Diário de Anton S. Miahi VII
De Dr. Christopher V. Walker II
(Carta para Anton)
De: Dr. Christopher V. Walker
Paris, 17 de agosto de 1871
Meu inestimável,
Escrevo estas linhas para narrar o inexplicável. Apenas ao rabiscar estas palavras, sinto a sombra daquela noite envolver-me como um manto frio, um toque de horror que a ciência, por mais que avance, parece incapaz de elucidar.
Eu me encontrava na sala de medicina da Universidade de Paris, acompanhado pelo investigador Jules de Moreau e quatro guardas, enquanto outros seis permaneciam atentos nos corredores. A noite estava turbulenta; lá fora, uma tempestade varria Paris com raios e trovões, e mesmo sob a luz das lâmpadas a óleo, cada clarão projetava sombras que dançavam ao redor dos corpos dispostos sobre as macas. O cheiro de chuva e sangue enchia o ar, misturado ao óleo queimado, impregnando o local de um mal-estar indescritível.
— Diga-me, doutor, — começou Jules, com sua voz grave ressoando pela sala, — qual é a sua teoria? Esses corpos, encontrados nas margens do rio, exangues e com sinais de resistência apenas em um dos braços… é como se algo se alimentasse neles.
Parei ao lado de um corpo, o de uma jovem dama, notando algo que até então havia escapado à nossa análise. Havia uma mancha negra se espalhando ao redor das perfurações em seu pescoço, como um mapa macabro de venenos rastejantes.
— Jules, aproxime-se, veja isto! — murmurei, sentindo uma urgência terrível. — A mancha negra parecia pulsar como algo vivo.
Estávamos ambos petrificados diante daquele detalhe perturbador, até que um trovão estourou sobre nós, silenciando a sala. E então, quase como um sussurro ecoante, uma voz profunda reverberou ao redor.
— “Levantem-se, criaturas da noite…”
Os guardas se aglomeraram na porta, enquanto eu, hipnotizado pela voz, me mantive imóvel junto ao corpo. Foi quando ouvi um som molhado e denso: gotas caíam do corpo da jovem para o chão, formando poças negras e viscosas. De repente, os corpos ao redor começaram a se debater, com espasmos horripilantes, como se tivessem sido tomados por uma força oculta.
Os guardas, tomados pelo medo, sacaram as armas e avançaram, mas mal puderam dar mais que alguns passos antes que um novo trovão apagasse todas as luzes, mergulhando-nos na escuridão. Os relâmpagos entravam pela janela, iluminando uma visão aterradora: os corpos já não estavam sobre as macas.
— Atrás de vocês! — apontei, ao ver o brilho fantasmagórico do relâmpago. No mezanino acima de nossas cabeças, pendia o corpo de um dos guardas, os olhos abertos, agora vazios. O que o segurava era uma criatura de pele pálida, olhos vermelhos como brasas e dentes longos e afiados. O som de sua respiração era como o ranger de ossos.
Sem hesitar, as criaturas lançaram-se sobre nós, e a sala virou um campo de batalha. Os guardas disparavam suas armas, mas cada tiro parecia apenas irritar aquelas coisas. Ouvi os gritos, o som de carne sendo dilacerada, e o sangue começava a escorrer pelo chão em filetes escuros.
Caído ao chão, observava aquele pandemônio, até que senti uma mão forte me puxar. Era Jules, com o rosto contorcido em uma expressão de pura adrenalina.
— Rápido, Walker! Vamos! — Gritou o investigador para mim.
Corremos. Deixamos a sala para trás, os gritos de nossos companheiros ecoando enquanto os guardas do lado de fora, ao ouvir os disparos e os uivos das criaturas, corriam para a sala. Mas nós seguimos na direção oposta, tomando os corredores tortuosos da universidade. Meus passos ressoavam junto aos de Jules, cada batida de nossos pés acompanhada pelo eco do horror que deixávamos para trás.
