Jardim da Morte: Hadassa
Em uma sala de cinema que parecia saída dos anos 40, com lustres antigos que projetavam pouca luz nas paredes, um cheiro de pipoca velha que se misturava a um aroma adocicado que possivelmente vinha das figuras que ali entravam. As poltronas velhas de veludo vermelho, que rangiram sob o peso das duas figuras que ali se sentaram no centro, uma do lado da outra. A ceifadora dos que tiram a vida vestia um sobretudo escuro e um chapéu inclinado sobre um dos olhos, enquanto a ceifadora dos apaixonados usava um vestido preto justo, nos lábios um batom vermelho vibrante que contrastava com sua pele na cor de grafite acinzentado, cabelos bem pretos com leves ondas, segurava entre os dedos um cigarro que jamais seria aceso, como uma femme fatale saída de um filme noir. A ceifadora dos que tiram a vida ajeitou a gola de seu sobretudo, seus olhos brancos sem pupilas sob o chapéu de abas largas que lançava uma sombra em seu rosto cinzento, ela parecia deslocada ali, tentando fazer o seu papel, como se aquele tipo de análise fosse de menor gravidade em seu trabalho.
— Esse caso poderia ser resolvido com uma partida de xadrez — ela falou em tom seco.
— Poderia, mas estou testando outras abordagens, uma mistura de LARP com jogo de detetive. — respondeu a ceifadora dos apaixonados, com um sorriso enigmático. — E, aliás, você está perfeita no seu papel de detetive autodestrutivo.
A outra arqueou a sobrancelha.
— Você também está incrível, bem fatal se posso dizer.
Elas riram brevemente.
— Espero que seja direto, detesto enredos sem propósito. — murmurou a ceifadora dos que tiram a vida, cruzando as pernas.
— Calma, apenas assista e depois critique. — respondeu a ceifadora dos apaixonados, sem sair do personagem.
A pouca luz dos candelabros foi se extinguindo e a tela acendeu com um estalo iluminando a escuridão, um nome em letras grandes e brancas surgiu sobre uma imagem em preto e branco de um vaso de flores mortas.
HADASSA
O filme em preto e branco com uma trilha sonora de suspense se inicia, Hadassa em uma cozinha pouco iluminada, ela estava sozinha, esperando a água ferver em uma chaleira. Sentada, perdida em pensamentos, acariciava cicatrizes em seus pulsos. O chiado irritante a desperta de seus devaneios e ela volta a atenção à chaleira, se levanta e prepara o chá. A cena seguinte, ainda na cozinha, a câmera mostra um close do líquido quente sendo derramado na xícara. Uma narração começa suave, enquanto ela em silêncio volta à mesa, a voz de Hadassa ecoando pelos alto-falantes do cinema como se ela estivesse lendo algo:
“Muitas vezes o amor parece um abraço aconchegante, outras vezes, um peso que não conseguimos soltar.”
A narração pausa, Rute aparece na porta da cozinha, um vulto na escuridão, seu rosto calmo, mas sua postura inquieta e seus dedos rígidos no batente da porta, denunciavam sua ansiedade.
— Ainda acordada? — A voz era gentil, mas com uma nota de ansiedade. — E essa água no fogo? Ouvi o chiado da chaleira — ela apontou para a chaleira.
— É que eu fiz chá, para dormir melhor. — Hadassa olhou pensativa para xícara.
Rute foi caminhando até a mesa, seus passos abafados pelo tapete velho e olhou o líquido da xícara e depois para Hadassa.
— Esse chá você encontrou onde?
Hadassa hesitou.
— Uma amiga me recomendou. É natural, sabe?
O silêncio que se formou parecia pesado demais, Rute pegou uma colher.
— Posso experimentar?
Hadassa confirmou que sim com a cabeça. Rute mexeu o chá provando uma gota em seus lábios. Seus olhos ficaram sombrios por um instante, olhou Hadassa, e ficou em silêncio. Em sua cabeça uma lembrança se formou. Uma música mais tensa começa.
