Diário de Anton S. Miahi V

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

De Anton S. Miahi IV 
(Carta para Dr. Chistopher)

De: Anton S. Miahi
Para: Maurice D. Laurent
09 de agosto de 1871 

Caro Maurice,

Vejo a lua alaranjada pairar sobre o castelo enquanto escrevo, seu brilho envolto em uma névoa inquietante.  

Suas palavras parecem distantes, mas a memória de nossas jornadas no campo de batalha ecoa mais forte do que qualquer outra lembrança. A luz da lareira dança nas paredes com tons quentes e inquietantes, como se houvesse um convite oculto para mergulhar nos mistérios que me cercam. Sinto aquele tom alaranjado me provocar, como fazia a fumaça das explosões que atravessavam os campos de batalha prussianos, onde lutamos lado a lado. O mesmo calor sufocante que nos envolvia nos momentos mais caóticos parece agora pulsar entre estas paredes, trazendo uma sensação de alerta, uma desconfiança que se arrasta nas sombras.   

Nos campos, éramos mais do que soldados; éramos irmãos, ligados pela dor e pelo medo. Nossas vidas dependiam da lealdade e da coragem um do outro, e essa união forjada em sangue e sacrifício moldou uma irmandade que nenhum tempo ou distância pode quebrar. Eu nunca esquecerei o instante em que você me puxou para longe da linha de fogo, a luz do crepúsculo queimando em nossos olhos enquanto o caos desabava ao nosso redor. Essas memórias nos conectam ainda, Maurice, e é por isso que sinto a necessidade de compartilhar essas descobertas com você — pois quem mais entenderia o terror que vejo aqui além de alguém que já enfrentou o horror da guerra? 

Preciso falar sobre o que encontrei na biblioteca do Conde, algo que me provoca o mesmo tipo de inquietação que sentíamos nas trincheiras. Durante minhas pesquisas, deparei-me com anotações nas margens dos livros — frases enigmáticas que pareciam mais sussurros do que palavras. Entre as muitas reflexões, uma de Leibniz chamou minha atenção: "A história é uma narrativa de mudanças, onde o presente é moldado pela memória e o futuro pela compreensão do passado". Senti um arrepio, como se o próprio castelo conspirasse para distorcer a linha entre o que é real e o que não é. Cada página que virei pareceu trazer o passado à vida, cercando-me com sua presença, do mesmo modo que os fantasmas do campo de batalha nos cercavam com seu silêncio sombrio. 

As coisas ficaram ainda mais perturbadoras quando me deparei com uma citação de Hume: "O passado é um mistério cujas chaves estão enterradas nos momentos presentes, esperando para serem reveladas". Há algo profundamente inquietante na forma como essas palavras ressoam aqui, onde o presente parece se dobrar e se esticar, como o próprio tempo tentando se libertar das paredes do castelo. As lendas romenas que leio ganham vida de maneira que não consigo explicar. Não posso ignorar as conexões entre essas reflexões filosóficas e o que sinto a cada passo que dou por esses corredores. É como se o castelo estivesse impregnado de uma energia viva, moldada por forças invisíveis que desafiam o que conhecemos como realidade. 

Maurice, as sombras aqui não são apenas sombras. Elas têm vida, ou ao menos parecem. Ontem à noite, enquanto caminhava pelos corredores, a percepção da realidade se desfez diante dos meus olhos. Por um breve instante, enxerguei outro castelo, outras figuras — como se o tempo se dobrasse sobre si e me transportasse para outro momento. Não era uma visão comum, mas algo que me deixou com a sensação de estar sendo observado por forças que não compreendo. Lembro-me de Locke e suas palavras: "A verdade é uma luz que ilumina a ignorância, mas, muitas vezes, o brilho é obscurecido pela falta de discernimento". Essas palavras ecoaram enquanto eu tentava entender o que vi, mas nada pareceu claro. 