Os corredores, que antes pareciam frios e vazios, haviam se transformado em um labirinto sinistro, cada sombra, uma ameaça, cada passo um desafio à sobrevivência
Enquanto escrevo, ainda sinto os ecos daquela madrugada sombria pulsarem em minha mente, como uma ferida que se recusa a cicatrizar. Nossa fuga pelos corredores da universidade foi marcada por gritos, tiros e o som metálico de garras raspando as paredes. Os policiais que enfrentaram aquelas criaturas, mesmo armados, não tinham chance. O som dos disparos era abafado por gemidos, estalos e súplicas – uma cacofonia de morte e terror.
O coração martelava no peito; a respiração, pesada, tornava-se uma tortura. A cada passo, a exaustão aumentava, mas era impossível parar. Jules estava ao meu lado, o rosto pálido e os olhos arregalados, sua mente oscilando entre incredulidade e pavor.
— Doutor, o que eram aquelas… coisas? Por que os mortos voltaram para caçar os vivos? — ele sussurrava, a voz trêmula, quase suplicante.
Fizemos uma curva e avistamos uma porta entreaberta. Sem hesitar, atravessamos o limiar e a fechamos atrás de nós, encostando-se pesadamente contra ela. Jules continuava com suas perguntas, o Colt .36 tremendo em suas mãos. Eu, por minha vez, lutava para organizar meus pensamentos, mas só pude murmurar:
— Meu amigo, é como se todos os conhecimentos médicos e científicos que acumulamos se tornassem inúteis diante dessa aberração…
Naquele momento, Anton, devo confessar que me senti apanhado em uma teia de forças que escapavam ao domínio humano. Devo ter irritado algo ou alguém com minhas investigações, pois aquele mal parecia ter um propósito que me escapava, uma inteligência sinistra e calculista. Senti a urgência de procurar ajuda espiritual. Talvez eu devesse ter passado na Abadia de Saint-Germain-des-Prés, conversado com o padre Bastien antes de continuar esses estudos macabros. Mas não, minha curiosidade foi minha única guia.
Os ponteiros do relógio pendurado na parede indicavam que era quase cinco e meia da manhã. Notei então uma fina linha de fumaça entrando pela fresta sob a porta e avisei a Jules. Em seguida, ouvimos passos pesados se aproximando, e algo arranhando as paredes com um som que fazia o sangue gelar.
— Prepare-se…. — murmurei, agarrando um mancebo de madeira que achei ao lado. Jules verificou o tambor de seu revólver com mãos trêmulas e o ergueu, firmando-se no centro da sala.
As pancadas na porta ficaram cada vez mais violentas, cada golpe fazendo as dobradiças rangerem. Até que, com um guincho arrepiante, a porta foi escancarada, revelando aquela criatura bestial que nos perseguia. Era uma visão saindo dos pesadelos mais profundos: olhos brilhantes e inumanos, dentes longos e afiados como os de um predador, e uma postura arqueada, como se cada movimento fosse uma ameaça.
A coisa avançou, e em um ímpeto, Jules disparou. O tiro atingiu o peito da criatura, mas ela sequer hesitou. Atingiu-o com uma força descomunal, lançando-o ao chão. Girei o mancebo e golpeei a coisa nas costas, mas foi como acertar pedra – ela se voltou contra mim, o olhar faminto e cruel, e senti suas garras arranharem minha pele.
Jules, ferido e sangrando, conseguiu erguer o Colt novamente e disparou contra o rosto da criatura. Ela recuou, emitindo um urro bestial, mas ainda estava longe de ser vencida. Eu, com uma energia que não sabia possuir, desferi mais um golpe, e ela caiu por um instante. Mas o tempo não estava a nosso favor, pois, em breve, ela se ergueria novamente.
Uma última vez, olhei para o relógio – eram seis horas da manhã. Do alto das janelas quebradas, o primeiro raio dourado do sol irrompeu, cortando a escuridão e tocando o chão. Com um novo grito, a criatura recuou, e ao ser tocada pelo feixe de luz, seu corpo começou a se contorcer e emitir um uivo horrível. Ela fugiu para o corredor, mas já não restava dúvida: a luz do sol parecia ser a única coisa que a deteria.