— Hadassa, cheguei, trouxe a torta que você pediu. — Rute entra pela porta da frente, com uma sacola na mão.
A câmera segue cada movimento seu, revelando o cansaço em seu rosto de um dia de trabalho exaustivo. Quando chega à sala, ela para de repente, os olhos arregalados, no chão ajoelhada, estava Hadassa, com mãos e roupas manchadas de sangue. Hadassa soluçava, o celular escorregando em sua mão.
— Rute, por favor... me ajude... eu quero conseguir morrer, mas eu não quero ir para o inferno.
Rute ficou paralisada por alguns segundos, mas logo seu instinto tomou o controle, pegou seu celular no bolso da calça e ligou para emergência enquanto procurava algo para estancar o sangramento. A câmera se move lentamente, e foca no rosto de Rute enquanto ela volta para onde Hadassa está, as duas se sentam no sofá, e Rute pressiona o pano no ferimento de Hadassa. Rute abraça a mulher ensanguentada, sua expressão é uma mistura de confusão e um medo avassalador.
Hadassa soluça, as palavras saem de sua boca como se fossem arrancadas.
— Desculpa, eu não queria isso, mas as vozes, elas não param, achei que assim eu teria paz, mas eu senti o inferno dentro de mim e desisti, eu só queria a paz que a morte traz.
A câmera volta para o rosto de Rute, ela fecha os olhos, as lágrimas correndo livre pelo seu rosto, segura Hadassa em seus braços como se pudesse protegê-la dela mesma. O som de batidas na porta preenche a cena, a ajuda havia chegado, mas a sensação de algo irreversível pairava sobre as duas. A cena é trocada, uma trilha sonora mais melancólica, outra cena do passado, Hadassa pegando um envelope pardo que continha algumas ervas, se desfaz do envelope no lixo da cozinha. Logo após, Rute era mostrada examinando o mesmo envelope, com as sobrancelhas franzidas, antes de escondê-lo em uma gaveta. As cenas seguintes eram fragmentos de uma rotina que se tornava cada vez mais comum. Rute agora preparava o chá todas as noites, e oferecia a Hadassa.
— Para sua insônia. — ela dizia, mas seu olhar a traía, talvez culpa ou preocupação, ou outro sentimento que não dava para ser nomeado ainda.
Hadassa parecia cada vez mais frágil, olheiras escurecidas, movimentos lentos, mas seu rosto exibia uma estranha paz. A cena muda, Hadassa em uma pequena sala de estar iluminada por uma lâmpada oscilante, o relógio marcando meia-noite e ela escrevia algo. A câmera focava em sua expressão cansada e em suas mãos trêmulas segurando a caneta. Uma narração se inicia com sua voz:
“Eu sei que você não queria isso, mas você fez o que era preciso. Agora, só espero que consiga conviver com isso...”
A cena é cortada antes que ela terminasse a narração. A próxima cena tomava um tom mais sombrio e a música se torna também mais sombria, Hadassa deitada na cama com o rosto pálido, Rute ao seu lado segurando sua mão. Uma narração com a voz de Hadassa se inicia:
“Você me amou o suficiente para me libertar, mas será que eu a fiz carregar algo que você não merecia?”
A câmera corta para Rute com uma expressão sombria, e então para uma visão de sua mão apertando o punho da xícara que Hadassa usara. A última cena do filme, a música melancólica mais lenta, Rute sentada sozinha à mesa da cozinha, a chaleira estava no fogão, mas vazia. Em suas mãos ela segurava a carta de Hadassa. A câmera se aproxima lentamente enquanto ela lê. A voz de Hadassa narra:
“Eu precisava que fosse você, precisava que fosse por amor, porque só por amor você faria uma escolha que eu não tive coragem de fazer, não lhe pedi nada, mas mesmo assim você me ajudou a encontrar a paz.”
