Gênesis I
Segui as noites na companhia de Ameritt, sempre auxiliando em tudo que ela precisasse que fosse feito para abastecer e alimentar os hóspedes do castelo. A quantidade de alimento — na maior parte das vezes o caldo esverdeado — era sazonal. O caldo vermelho normalmente era preparado em uma panela média, duas vezes ao dia. Certamente, além de mim e do homem de cabelos negros, eu não sabia ao certo quantos mais se alimentavam daquilo, pois tão pouco eu tinha acesso aos outros andares do castelo e não conhecia os outros que habitavam por ali. Por um médio período, que já não sei precisar, minhas únicas funções eram preparar a comida, ler pergaminhos em outros idiomas, entender a fisiologia e os componentes que formavam os insetos servidos no caldo esverdeado.
Certa vez, antes de ir até a câmara mais isolada do porão do castelo, onde haviam alocado meu caixão, senti uma forte curiosidade em adentrar uma das câmaras que ficavam entre a cozinha-laboratório de Ameritt e minha câmara isolada; algo me instigava a entrar ali. Por duas vezes, antes de ir dormir, pouco antes que chegasse o amanhecer, me vi tentado a abrir o tal aposento, até que, na terceira vez, não resisti e proferi as palavras: “Apertum Loculum”, a fim de tentar abrir a porta local. Para minha grande surpresa, a porta se abriu, e eu me vi sem reação; já não sabia se deveria entrar no local ou fugir dali, intuindo que poderia ser perigoso estar em uma câmara que vivia trancafiada.
Naquele momento, minha curiosidade havia me vencido, e eu, por fim, adentrei a câmara. Era um cômodo completamente diferente dos que eu já havia tido acesso dentro do castelo; eu estava dentro de uma espécie de biblioteca que reunia diversos pergaminhos e livros, e a dimensão daquela habitação nem se comparava com a biblioteca que havia no navio, nem com a minibiblioteca onde eu estudava latim, grego e a anatomia dos insetos — que era anexa à cozinha-laboratório de Ameritt —, pois era muito maior.
Dentre os muitos livros que a biblioteca possuía, um em específico, de capa dura na cor cinza escuro, quase preto, com um dragão vermelho como símbolo na capa e com mais de quinhentas páginas, me chamou muita atenção. No canto direito, havia escrito: Genesis. O livro não quis se abrir por vontade própria; tive que mencionar “Apertum Loculum” para conseguir acessá-lo. Assim que a primeira página se abriu, percebi que ali se identificava um mapa; ao lê-lo, consegui reconhecer as regiões com os nomes: Transilvânia, Valáquia e Moldávia. A região da Moldávia parecia ter uma cor diferente das outras duas (hoje sei que as outras duas regiões, junto com mais seis regiões conquistadas no período do Império Romano e Otomano, compreendem a totalidade do mapa da Romênia atual). Eu não era um indivíduo que lia muito no período em que vivi minha vida mortal; começar a ter o hábito da leitura era algo novo para mim. O fato de ser uma aberração, e com isso ter adquirido poderes para absorver rapidamente a leitura, me trouxe uma sensação maior de satisfação por esse novo hábito, confesso, pois antes me faltava paciência e foco.
À medida que eu saboreava uma a uma as páginas do livro de capa de dragão, parecia que eu lia uma história que me conectava à minha; algo do que eu lia fazia sentido para as minhas origens vampirescas. A parte textual do livro era escrita em primeira pessoa, como se fosse uma espécie de diário, e começava assim:
Brasnov, de 1448 a 1476
O primeiro de nós
Após a morte de Vlad Tepes, o Príncipe Empalador, em 1476, devido à traição por cobiça ao trono da Valáquia por seu próprio irmão, Radu, eu, Igor Dracul, seu primo, recebi o título de Conde Dracul pelo próprio Vlad em seu leito de morte. Após receber seu anel do dragão como último presente, o que firmava meu pacto de confiança com o Empalador — pacto este que Vlad não tinha confiança em estabelecer com o próprio filho, Mihnea —, uma vez que o filho tinha caráter duvidoso e, além disso, não era iniciado na Ordem do Dragão, como eu e seu pai, Vlad III.
Além de todos esses fatores, eu era comandante das tropas de Vlad, seu amigo confidente e o único que presenciara e guardara em segredo dois fatos que mais tarde comprovariam a lenda que nomeava Vlad como Conde Drácula, ‘O Demônio da Transilvânia’.
Vlad e eu pertencíamos à Casa de Basarab (Câmara dos Drăculești) e, devido à escassez de homens vivos na família, fomos os únicos iniciados na Ordem do Dragão que permaneciam vivos. Os povos valaquianos e transilvanos da época disputavam territórios invadidos e tomados pelos otomanos, e muitos homens haviam morrido na guerra.
