim, mas qual?
Enquanto se movia pelos corredores sombrios, sua mente tentava compreender o que o castelo representava. Era um teste? Uma advertência? Ou algo mais? Talvez as forças que residiam ali estivessem tentando lhe dizer algo sobre sua própria imortalidade, sobre o peso de existir por séculos, sem nunca encontrar uma verdadeira direção.
Mas, assim como chegara, o momento passou. Num piscar de olhos, o castelo começou a desvanecer, e Velian, sem aviso, foi puxado de volta para o mundo real. Ele estava novamente em Fortaleza, de pé na mesma praia onde tudo começara, o som das ondas voltando aos seus ouvidos.
Agora, porém, ele sabia que algo profundo havia mudado. O Castelo Drácula o havia tocado, e as forças que ele sentiu lá ainda reverberavam em sua mente. Ele se perguntava quais poderes o haviam levado até lá e o que isso significava para o futuro. Algo estava por vir, e o castelo, com seus mistérios e presenças antigas, continuava a assombrar seus pensamentos.
De volta à Fortaleza, Velian abriu os olhos de repente, respirando o ar quente e úmido da noite tropical. O som das ondas quebrando contra a praia distante parecia distante, como se estivesse acontecendo em outra realidade. A cidade ainda se movia lentamente sob as luzes urbanas, mas algo dentro dele havia mudado. O contraste entre a vivacidade da vida humana ao seu redor e a atmosfera gótica e densa do Castelo Drácula era quase insuportável.
Ele se sentou, ainda processando o que havia acabado de acontecer. O tempo no castelo fora nebuloso, quase como um sonho, mas cada detalhe permanecia vívido em sua mente. As paredes vivas, os corredores que se moviam, as presenças poderosas que ele sentiu, tudo se misturava, formando um quebra-cabeça que ele não conseguia montar. Por que ele tinha sido levado até lá? O que o castelo queria dele?
Velian sabia que o Castelo Drácula não era um lugar comum. Muito mais do que uma construção, era uma entidade — ou talvez uma manifestação das energias que existiam entre o tempo e o espaço. Ele podia sentir como o local o testava, o observava, desafiando sua compreensão e sua própria identidade. Mas qual era o propósito de tudo aquilo?
Ele recordava as duas forças predominantes que haviam permeado o castelo: a força brutal, impetuosa, que evocava tudo o que os humanos chamavam de masculino, e a força sedutora, envolvente, associada ao feminino. Em seu estado fluido, Velian sempre dançara entre essas energias, absorvendo ambas, rejeitando rótulos e limites. Mas ali, no castelo, parecia que essas forças o cercavam e pressionavam, como se tentassem a desestabilizá-lo das harmonias dessas duas forças que estavam harmônicas a muito em seu interior.
O peso dessa experiência começou a se insinuar profundamente em sua mente. Seriam essas forças personificações de algo maior? O castelo era um espelho das dicotomias que ele sempre evitara? Velian, que passara séculos se moldando de acordo com suas próprias regras, sem se submeter a convenções de gênero, de identidade ou mesmo de poder, agora se via questionando tudo o que acreditava. O castelo havia despertado nele algo que ele não sabia que existia: uma dúvida persistente.
E se o castelo fosse uma forma de confrontá-lo com escolhas que ele sempre evitara?
A fluidez que ele sempre abraçara agora parecia ameaçada por essas forças antigas e poderosas. Talvez aquele lugar fosse um campo de batalha onde essas energias opostas se encontravam, e ele, por algum motivo, fora arrastado para o meio disso.
De volta à sua realidade tropical, Velian olhava para a vastidão do mar de Fortaleza, mas sua mente permanecia presa no castelo. Como ele havia chegado até lá? E por que havia sido trazido de volta? Ele sentia que aquilo não era o fim, apenas o início de algo maior que estava por vir.
Ele sabia que precisaria retornar ao castelo um dia, que as perguntas deixadas sem resposta o perseguiriam até que ele entendesse o verdadeiro significado daquele encontro. O castelo, com seus corredores mutáveis e suas presenças antigas, não era apenas um lugar — era um desafio, uma provocação.
Velian suspirou, sentindo o peso da imortalidade mais uma vez. Seria o castelo uma metáfora para sua própria existência? Um espaço que desafiava definições, que se moldava ao tempo e ao poder, mas que, no fundo, sempre permaneceria vazio e sombrio, esperando por algo ou alguém para preencher seus salões e desvendar seus mistérios?
Enquanto a brisa quente da noite envolvia seu corpo, ele sorriu levemente. Talvez o castelo não fosse uma ameaça, mas sim uma oportunidade. Uma chance de descobrir algo que ele ainda não conhecia sobre si mesmo — e sobre o mundo sombrio ao qual ele pertencia.