Corremos atrás, mas ao virarmos o corredor, ela já havia desaparecido, como se a noite a tivesse engolido de volta.
Decidimos retornar à sala onde tudo começara. O caminho estava repleto de sangue, corpos e destroços; o cheiro metálico impregnava o ar. Ao chegar, avistei o cadáver da jovem dama ainda sobre a mesa de dissecação. Sobre seus pés, uma poça de líquido negro, denso e fétido, repousava. Olhei para Jules, ambos entendendo que aquela visão era o epítome de tudo que tínhamos presenciado.
Foi quando, mediante um vitral intocado, o sol invadiu o recinto. Um feixe de luz pousou sobre o cadáver da moça. Em instantes, como por um fogo divino, seu corpo começou a arder translúcido, reduzindo-se a cinzas em um espetáculo silencioso e terrível.
O que seria essa essência negra e pútrida, esse sopro de morte que não mais reconheço, Anton?
De Anton S. Miahi V
(Carta para Dr. Christopher)
De Anton S. Miahi V
Bram, 10 de agosto de 1871
Meu querido e estimado amigo,
Recebo a notícia do ataque que sofreu com um assombro que mal consigo expressar. É como se uma sombra imensa houvesse se arrastado das profundezas até nós. Que esses horrores tenham cruzado a fronteira da nossa França, e ainda mais que tenham se voltado contra você, Christopher — um homem de ciência, um pensador! Tais eventos são de uma natureza tão grotesca, tão inumana, que mais se assemelham à obra de criaturas infernais, daquela maldita estirpe que apenas o próprio Diabo poderia conceber. Sua descrição, vívida e apavorante, fez com que a imagem tomasse forma em minha mente: uma cena tão infernal que me pergunto se aqueles corpos não foram possuídos por demônios.
O jornal que me enviou já me havia deixado intrigado e preocupado. No entanto, esta última carta trouxe uma inquietação que atravessa o mero temor — diria até que roça o desespero. Meu amigo, começo a me perguntar se fiz bem em aceitar este convite para cá. Em minha ignorância, pensei que seria uma aventura entre velhos manuscritos e o pó da História, mas me vejo agora questionando a própria essência do que creio real. Imagino o que meu irmão, cuja ausência ainda sinto como uma sombra em meu peito, pensaria disso tudo. Ele sempre teve um senso prático que, talvez, tivesse me feito ver o que agora não posso ignorar. Ele, em sua racionalidade serena, certamente evitaria esse pântano de incertezas que sinto crescer ao meu redor.
Você sabe, Christopher, que prezo a razão acima de tudo. Marcel bem conhece minha mente cética, minha preferência pela lógica. No entanto, aqui estou, numa terra onde a realidade parece brincar com nossas percepções, onde sombras parecem ganhar vida e as portas dos corredores nunca permanecem exatamente onde as deixei. Sinto-me empurrado, atraído como uma marionete, para dentro de uma rede negra e pegajosa que me envolve cada vez mais.
Pior ainda, sou assombrado por visões e criaturas que desafiam o natural, entidades que parecem emergir de histórias que antes eu teria desdenhado, as lendas ciganas que outrora escutamos com ironia entre copos de vinho. Aqueles contos, amigo meu, me rondam agora como presságios, e uma parte de mim teme descobrir o quanto das palavras deles era verdade.
Cada dia que passa me sinto mais enredado neste lugar. É como um abraço apertado, uma serpente invisível que me envolve em laços escuros, me puxando lentamente para um abismo do qual, temo, já não poderei escapar. É com essa sombra que encerro esta carta, esperando que, ao lê-la, encontre alguma solução que me liberte deste feitiço infernal.