Vlad realmente tomou a última decisão de sua vida de forma pensada em seus últimos minutos, após a batalha no mosteiro de Voronet, onde os turcos descobriram que o Empalador e seu exército se escondiam (invadiram em uma manhã de verão para capturar e decapitar o líder que mais havia empalado soldados otomanos e saxões).
Antes da morte de Tepes, por algum motivo que a maioria da população valaquiana, amigos próximos e familiares não entendiam, Vlad deixou de circular pelas manhãs e inícios de tarde. O Empalador passou a ter hábitos noturnos desde que se mudara para o mosteiro, e somente eu cheguei perto de descobrir o verdadeiro motivo.
Em uma noite invernal do ano de 1458, Vlad convocou-me, a seu filho Mihnea e a mais dois soldados de sua guarda pessoal para irem a uma grande floresta, abaixo do Monte Cárpatos. Ao chegarmos perto de uma gruta, Tepes pediu a todos os quatro que o acompanhavam que esperassem do lado de fora enquanto ele explorava a alcova sozinho. Passado um tempo, os quatro cavaleiros que o aguardavam ouviram um grito agonizante ecoando da gruta; entreolharam-se no mesmo instante. Assustado, resolvi adentrar o buraco assombrado e, ao invadir o local, logo senti uma presença macabra que vinha de um vulto grotesco, que parecia esvair-se para dentro do chão da gruta, dizendo em uma voz de barítono:
— Sua alma é minha, e, em troca de poder, você agora é das trevas.
No mesmo momento em que identifiquei o corpo de Vlad caído ao chão, percebi que Mihnea estava na caverna em estado de choque, sem entender o que havia acontecido ali. Corri até meu senhor imediatamente e verifiquei se ele ainda estava vivo. Os dois soldados entraram na gruta em seguida e ajudaram a socorrer Vlad Tepes. O Empalador ainda vivia, mas estava fraco e pálido; no lado esquerdo do pescoço surgiram duas marcas de onde esvaía sangue. Um dos dedos da mão direita estava queimado e, da parte que o ligava à mão, nascia uma crosta vermelha, ainda com sinais de fumaça no local, como se tivessem tostado um dos dedos de Tepes.
À medida que os dois soldados se adiantavam para levar o corpo de Vlad para fora da caverna maldita, Mihnea continuava parado na gruta, sem fazer qualquer movimento.
Enquanto os outros dois cavaleiros ajustavam Tepes em um dos cavalos, percebi a ausência de Mihnea e lembrei que o filho de Vlad permanecia na alcova. Ao avistar o rapaz, ainda perplexo na caverna, o chamei, mas não obtive resposta. Resolvi sacudi-lo aos gritos e, ainda assim, não obtive reação. Então, decidi estapeá-lo, berrando, e, ao despertar do transe com tal violência, o garoto questionou:
— Lorde Igor, o que aconteceu?
Em resposta, lhe disse:
— Nada que devamos lembrar. Vamos embora deste lugar sombrio. Meu senhor, seu pai, precisa de maiores cuidados.
Ao chegarem aos aposentos do mosteiro com Vlad, os quatro cavaleiros logo propagaram os rumores de que o corpo do Empalador chegara sem vida. Alguns criados suspeitaram que poderia ser algum tipo de peste; outros imaginavam que seu senhor houvesse caído em uma emboscada feita pelos turcos enquanto caçava cervos à noite, mas a verdade somente eu sabia.
Durante muitos dias e muitas noites, Vlad permaneceu trancafiado em seu quarto. Nos primeiros dias, ficou acamado, pois ainda não havia recuperado parte de suas forças. Sua pele permanecia incolor, e a ferida que cicatrizava em seu dedo queimado agora parecia metal — como se da casca do ferimento surgisse uma capa de cobre. No entanto, a ferida no pescoço permanecia, como se houvessem sido feitos dois pequenos buracos negros, como se o sangue de Tepes estivesse apodrecido ao ser mordido por uma serpente do mal. Vlad já não possuía mais alma.
Após ler e refletir sobre as palavras escritas por Igor Dracul, lembrei-me da fatídica viagem que fiz naquele navio assombrado até aqui. O que mais me chamou a atenção até agora foi que o tal anel, que parecia ter surgido como uma espécie de herança no dedo necrosado de Vlad Tepes, era o mesmo que o senhor que me guiava e criara portava: um anel de cor avermelhada, parecendo ser de cobre, com uma insígnia de dragão no centro. Seria, o meu senhor, aquele descrito nas palavras do livro de capa de dragão, ou será que Vlad Tepes despertara mais uma vez de algum tipo de torpor e agora nos espreitava e comandava no castelo? De uma coisa eu tinha certeza até então: o senhor que portava o anel e fora meu criador era o atual Drácula, dono do navio e de tudo o mais.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…