Velian olhou para o horizonte de Fortaleza, a mente ainda presa no Castelo Drácula, questionando as forças que o haviam arrastado para aquele lugar. A vastidão do mar parecia oferecer algum consolo, mas não trazia respostas. Ele, que por séculos havia se embebido em conhecimentos diversos — desde tratados naturalistas e científicos de diversas áreas do conhecimento, passando pela astrofísica, filosofia cética até compêndios místicos e ocultistas —, ainda não possuía clareza sobre muitos mistérios da sua própria existência.
Ao longo dos séculos, ele havia encontrado respostas vagas sobre sua condição de ser vampiresco, sobre as energias que moldavam o mundo físico e espiritual, mas, no fundo, o mistério da origem dos vampiros permanecia envolto em sombras. Velian não sabia de onde eles vinham, nem o porquê de existirem. E, por mais que tivesse presenciado almas desencarnadas, fantasmas vagando entre os vivos, ele nunca compreendeu plenamente o que acontecia com as almas dos humanos após a morte. Existiria uma finalidade para a vida e a morte? Ou tudo era apenas caos, sem ordem, sem destino?
Essas perguntas rondavam sua mente, mas ele hesitava em buscar respostas externas. Ainda que tivesse recursos para investigar, sua natureza, marcada por um ego afiado e orgulhoso, impedia-o de se submeter a uma consulta. Principalmente a ela. Seria agora o momento de recorrer a Cassandra? — pensou Velian, irritado com a possibilidade. Cassandra, a vampira antiga e poderosa, conhecida por sua visão única do mundo, uma mestra em manipular informações e arrancar verdades escondidas das mentes dos seres mais antigos e das sombras mais densas. Ela era, no mínimo, imprevisível. A forma sarcástica e distante com que lidava com o desconhecido tornava suas interações tão exasperantes quanto reveladoras.
Consultá-la, entretanto, significava admitir que ele, Velian, que havia acumulado conhecimento ao longo de séculos, não sabia tudo. E isso o incomodava profundamente. Ele sempre manteve uma postura de domínio, de autossuficiência, e se dobrar a Cassandra, mesmo que apenas por curiosidade, seria reconhecer que algo o havia desafiado — algo que ele não conseguia decifrar.
Ele relembrou as poucas vezes em que cruzara o caminho dela. Cassandra sempre se destacava pela sua sagacidade afiada, capaz de desarmar qualquer discussão com uma combinação de sarcasmo e uma verdade incômoda. Sua ambiguidade fluida, tanto em gênero quanto em poder, sempre intrigava Velian. Embora ambos compartilhassem uma identidade fluida, Cassandra parecia levar isso a um patamar ainda mais intenso, envolvendo-se em jogos de poder que Velian, por vezes, preferia evitar. Ela possuía um magnetismo tão insuportável quanto fascinante.
Ele sabia que ela possuía respostas — ou pelo menos pistas — sobre o que ele havia experimentado no castelo. Cassandra era uma das poucas vampiras que tinha o poder de acessar reinos ocultos e segredos velados dos tempos antigos. Ela talvez soubesse mais sobre as forças que moldavam o Castelo de Drácula do que qualquer outro. Mas buscar sua ajuda significaria entrar em uma arena de manipulação, jogos mentais e provocações que exigiriam de Velian paciência e, acima de tudo, disposição para aceitar que ele não era onisciente.
Porém, será que ele estava pronto para se submeter a isso? Ele nunca fora alguém que gostasse de expor suas fraquezas — e pedir ajuda seria, em seu íntimo, uma confissão de que havia algo além de seu controle.
Velian balançou a cabeça, afastando o pensamento por ora. Ele tinha tempo. Afinal, a eternidade era sua companheira, e as respostas viriam eventualmente, de um jeito ou de outro. Talvez ele não precisasse recorrer a Cassandra. Ou talvez sim. Mas, naquele momento, não estava pronto para enfrentá-la. Não ainda.
Ele suspirou, sentindo o peso de sua própria existência. A imortalidade, com todo o seu fascínio, trazia consigo uma carga de dúvidas incessantes. A busca pelo sentido, pelo entendimento do que era ser vampiro — e, mais ainda, de onde surgiam as almas dos mortos — continuava sendo uma sombra constante em sua mente. Ele havia visto fantasmas, seres do outro lado, mas jamais dominara o poder de interagir plenamente com eles. Era algo que permanecia fora de seu alcance ou de sua vontade já que nunca tivera interesse para desenvolver tais habilidades, deixando suas indagações e inquietações sempre ocultas até de si mesmo.
Por enquanto, Velian continuaria vagando entre suas dúvidas e as realidades sombrias que o cercavam. O Castelo Drácula e tudo o que ele representava ficaria guardado em sua memória — um enigma que talvez apenas Cassandra pudesse decifrar.
Mas ele não estava pronto para se render ao sarcasmo afiado daquela vampira. Não ainda.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…