Estou à beira da sanidade, e confesso que me pergunto se estas palavras chegam a fazer sentido. As lendas de vampirismo aqui não são meras histórias contadas para assustar; elas são uma parte viva deste lugar, e sinto que estou no centro de um pesadelo que não consigo escapar. O castelo guarda segredos que não deveriam ser descobertos, e temo que nossas pesquisas estejam nos levando para um caminho sem volta.

Preciso de sua clareza, sua perspectiva, pois neste momento, tudo o que vejo é o laranja opressor do crepúsculo, sufocando minha razão.
Com apreço e inquietação,
Anton S. Miahi
 

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 De Valéria S. Miahi
(Carta para Anton)

De: Valéria S. Miahi
Para: Anton S. Miahi
11 de agosto de 1871 

Querido Anton, 

Recebi com grande alegria a sua última carta e fiquei encantada ao saber sobre suas aventuras no misterioso Castelo Drácula. Imaginar você explorando esses corredores antigos e repletos de segredos me enche de curiosidade e admiração. A sua descrição me transportou diretamente para as sombras do castelo, e eu mal posso esperar para ouvir mais sobre suas descobertas e experiências. 

Aqui em Paris, a vida tem sido uma verdadeira montanha-russa desde que deixamos Sevilha. A mudança foi um desafio, mas a cidade revela um encanto que eu nunca poderia ter previsto. Paris é vibrante e cheia de vida, e eu tenho me aventurado por suas ruas estreitas e suas praças movimentadas com uma empolgação contagiante. A cultura e a arquitetura são absolutamente fascinantes, e cada esquina parece contar uma história diferente. 

O tempo em Paris não tem sido apenas uma série de novas descobertas, mas também de reflexões pessoais. Sinto falta de nossa casa em Sevilha e de nossa família reunida. No entanto, tenho encontrado conforto nas novas amizades que fiz aqui e nas pequenas maravilhas do cotidiano. Os cafés e as livrarias têm sido meus refúgios preferidos, e cada dia traz uma nova chance de explorar algo diferente. 

Mamãe, Nora, está bem, apesar da saudade que sente de você e da nossa vida anterior. Ela tem se adaptado às novas circunstâncias com uma dignidade e força que sempre admirei. A mudança para Paris foi um esforço para ela, mas tem se mostrado uma aventura pessoal de renovação e esperança. Ela se dedica à casa e tem encontrado prazer nas pequenas coisas, como as visitas aos mercados locais e as longas caminhadas pelo Sena. 

Saiba que, mesmo à distância, sinto-me próxima de você através das suas cartas e das histórias que você compartilha. A sua coragem e curiosidade são uma inspiração para mim, e estou ansiosa para saber mais sobre suas descobertas no castelo e suas novas experiências. 

Espero que continue a se aventurar e a desbravar o desconhecido com a mesma paixão que sempre demonstrou. Envio-lhe um grande abraço e todas as minhas melhores energias. 

Com muito carinho, 
Valéria
 

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 Diário de Anton S. Miahi X 
(Escrito em meu Caderno)

14 de agosto de 1871 — Escrevo estas palavras com mãos trêmulas, meu coração pesando como se cada batida carregasse o peso de uma lembrança que me atormenta. O ambiente na adega, inicialmente marcado pelo suave aroma do vinho tinto amadurecido, envolvia-me em uma sensação de nostalgia quase palpável. A fragrância rica e complexa do vinho, com suas notas de frutas maduras e especiarias, era como uma lembrança distante. Esse aroma, profundo e envolvente, contrastava de maneira inquietante com a atmosfera que se desenrolava ao nosso redor. 

As chamas da lareira, por um instante, brilhavam com um tom verde-esmeralda, projetando um brilho surreal sobre as paredes de pedra. A luz verde dançava como se fosse uma aura etérea, tingindo o ambiente com uma sensação de mistério e encantamento. Sentia como se aquela cor, tão incomum e sobrenatural, estivesse lentamente dissolvendo a realidade, transformando-a em algo que desafiava a lógica e a compreensão. 