Com gratidão e afeto,
Anton S. Miahi
Anton S. Miahi XIV
(Escrito em meu Caderno)
26 de agosto de 1871 — Acordei num sobressalto. O peito arfava, e a mente, desordenada, lutava para discernir o que era realidade e o que era apenas um delírio fugaz da madrugada. Havia... algo. Como uma sombra de lembrança — ou seria uma ilusão? Um rosto... não, era mais uma presença. Monm. O nome veio como um sussurro em minha mente, trazendo um peso indefinível e uma estranha familiaridade. Sinto que falamos, mas os detalhes se dispersam como bolhas de sabão ao vento, frágeis e transparentes.
Levantei-me, ainda vestido com as roupas do dia anterior e com as botas pesadas nos pés. Não me recordo de como cheguei ao quarto, tampouco lembro de ter caído no sono. Caminhei até a janela, puxei as cortinas, e um relâmpago cortou o céu, revelando o cenário montanhoso, áspero e sombrio. O relógio no canto indicava que mal passavam das sete da manhã, mas meu corpo, exausto e enrijecido, teimava em permanecer no torpor da noite.
A cada lampejo de luz, o quarto oscilava entre sombras densas e tons estranhos de lilás. Tudo parecia imóvel, congelado. Os detalhes ao meu redor eram meros espectros de cor: preto, branco e lilás. Como se o próprio tempo hesitasse, mantendo-me aprisionado em uma madrugada eterna.
Então, o som de passos ecoou pelo corredor. Femininos, leves, mas decididos. Uma presença fria pareceu invadir o ar. Virei-me, fixando o olhar na porta entreaberta, e lá, no vão, uma luz amarelada oscilava. Fiquei paralisado. Um aroma de lavanda começou a invadir o quarto, um cheiro familiar, trazendo de volta uma lembrança distante: minha tenda no exército, o pequeno altar de um oficial ao meu lado... "Para concentração, meu amigo. Uma questão de fé", ele sussurrava, queimando aquelas flores secas. O aroma era intenso, mas a lembrança, frágil. Pisquei e tudo se desfez. O aroma se dissipou; a luz, sumira.
Movido por um ímpeto irracional, dei um passo adiante e abri a porta com violência, encarando o corredor vazio. Olhei em ambas as direções, tentando entender para onde poderia ter ido aquele vulto, aquela luz... aquela presença. E foi então que uma voz rasgou o silêncio.
— Senhor Anton! O que diabos você está fazendo saindo assim?
O susto me fez virar rapidamente, encontrando Nestor, meio escondido nas sombras do corredor. Ele me olhava com uma sobrancelha arqueada, e sua expressão oscilava entre o escárnio e a irritação.
— Procurando... alguma coisa, Nestor? — minha voz saiu estranhamente rouca, como se eu mesmo não acreditasse no que estava dizendo.
E então me indaguei em minha mente, — “Como ele chegou ali, sem fazer qualquer som?”.
Ele riu, aquele riso ácido que poderia conduzir qualquer um ao desconforto e tirar do sério.
— Procurando? Ou apenas vagando como um louco? A essa hora, senhor Anton? E pelo que exatamente?
Suspirei, tentando recompor o pouco de sanidade que me restava.
— Eu... ouvi passos. E havia uma luz, um perfume de lavanda...
— Lavanda? Ora, cavalheiro, agora estamos vendo e sentido fantasmas perfumados? — aquele mordomo esboçou um suave sorriso no canto dos lábios com clara intenção de deboche.
— Nestor… — repliquei, com um tom mais firme — Estou falando sério. Não era minha imaginação. Houve algo, ou alguém, aqui.
Ele se aproximou, e a luz mortiça do corredor destacou o brilho sarcástico em seus olhos.
— "Algo ou alguém", você diz... Como Monm, quem sabe? Que de tão... peculiar, deixou você assim, num estado deplorável.
Meu corpo se enrijeceu ao ouvir o nome. Ele havia dito aquilo de propósito. Monm... Sim, fora ele. Ou algo de sua presença em minha memória. É certo que estive com ele e mais alguém... Um misto de inquietação e confusão revolvia meu estômago.
