Castelo Vampírico: Não sabeis o que acontecerá amanhã

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Diário de Rute Fasano

04 de janeiro? - Finalmente comecei a ter boas noites de sono; fazia tempo que eu não dormia bem. Os chás que tomei com Ameritt estavam fazendo o bem prometido por ela. Cheguei até a sonhar, e, na maioria deles, eu me via sentada à escrivaninha à frente da janela, lendo o livro e fazendo anotações. Sentia-me distante de mim mesma e, ao mesmo tempo, ligada ao livro. Voltei à rotina habitual no castelo, à qual eu já havia me acostumado, agora que meus nervos pareciam ter se acalmado. Via sempre o livro sobre a mesa, apenas esperando para ser lido, e ia em sua direção. Lembrava do seu peso, de sua textura, tão próxima à minha pele quando o coloquei por baixo da blusa para protegê-lo da chuva. Às vezes, meus dedos quase o tocavam enquanto eu estava perdida em pensamentos, mas logo sentia um frio percorrer minha espinha e recuava. Respirava fundo e sussurrava “Hoje não” para mim mesma; algo dentro de mim dizia que eu não estava pronta. Então, coloquei alguns papéis sobre o livro para que eu não ficasse olhando para ele a todo momento.

A manhã trouxe uma mudança na atmosfera do exterior do castelo; a chuva havia cessado, deixando um clima mais ameno. Olhei pela janela, vi o jardim e me senti disposta a fazer mais uma visita a Ameritt — isso se tornara rotineiro. Antes de sair do quarto, passei a pomada em minha ferida, como eu havia prometido a ela. Meus dias e minhas noites no castelo pareciam estar voltando aos eixos: dormia bem, acordava disposta, visitava Ameritt. Ficávamos conversando sobre entomologia, botânica, qualquer assunto relacionado às ciências da natureza, e me permiti ouvi-la falar sobre misticismo, esoterismo, alquimia e todas as pseudociências possíveis. Eu não estava mais num mundo onde a razão fazia sentido; depois de tudo que passei no castelo, presenciar algo e tentar explicar tudo apenas com fatos faria minha mente colapsar. Eu tinha que entender que não estava mais no “Kansas” e, como Dorothy, deveria apenas aceitar esse caminho e continuar na estrada sombria dos tijolos amarelos.

Ameritt me fazia experimentar diversos chás e me mostrou ervas que cresciam somente no castelo, além de me explicar o efeito de cada uma no corpo humano, oferecendo-me somente aquelas que pudessem me acalmar, nunca me dopar. Explicou-me o significado de besin, e fiquei surpresa ao saber que era uma palavra do idioma dos Séttimôros, um povo pelo qual passei a ter certa afeição; a palavra significava "besouro". Depois da visita, voltava para o quarto e focava na escrita. Os dias iam ficando mais calmos, mais rotineiros. Vez ou outra, eu me lembrava do livro, mas logo voltava minha atenção ao que eu estava fazendo. O ambiente ao redor do castelo parecia se tingir de um tom laranja: as folhas nas árvores, o céu da manhã, abóboras em profusão cresciam no jardim, cogumelos em tons de laranja e outros terrosos. Tudo tinha uma tonalidade vibrante, e à noite, com uma lua laranja contrastando com o céu escuro.

Tudo fora do castelo e dentro de mim aparentava outono, simulava uma lenta mudança, mas eu sabia que não era totalmente assim. O castelo parecia despertar para uma nova fase, mais viva e inquietante, como se estivesse sendo alimentado de forma constante, com muito mais inspiração. Eu esperava que fosse assim dentro de mim também; sentia algo diferente no ar e dentro de mim, de forma que despertava meus sentidos. Como uma comichão que eu sentia por todo o meu corpo e me fazia sentar em frente à escrivaninha e apenas escrever todas as imagens, sons e palavras que vinham em abundância à minha mente. Era como se o castelo me desafiasse a apenas aproveitar essa atmosfera peculiar para pôr as ideias que borbulhavam em minha cabeça no papel. Então, me deixei levar, e, como se inspirada divinamente, eu escrevi até altas horas.