Rute solta a carta, e encara a câmera, seu olhar perdido, seu rosto é uma mistura de dor e cansaço. Ela se levanta e sai andando para outro cômodo deixando a carta sobre a mesa e a câmera foca em uma xícara vazia.
FIM
A ceifadora dos apaixonados se inclina perto da outra ceifadora e sussurra:
— O que achou? Estou aberta às críticas. — disse a ceifadora dos apaixonados.
— Gostei, direto ao ponto. — falou a ceifadora dos que tiram a vida, descruzando as pernas.
— Poético, não acha? O amor transformado em arma, mas sem deixar claro quem das duas puxou o gatilho, romances trágicos sempre me comovem.
A ceifadora dos que tiram a vida deu uma risada seca seguida de um suspiro.
— Poético, não. Eu diria prático, alguém precisava decidir, e parece que Hadassa passou o fardo para Rute, não foi um romance, foi um crime — a ceifadora dos que tiram a vida falou ajeitando o chapéu. — A única pergunta é: quem segurava a arma?
— Ou talvez Rute sempre soubesse que seria o fardo dela. — a ceifadora dos apaixonados deu de ombros. — Hadassa não conseguiria nunca ir até o fim, ela tinha medo. — Ela suspirou e cruzou as pernas.
— Então ela manipulou Rute para alcançar o que queria? — A ceifadora dos que tiram a vida estreitou os olhos.
— Manipular? Não sei, ou apenas confiou que Rute faria, mesmo que não tenha dito uma só palavra. — A ceifadora dos apaixonados tocou o queixo e ficou pensativa. — Talvez Hadassa confiasse que o amor de Rute era maior que o medo que ambas tinham, ainda acredito que foi uma morte por amor. Quando mostrei uma cópia da carta de Hadassa para a ceifadora dos assassinados, ela também disse que era manipulação de Hadassa, por esse motivo ela não quis participar da análise do filme.
— Acho que a hipótese dela talvez esteja certa, Rute quem deu o golpe final, amor ou não, mas ela agiu influenciada por Hadassa.
— Rute sabia o que o chá continha, uma infusão sutil de uma planta tóxica, discreta o suficiente para passar despercebida. Hadassa havia comprado as folhas, mas foi Rute quem decidiu terminar a tarefa, irônico, não é? Evitar que Hadassa se matasse, matando-a lentamente. Ainda acredito que ela fez isso por amor.
— Rute não me parece uma mulher de meias medidas, quando Hadassa disse aquelas palavras, fez aquele pedido de ajuda, algo dentro dela clicou, ela amava Hadassa, mas amor às vezes também é controle, e controle pode ser fatal, então ela abriu mão do controle para que Hadassa pudesse ter paz. — A ceifadora dos que tiram a vida cruzou os braços e ficou pensativa. — Tem a chance de Rute apenas ter matado ela por amor dando o que Hadassa queria, mas também tem a chance de ela ter levado aquele pedido de ajuda ao pé da letra e agido, manipulada por Hadassa que já queria se matar. — parou de falar e ficou refletindo por um tempo. — Vamos deixar ela no jardim à espera até que possamos decidir. — disse a ceifadora dos que tiram a vida, rompendo o silêncio.
— E se nada for concluído? — perguntou a ceifadora dos apaixonados, olhando para a tela vazia.
— Então você ficará responsável por ela até que possamos decidir o que fazer.
— Sempre tão prática, não é? — A ceifadora dos apaixonados deu um sorriso debochado.
— Confio que você vai manter ela entretida, além disso você terá companhia por tempo indeterminado para seus jogos e talvez consiga com ela mais informações.
As duas levantaram juntas ainda discutindo o caso, deixando a sala de cinema na escuridão. A ceifadora dos apaixonados coloca o cigarro na boca, intocado, um movimento encenado, e dá uma risadinha, a outra ceifadora coloca as mãos nos bolsos do sobretudo, caminham em direção à saída, suas sombras projetadas na tela vazia. No fundo da sala, o projetor piscou uma última vez, mostrando o jardim onde Hadassa aguardava, envolta em névoas.
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…