— O que sabe sobre ele, Nestor? Você sempre fala como se soubesse mais do que diz.
O mordomo inclinou a cabeça, os olhos faiscando com um brilho que mesclava curiosidade e desprezo.
— Talvez eu saiba, caro senhor Anton. Mas cabe ao senhor descobrir até onde consegue ir com essas... suspeitas — Ele se virou lentamente, num sussurro gélido, carregado de um peso sombrio. — Ou essas alucinações, você decide!
A frieza em suas palavras ecoava na penumbra. Minha mão tremia, e meu coração pulsava forte, o odor da lavanda ainda parecia impregnar o ar. Mas antes que pudesse argumentar, Nestor já se afastava, o som de seus passos desaparecendo ao dobrar o corredor.
Permaneci ali, estático. Aquele jogo de provocações e segredos estava corroendo o que restava de minha sanidade. Envolto naquela atmosfera densa e carregada de mistérios, me perguntei, mais uma vez, se eu não era, de fato, o louco que Nestor insinuava.
Ouvi um último eco da voz dele, como se a própria sombra das palavras fosse real:
— Cuidado com o que procura, Anton. Às vezes, as respostas nos encontram primeiro.
Naquela tarde — O sussurro final de Nestor ainda flutua em minha mente, como uma sentença envolta em trevas: "No salão de jantar haverá alguém que o acompanhe desta vez. Ela é a que divide o senhorio deste castelo." Suas palavras cortaram o ar, carregadas de algo indizível. Antes que eu pudesse responder, ele desapareceu, engolido pela penumbra do corredor, como uma sombra esvaída no limiar da visão.
Fiquei ali, imóvel, o coração pulsando, a mente embotada. A imagem de Nestor sumindo na escuridão misturava-se às lembranças confusas da noite anterior... Meia-Noite, Uor, Olga Nivïttz. Nomes que ecoavam em minha cabeça, fragmentos de uma realidade que se desintegrava como papel queimado.
— Então... hoje a verei — murmurei, sem saber a quem dirigia minhas palavras, como se a própria escuridão ouvisse e absorvesse minha incerteza.
O silêncio me sufocava. Havia meses que eu residia neste castelo, vagando por seus corredores sombrios, sentindo a presença do próprio Conde Drácula como uma sombra que nunca se dissipa. Mas esta seria minha primeira vez diante dela. Ela, a senhora oculta das muralhas de pedra e das câmaras seladas por mistérios. O que poderiam Monm, Uor e Meia-Noite saber que eu não sabia? E até onde as palavras deles eram dignas de confiança?
Quando dei por mim, já estava em meu quarto, movido por uma vontade instintiva de me preparar. Vasculhei o guarda-roupa, tirando do cabide uma camisa de linho branco — tão claro que quase parecia uma afronta em meio àquela penumbra. Escolhi também um colete de couro negro, a cor das noites eternas que cercam o castelo. Vestindo-me com rapidez, ajustei a camisa, passei a mão pelas botas para livrá-las do pó acumulado, e me pus diante do espelho. Os espelhos, sempre tão traiçoeiros...
— Esta é a imagem que levarei para a presença dela... — sussurrei, observando-me atentamente. Meus próprios olhos pareciam me desafiar, como se escondessem um segredo que até eu desconhecia.
Arrumei o colarinho, alisei a frente do colete e dei um passo para trás, inspecionando o alinhamento de cada peça. Meus dedos estavam frios, mas o espírito... O espírito, eu tentava preparar o melhor que podia. Inspirando fundo, virei-me e saí, meus passos ecoando pelo chão de pedras. Marchava em direção ao inevitável, como um soldado destinado ao sacrifício.
O corredor principal me esperava, longo, sombrio, um túnel de madeira e pedra, iluminado apenas por candelabros de metal corroído que lançavam sombras deformadas nas paredes. Cada vela tremulava com uma leve brisa, como se uma presença invisível me seguisse, ansiosa por ver o que eu descobriria no final desse percurso.