05 de janeiro? - Acordei um pouco mais tarde que o habitual, fui até o jardim, e me encontrei mais uma vez com Ameritt, curvada sobre uma fileira de cogumelos em tons terrosos, tão belos, parecendo pequenos guarda-chuvas, que ela colhia com cuidado. O aroma da terra úmida e da vegetação se espalhava ao redor; era tão agradável estar naquele jardim. Ameritt sorriu quando me viu, e senti aquele calor confortável no peito, o que sentimos ao ver alguém a quem temos grande afeto.

— Rute-besin, parece que o castelo te deixou dormir um pouco mais esta noite — disse ela com sua voz carinhosa de sempre, embora com um leve traço de inquietação.

— Não exatamente, fui bem tarde para a cama. Passei a noite escrevendo — respondi, admirando aquele horizonte alaranjado. — Este lugar parece estar mais cheio de vida, como uma entidade bem alimentada, não é?

Ameritt soltou um riso suave, que tirou minha atenção do horizonte. Olhei para ela, e seus olhos brilhavam, como já era habitual, pois aquele era o momento em que ela compartilharia mais conhecimento comigo.

— Rute-besin, esse castelo é vivo, como você já sabe. Isso é por causa da estação Aborom, a meia estação primavera-verão. Bem, é a época em que tudo se intensifica. Veja as abóboras e esses cogumelos; é essa magia que não se pode nomear que os mantém tão vibrantes nessa época. E há as criaturas da noite, que, em época de Aborom, podem ser hostis, especialmente quando a lua negrume surge no firmamento laranjim. Elas despertam em cólera, parecem famintas; creio que sejam morbidades criadas pelo caráter próprio deste lugar.

Ela se ajoelhou perto de um grupo de cogumelos, colhendo alguns com cuidado.

— Esses são Obomitas — disse, apontando para pequenos guarda-chuvas de uma tonalidade alaranjada. — Em noites como esta, eles podem ser perigosos se manipulados sem o devido cuidado. — Ela se pôs de pé e foi andando em direção a grandes abóboras de um laranja vibrante. — Essas abóboras são venenosas, mas com elas se pode produzir elixires perturbadores, dependendo do uso.

Caminhou até outras abóboras, apontando para elas.

— Essas são especiais; além de produzirem doces e tortas maravilhosos, servem para proteção também. Esse provérbio, você já ouviu? — Ela começou a recitar de maneira quase ritualística: — “Quando estiverdes em vossos aposentos, mantenham as fenestras aldravadas e ponham uma vela de abóbora-doce à porta, no chão. Pois eles se erguerão de seus túmulos e mancharão vossos umbrais com macabros infortúnios, caso não sejam expulsos pela trêmula luz aromantada.”

Balancei a cabeça, indicando que não conhecia o provérbio. As palavras pararam entre nós, cheias de advertência.

— As noites de Aborom trazem mais do que mudanças na atmosfera do castelo e na vegetação, Rute-besin. Há uma passagem belíssima de um pergaminho antigo, escrito por uma poetisa murmura: “Ouça o cântico das almas, nesta noite de lua negrume; ouça-o no manto do horror, almas que buscam vingança, paixão e dulcíferas frutas de meia-estação.” Terrivelmente belo, não é?

Um calafrio percorreu meu corpo enquanto ela recitava aquela bela passagem, e olhei para ela, confusa.

— Acho que não estou pronta para enfrentar o que o castelo tem para revelar nessa época. Dessa vez vou seguir as regras e ficarei dentro do meu quarto, escrevendo — confessei, com um ligeiro medo na voz.

Ela sorriu, com aquele sorriso quase maternal.

— Ninguém nunca está, Rute-besin, porém o castelo tem a sua maneira de preparar os que vivem sob seu teto. Então, descanse, besin, cuide de sua mente. Quando estiver pronta, você saberá. E, quando isso acontecer, bem… espero que você esteja disposta a enfrentar o que encontrar.

O fim da tarde se aproximava, e nuvens laranjas pairavam sobre nós como um manto. Olhei para Ameritt me observando. Por mais perturbador que esse lugar fosse, algo em mim estava irremediavelmente ligado a ele; talvez minha alma, a qual nunca acreditei existir, agora fosse parte do castelo. A questão era: o que ele esperava de mim, além da escrita?

— A senhora acha que devo ficar trancada no quarto? — perguntei.