Mas, à medida que o espelho estilhaçado emergia das sombras e começava a se partir em uma infinidade de fragmentos, a cena ao meu redor mudou drasticamente. As chamas na lareira se transformaram, seus tons de verde se desfazendo em um alaranjado ardente. A luz agora lançava sombras intensas e fragmentadas nas paredes, cada uma mais ameaçadora do que a anterior. O calor do fogo parecia se intensificar, como se estivesse refletindo e amplificando o tumulto interno que eu sentia. 

A cor alaranjada do fogo agora parecia refletir não apenas na lareira, mas também nos pedaços de espelho quebrado, criando um jogo de luz e sombra que fazia com que o ambiente se tornasse ainda mais ameaçador e surreal. O calor, agora mais intenso e penetrante, misturava-se ao aroma do vinho, que começava a se transformar em algo mais ácido e pungente, como se a própria essência da adega estivesse sendo corrompida. A cada fragmento de espelho que se despedaçava, o cheiro se tornava mais carregado, uma combinação inquietante de vinho envelhecido e o cheiro metálico da destruição iminente. 

As cores e os odores se fundiam em um espetáculo de desolação e caos. Senti-me como se estivesse mergulhado em um pesadelo vívido, onde o ambiente ao meu redor estava sendo transformado em um cenário de terror e confusão, refletindo o tumulto dentro de mim e a inquietante visão que estava prestes a se desenrolar. 

Um espelho estilhaçado surgiu do vazio diante de nós, como se brotasse das sombras, expandindo-se até se transformar em uma janela com rachaduras que dançavam, apareciam e então sumiam – rasgos no espaço. Oferecia-nos vislumbres de um futuro que eu jamais desejaria ver. As imagens que dançavam nas superfícies fragmentadas eram, ao mesmo tempo, fascinantes e aterradoras, como se uma força desconhecida estivesse revelando segredos que deveriam permanecer ocultos. A cada novo fragmento que minha mente captava, sentia um arrepio profundo, um frio que me invadia não apenas o corpo, mas a própria alma. 

As cenas que aquele espelho nos mostrava eram desconexas, como pedaços de uma vida que ainda não vivi, mas que parecia destinada a ser minha. Vi sombras se movendo em um ritmo que não era o nosso, ouvi sussurros que falavam de desespero e vi um reflexo de mim mesmo, pálido e cansado, confrontado por horrores que me desafiavam a compreender. E ali, no meio daquela visão decrépita, Áurea ao meu lado, senti a angústia de um futuro que se aproximava, inescapável e implacável. 

Enquanto escrevo estas linhas, minha mente é assaltada por perguntas que me recuso a responder, por medos que se agarram à minha razão, tentando rasgá-la em pedaços. O que vi naquela adega ao lado de Áurea? Era uma advertência? Uma premonição? Ou simplesmente uma manifestação da insanidade que parece envolver este lugar maldito? Sinto como se o ar ao meu redor estivesse se fechando, cada respiração mais difícil do que a anterior, enquanto tento processar o que aqueles fragmentos de futuro significam para mim — para nós. 

Eu nunca havia sentido tal terror, tal sensação de que o tempo, o espaço e minha própria existência estavam sendo dilacerados diante de meus olhos. Escrever no meu diário hoje é uma tentativa desesperada de me ancorar na realidade, de afastar os horrores que testemunhei. Mas, mesmo agora, enquanto a tinta seca no papel, a visão daquela adega me persegue, um espectro persistente que não posso afastar. Será que estou perdendo o controle de minha sanidade? Ou estou apenas começando a entender a verdadeira natureza do destino que se desdobra à minha frente? 