Enquanto avançava, o ar parecia pesar mais, preenchendo meus pulmões com uma umidade densa, como se até o próprio oxigénio carregasse o cheiro de tempos passados. De repente, a decoração do castelo, antes apenas uma extensão da escuridão, pareceu ganhar vida. Paredes adornadas com tapeçarias desbotadas, desenhos de batalhas antigas e figuras de seres esquecidos pelo tempo. Quase podia ouvir os gritos abafados e os sussurros ancestrais que emanavam de cada trama.
Cheguei ao portal principal que me conduziria ao salão de jantar. As portas pesadas de carvalho negro, decoradas com entalhes de criaturas míticas e rostos que observavam com um olhar quase humano, destacavam-se como os guardiões de um segredo profundo. Toquei a madeira fria, hesitando.
"Anton..." minha própria voz soou estranha, como se fosse um eco que retornava de um lugar distante. — O que espera encontrar? E se... se aquilo que lhe disseram for verdade?
Sacudi a cabeça. Não havia mais volta. Empurrei as portas e, de súbito, o salão se revelou, banhado em uma luz mortiça e trêmula. O espaço era vasto, com teto arqueado, decorado com lustres de cristal que pendiam como lágrimas de uma noite eternamente suspensa. O chão era de mármore escuro, onde sombras dançavam, movendo-se como entidades de uma realidade à parte.
No centro do salão, uma mesa imensa, ladeada por candelabros de prata altos e pesados, cujas chamas tímidas lançavam uma luz que não chegava às extremidades da sala. Ali, em uma das cadeiras ao centro, uma figura feminina esperava, imóvel, o olhar fixo e atento.
— É ela. — sussurrei entre dentes.
Meu corpo hesitou, uma mistura de curiosidade e temor congelando cada músculo. Forcei um passo à frente, e foi nesse momento que sua voz rompeu o silêncio.
— Senhor Anton Stefan Miahi... quão fascinante é receber-te n’este momento singular... — proferiu ela, em um tom que parecia dançar entre a formalidade cortês e a introspecção calculada, cada palavra carregando um peso que transcendia o momento. — Revela-me, somos frutos do acaso ou a predestinação trouxera tua calorosa presença à minha neste alvor silente?
— Senhora Nivïttz, eu... não esperava tamanha... hospitalidade — respondi, sentindo o peso de cada palavra enquanto me aproximava.
Ela sorriu com uma seriedade única, e havia algo em sua postura que combinava elegância natural e uma presença quase etérea. Uma mulher de olhar profundo e enigmático, cuja força de personalidade transparecia em cada gesto. Seu modo de falar era impecavelmente rebuscado, como se cada palavra fosse uma peça trabalhada por um artesão.
– É-me um insólito prazer, Senhor Anton. Algumas recepções, devo, entretanto, advertir, são conjecturadas para além da congruente psyché. – disse ela, inclinando a cabeça ligeiramente, como quem pondera a profundidade do desconhecido. – Esta é a seiva rubra e viva d'este meu Castelo: uma reflexão, decerto, da mórbida inquietação dos que sob seu teto residem.
A mesa diante de mim estava repleta de alimentos, alguns familiares, mas muitos outros exóticos, de origem desconhecida. Fome e receio se misturavam em meu estômago.
— Senta-te, Anton, se assim me concedes a ousadia de ordenar — ela me convidou, indicando a cadeira ao seu lado, com um gesto que era, ao mesmo tempo, gracioso e autoritário, como uma monarca distribuindo favores. — Raríssimo sopro de serenidade é este, como uma lacuna dentre o caos; um momento sublime que nos permite apreciar sem pressa... — Um silêncio se alastrou sufocante. — Deleita-se, pois, a efemeridade é o orvalho sob o sol nascente.
Engoli em seco e tomei o assento. O ambiente carregava uma tensão que parecia se solidificar a cada momento. Ela me observava, trazia uma sutileza persuasiva que oscilava com uma seriedade perturbadora e enigmática, uma pista de seus pensamentos complexos.