— Só se for da sua vontade — respondeu ela, enquanto colhia alguns Obomitas. — Mas, para se proteger, recomendo que leve aquela abóbora que separei para você. Coloque-a na porta do seu quarto ou na janela; ela deve ser iluminada por dentro com esta vela — disse, mostrando-me uma vela de um laranja claro. — Isso afastará os que se levantam de seus túmulos, espíritos inquietos e todas as criaturas que não desejam nada além de manchar os umbrais dos vivos de infortúnios. Eles são atraídos por este lugar nessa época de Aborom, por vingança, paixão ou até mesmo por um pouco de consolo ou companhia. Se sentirem sua presença, poderão tentar se aproximar, especialmente se perceberem que está mexendo com algo que os afeta.

Essas palavras ecoaram em mim, e logo a imagem do livro que encontrei se formou em minha mente. Eu ainda não havia mencionado o livro a Ameritt, mas sentia que ela sabia sobre ele. O peso de seu conteúdo, ainda não revelado, parecia dobrar meus ombros. Após uma agradável conversa acompanhada de chá, voltei ao meu quarto. Seguindo a recomendação de Ameritt, coloquei uma vela dentro da abóbora e a pus sobre o parapeito da janela. Tranquei a porta e as janelas e me sentei para escrever. Enquanto escrevia, sentia-me inspirada a rascunhar algumas poesias. Fazia tempo que não tentava nada. Talvez o que me faltava fosse motivação, ou talvez uma boa noite de sono. As palavras fluíam com tanta facilidade, que era como se o próprio castelo estivesse ditando as palavras exatas que eu deveria escrever. Estava tão absorta na escrita que não percebi o som suave que veio da janela.

Foi um bater suave, dado três vezes, bem distinto. Levantei devagar meus olhos do papel e fui surpreendida. Do lado de fora, pressionado contra o vidro, havia algo ou alguém. Seu rosto era indefinido, sem traços, olhos escuros e vazios olhando através da janela e de mim. Sua pele, de um branco translúcido, era lisa, sem marcas ou qualquer coisa que definisse seu gênero. Dedos longos e finos, rosto anguloso, sem qualquer expressão; sem sobrancelhas, cílios ou cabelos, apenas o vazio liso. Os lábios finos, quase invisíveis, não se moviam. Seu corpo, alto e magro, apesar de translúcido, parecia denso, e o espaço ao redor dele parecia se curvar ligeiramente. Sua voz, quando falava, estava dentro da minha mente, como um sussurro dobrado.

— Você pegou o livro — sua voz soava como se duas pessoas falassem ao mesmo tempo.

Paralisada e sentindo calafrios percorrerem o meu corpo, apertei a caneta com força, sem saber se deveria responder ou correr.

— O livro… — repetiu a criatura, estendendo um dedo por trás da vidraça em direção ao livro. — Por favor, abra-o.

Falava sem emoção, mas sua voz parecia repuxar minhas entranhas. Levantei-me e dei um passo para trás, sem tirar os olhos da criatura. Olhei para onde o livro estava, coberto de papéis, mas eu ainda assim o sentia, como algo à espreita.

— Se você o abrir — a voz da criatura vibrava em minha mente —, eu poderei descansar, ou talvez, me lembrar. Por favor, abra o livro — sua voz estava mais alta em minha cabeça.

— O que é você? — perguntei, olhando aqueles olhos vazios.

— Um nome esquecido — murmurou, sua voz reverberando como uma onda dentro da minha cabeça. — Mas o livro guarda o que resta de mim. Ele deve ser lido para que eu me lembre.

— Mas e se isso for perigoso? — perguntei.

— Todo conhecimento o é, mas a ignorância também não? Por favor, eu só preciso lembrar — a voz voltou a ecoar em minha cabeça.

Suspirei e tentei me acalmar. Não podia ceder a uma criatura desconhecida. Talvez amanhã, pensei, talvez quando eu estivesse mais preparada. Hoje, eu só poderia prometer à criatura que aguardava do outro lado do vidro:

— Eu vou pensar sobre isso — falei.

A criatura pareceu entender. Sentou-se no peitoril da janela, enquanto a abóbora continuava a iluminar com sua luz trêmula. A criatura, ou o que quer que fosse, parecia estar à espera.

Texto publicado na Edição 10 - Aborom, do Castelo Drácula. Datado de outubro de 2024. → Ler edição completa

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