Conselhos Doces e Sombrios
Enquanto eu me afasto da biblioteca, as sombras parecem se fechar atrás de mim, como se o lugar estivesse lamentando a minha partida. No entanto, não há despedidas. Logo, encontro o meu aposento e me troco, vestindo-me bem confortável e carregando apenas uma lança pendurada, algo que se torna um acessório que dá lugar à minha vaidade. Ao sair da minha alcova, o eco de gargalhadas infantis ainda ressoa, agora mais próximo, e a minha curiosidade me empurra para frente, em direção ao desconhecido.
Ao ser levada para a biblioteca novamente e contornar uma estante, me deparo com uma figura peculiar: uma anciã com cabelos brancos como nuvens, que se mistura ao ambiente com seu manto de cores terrosas e verdosas. Em suas mãos, há um frasco com uma poção brilhante e um pequeno caderno, onde são visíveis desenhos de besouros.
— Nauärah-besin, vejo que a dança a trouxe até nós! — a senhora diz, com um sorriso que revela dentes que parecem ter visto muitos segredos. — O movimento é a linguagem da terra, e você, minha filha, fala fluentemente.
— Eu… — hesito, intrigada, abaixando a cabeça e curvando-me quase. — Muito agradecida, mas como sabe o meu nome? Por que me chama por Besin? E quem é a senhora?
Apesar das dúvidas, aquela figura me traz paz, como se me confortasse e me tranquilizasse de algo. Ela me transmite sabedoria. E como ela lembra a minha avó...! Essa parece ser a resposta de que preciso baixar a guarda. E as armas. Ela olha em direção à minha lança, como quem julga-me tola e desnecessária por carregar isso dentro do castelo. Por outro lado, o seu olhar é terno, compreensivo e parece entender o meu motivo com a sua intuição.
— Ameritt. Me chamo assim. E sobre o seu nome, eu simplesmente sei.
A senhora Ameritt não precisa se explicar. Compreendo bem que ela tem uma sabedoria peculiar e profunda, até pela sua idade.
— Que paz me trouxe, senhora Ameritt! Mas o meu sobrenome é Tupiniquim.
— Eu sei. Conheço os Tupiniquim de longe, pelo olor, trejeito e fala.
Percebo que essa senhora sabe muito. Talvez conhecesse o meu povo ou seus costumes por sua sabedoria notável de anciã.
— É uma satisfação imensa! Bem, fico aliviada em ver mais damas neste recinto.
— Senti a senhorita leve e confiante quando me viu. Dançaste como a brisa, como a chuva!
— Espera, a senhora me viu dançar além de outras presenças que senti?
— Eu vejo muitas coisas, ou quase tudo.
— É bom conhecer pessoas sábias como a senhora. Eu senti algo ao dançar. Uma conexão com a minha essência, talvez. Mas o lugar aqui ainda parece estranho, embora seja mágico e encantador.
Ameritt inclina a cabeça para admirar a minha fala, e seus olhos brilham como se guardassem as chaves para os mistérios do castelo.
— Este castelo tem suas próprias histórias, e você, por acaso, está fazendo parte disso — ela profere, e o meu olhar se fixa naquela espécie de grimório que ela carrega, com besouros desenhados e anotações incompreensíveis. — E os besouros que a senhorita vê em minhas folhas… ó, eles são mensageiros, sempre. Eles vão e vêm com as verdades ocultas.
Nesse momento, um movimento fora da sala atrai a minha atenção e logo eu toco a minha lança, num instinto selvagem de defesa, embora a senhora Ameritt esteja por perto. Um homem com tom de pele similar à minha surge ao longe, por trás de alguma pilastra que é possível visualizarmos de dentro da biblioteca, o que me faz relaxar os músculos, talvez por sentir semelhança e identificação com as características físicas dele.
— Se eu fosse a senhorita, não sairia do meu aposento com lanças — a senhora Ameritt tranquiliza-me, com sua voz serena. — Eu compreendo a sua bravura; por outro lado, não há necessidade alguma de vagar por aqui armada, a não ser que saia do castelo e vá explorar a Vila Séttimor. Aí eu lhe darei razão. — ela sorri sabiamente, com um brilho nos olhos.
— Certamente ando munida por aí afora. Mas irei me tranquilizar aqui dentro. Vou ouvir o conselho da senhora. A minha avó sempre me dava conselhos utilizando a mesma frase.
— Mas também não vacile... Este castelo guarda segredos que podem ser tanto um presente quanto uma maldição. Você deve escolher como vai usá-los.
Antes que eu pudesse respondê-la, ela novamente dispara:
— Nauärah-besin, eu preciso realizar algo muito importante agora, mas eu te espero em algum canto bonito e sombrio do castelo a qualquer outra hora para um longo e saboroso chá.
— Espera, senhora Ameritt...! A senhora sabe quem é o homem que apareceu atrás das pilastras?
— As respostas vêm quando você menos esperar, muitas vezes em forma de besouros!
Ela diz e desaparece com uma espécie de magia, como quem paira por entre uma fumaça mágica e colorida, dando-me as costas. No mesmo momento, eu imagino que tive uma visão, um vislumbre por saudade da minha avó, mas não. A senhora Ameritt é tão real quanto eu, e, além da sua sabedoria e amorosidade, ela é esperta e safa. A sua última frase não sai da minha cabeça, e a conversa com tal anciã me faz refletir sobre minha própria jornada, sobre o autoconhecimento que preciso construir a cada dia, sobre a minha dança, e as portas da imaginação se abrem em minha mente. Com a companhia dessa alma intrigante, ainda que fugitiva da minha presença, sinto-me menos sozinha, pois é ela uma das residentes.
Novamente, ouço da parte externa risos de crianças, que agora se misturam com choros. Respiro fundo, tiro a lança da minha longa roupa e a deixo em uma mesa próxima. Seguro firme o meu amuleto, rogando a Tupã por proteção e lucidez, porque, além de ouvir vozes e onomatopeias, pela primeira vez, eu quero ir atrás de uma figura masculina para saber quem é. Dias atrás, eu correria para o meu quarto, rogando para que ele não me descobrisse. Por vezes, imagino que estou louca, mas esta é uma loucura que eu preciso ter. Algo me diz que aquele não é qualquer homem; é confiável, se parece um pouco biologicamente comigo, parcialmente. Para quem se esbarrou com dois homens neste recinto e tudo correu bem, aparentemente, desse eu não preciso temer. Se ele fosse ameaçador, a senhora Ameritt me alertaria.
Decidida a explorar não apenas a biblioteca, mas também as pessoas que me cercam, olho para o lado de fora, tendo a certeza para onde vou agora.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…