— Diga-me, Anton… — ela retomou, sua voz envolta em uma cadência quase musical, como se cada palavra fosse selecionada com uma precisão cirúrgica. — O que encontraste, caríssimo, dentre os claustros ocultos e os aposentos sombrios de meu lar, despertara as estranhas de tua inibida curiosidade?
— Pode-se dizer que há muito que me intriga, senhora Nivïttz.. — Respondi, cauteloso. — Mas não sei até onde as descobertas são minhas... ou foram deixadas para que eu as encontrasse.
Ela inclinou-se ligeiramente, os olhos agora com um brilho intensamente curioso.
— O desvelar, em sua quintessência, não se realiza à ínsula de si mesmo. Ao contrário, o buscador e o buscado entrelaçam-se, como se regidos por uma indissociável força, sob silencioso acordo. A seiva que irriga as profundezas d’este alcácer, prezado Anton, tanto quanto o verbo que o fundamenta, possuem anseios e intenções verossímeis, seus arcanos não se manifestam à parte do consciente subjetivo.
Suas palavras caíram sobre mim como um manto pesado, e percebi que ela sabia mais do que demonstrava, que cada frase, cada olhar, escondia significados ocultos, camadas de intenções que não me eram reveladas.
— Como se o castelo tivesse vida própria? — murmurei, mais para mim mesmo.
O frio subiu pela minha espinha, e percebi o quão exposto eu me sentia. Mas Olga mantinha uma postura acolhedora, sincera em sua complexidade.
Ela sorriu, e sua expressão suavizou, mas sem perder o mistério.
— Para um ínfimo resumo, quiçá... Mais que um mero observador, Anton, o Castelo é um anfiteatro mórbido e egrégio, bem como é uma personagem, um narrador e uma testemunha. A sabedoria silente que o habita, acolhe a todos como parte de seu sui generis enredo.
Foi nesse momento que ela inclinou levemente a cabeça, como se observasse algo invisível ao meu lado, e seus olhos ganharam uma profundidade incomum. Ela abriu os lábios, e sua voz veio baixa, quase um sussurro:
— Lilaenatt somnien...— Quase não a compreendi e não sei se este seria a grafia correta do que foi dito por ela, apenas senti um estranho sentimento ao ouvir suas palavras. Parecia um latim arcaico. — Algo ao teu derredor, caro Anton, emana-se e esparge como nódoa instável. — Seus olhos pareciam observa algo além de mim, o que me forçou a revistar minha própria pessoa e os arredores com algum resquício de ceticismo e resistência. — Esta aura... —retomou ela. — Enraíza-se em teus passos pretéritos... um eco de laços ancestrais? Interessante expressão do Atemporal. Vejo alvililás... Pode ser tal vínculo uma sugestão d’um elo inexorável ao teu destino?
Ela estava absorta em sua própria análise daquilo que ela parecia ver e eu não, enquanto este professor apenas buscava entender o que ela dizia.
— O que quer dizer com isso? — perguntei, a tensão na minha voz evidente. — O que você viu?
De um momento a outro ela se levantou lentamente, o olhar ainda fixo em mim, mas agora impenetrável. Algo claramente parecia haver chamado sua atenção. Por um momento, pensei que fosse responder, mas Olga apenas ajeitou o vestido com um gesto meticuloso e recuou um passo.
— Perdoe-me, Anton… — disse ela, suavemente. — Parece que algo requer minha imediata atenção. Hórrido é não mais aprazer-me d’este momento tão interessante. — Sua expressão ficou marmórea.
E assim, em silêncio, ela se retirou. Seus passos eram firmes e ligeiros. Deixando-me sozinho com minhas dúvidas e o eco de suas palavras. Sentia que havia algo mais no que dissera, algo que escapava à minha compreensão, mas que me perseguiria enquanto eu vivesse. Ou, além disso.
Texto publicado na Edição 12 da Revista Castelo Drácula. Datado de janeiro de 2025. → Ler edição completa
Diálogos de Olga Nivïttz por:
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…