Gradualmente, os cacos do espelho começaram a brilhar com cores intensas e inquietantes. Nossos olhares se encontraram em meio aos estilhaços, e o espelho refletia uma aura de âmbar, vermelho, azul e prateado, cada uma das cores pulsando com uma intensidade própria e criando uma sensação de caos e desordem. Cada pedaço de vidro parecia ser uma janela para um fragmento diferente de uma realidade incerta e ameaçadora. 

Nos confins sombrios de La Cité, nas margens do rio Sena, uma visão aterradora tomou forma em um dos cacos de vidro. Em meio ao nevoeiro espesso e à decadência das ruelas estreitas, um cenário de horror absoluto se desdobrava diante de meus olhos. A figura sombria de um ser ancestral, envolto em uma fúria selvagem, surgia das sombras como uma fera à espreita. Seus olhos brilhavam com uma sede insaciável enquanto ele atacava uma mulher indefesa. O rosto da criatura estava contorcido em uma expressão de monstruosidade inumana, cada traço seu impregnado de uma maldade que parecia desafiar a própria natureza. 

A mulher, em contraste, exibia um terror absoluto. Seus olhos estavam arregalados, capturando a última luz de esperança antes de serem tragados pela escuridão. Mas havia algo mais ali, algo que fez meu sangue gelar. Em meio à dor e ao desespero, sua expressão se distorcia, como se fosse tomada por um êxtase sombrio, um prazer perverso que a conduzia lentamente ao abismo de sua própria extinção. A mistura de fragilidade e uma estranha aceitação da morte que se aproximava me deixou em um estado de profundo assombro, como se estivesse diante de algo que a razão não poderia explicar. 

A cena, por mais vívida que fosse, parecia fragmentada, como se o tempo em si se recusasse a revelar toda a verdade. Os movimentos eram cortados, as imagens desconexas, formando um mosaico incompleto de horror que desafiava minha compreensão. Meu coração batia pesado, o senso de masculinidade sendo confrontado pela vulnerabilidade diante do desconhecido. 

Ao fundo, preso em uma janela quebrada de um prédio abandonado nas margens do Sena, um jornal amassado balançava ao sabor do vento. As páginas rasgadas, ainda legíveis, revelavam a data: 20 de junho de 1871. Aquele pedaço de papel, marcado pelo tempo e pela desgraça, parecia uma testemunha silenciosa de um terror antigo, agora emergindo das profundezas da memória para assombrar uma vez mais. 

Então, um novo fragmento do espelho quebrou a realidade ao meu redor. Entre as fendas do vidro, uma visão confusa se formou. Uma figura de lobo de pelagem acastanhado-alaranjada, majestosa e feroz, se transformou lentamente em um homem. Ele parecia ser um caçador vindo da região da Rússia, seus traços pouco definidos, mas a imagem era nebulosa, envolta em uma névoa espessa que dificultava distinguir cada detalhe. Parecia que sua expressão se apresentava severa do homem, pouco se poderia destacar. O que pude notar claramente foram seus olhos castanhos brilhavam com um poder ameaçador. Então pude ver uma cicatriz que marcava seu rosto, um corte profundo que se estendia da testa até a bochecha esquerda, e sua presença emanava uma sensação de perigo iminente. 

Atrás dele, uma floresta escura e sombria se estendia, as árvores se entrelaçando como se fossem garras esperando para capturar o que se atrevesse a se aproximar.  

E, ao mesmo tempo, um novo caco se rompeu e nele foi revelado um quarto próximo, uma jovem estava sentada, cabelos pretos levemente ondulados, olhos azuis grandes e amendoados, pele como mármore. Sua expressão era de inocência e curiosidade, e eu a vi sussurrar algo em direção a mim, as palavras se perdendo na bruma. Apenas entendi o final: um convite sutil para buscá-la no castelo. Então, como um fôlego cortado, tudo se apagou. A escuridão envolveu-me, e o silêncio profundo se instalou, como se o mundo ao meu redor houvesse se dissipado completamente. 

Texto publicado na Edição 10 - Aborom, do Castelo Drácula. Datado de outubro de 2024. → Ler edição completa

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