O Abismo da Vigília
Velian caminhava pelas ruas de Fortaleza, sob um calor que parecia abraçar a cidade com uma intensidade sufocante. O sol havia se posto há horas, mas o asfalto ainda exalava o calor acumulado durante o dia. A cidade parecia viva, mas em um estado de convulsão, uma humanidade febril dividida por seus próprios abismos. Ele vagava entre os humanos como um espectador cínico, observando a banalidade e a tragédia de suas vidas.
Nos últimos dias, havia explorado os shoppings abarrotados, os corredores estéreis do aeroporto, os shows de rock onde os corpos se agitavam ao ritmo ensurdecedor da música. Cada lugar era um espelho fragmentado da humanidade: extremos de pobreza e riqueza coexistindo, separados por muros invisíveis, mas palpáveis. Velian percebia o desdém nos olhos dos privilegiados e a desesperança naqueles que lutavam para sobreviver. Humanos tinham nojo de outros humanos, e isso o fascinava e o enojava ao mesmo tempo.
Ele se sentia saturado. A degradação social, a superficialidade dos desejos e a hipocrisia das normas o exauriam. “Como pode eles se apegarem a algo tão vazio e, ainda assim, temerem o vazio verdadeiro?”, pensava. O que antes o atraía nos humanos — sua criatividade, seus impulsos, sua capacidade de amar e destruir com igual fervor — agora parecia reduzido a ecos de uma glória perdida. Velian ansiava por algo além da vigília, algo mais profundo do que essa realidade sufocante. Ele precisava escapar.
O Retorno ao Castelo
Naquela noite, recolheu-se à sua mansão à beira da Praia de Iracema. A casa era um refúgio de silêncio e sombra, isolada do barulho constante da cidade. Em seu quarto, onde a escuridão era absoluta, Velian sentou-se em uma poltrona forrada de veludo, fechou os olhos e começou a meditar. Ele não sabia ao certo o que buscava, mas seu desejo o guiava.
“Castelo Drácula” murmurou, como se invocasse um antigo pacto. “Leve-me de volta.”
E então, como se sua vontade fosse uma chave, sentiu o mundo mudar ao seu redor.
As Trevas Falam
O castelo o recebeu com o mesmo mistério de antes: vastos corredores de mármore negro, candelabros flutuando, o som distante de um piano. Mas desta vez, havia algo mais. Uma presença. As Trevas o envolveram como um véu pulsante, um manto vivo que parecia sussurrar diretamente em sua mente.
“Você voltou ao Castelo Drácula” disseram as Trevas, suas palavras ecoando como se viessem de todas as direções. “O que busca desta vez, Velian?”
Ele suspirou, mas sua resposta foi carregada de sarcasmo. “Talvez eu só queira me esconder da humanidade. Eles são tão... patéticos. Ou talvez eu queira me esconder de mim mesmo.”
As Trevas riram, um som profundo e reverberante. “Você não pode se esconder de nós. Somos as perguntas que você teme fazer, os desejos que não ousa admitir. Diga-me, Velian, o que você realmente quer?”
Ele hesitou, mas então respondeu: “Quero respostas. Sobre o que sou. Sobre o que é real. Sobre o que significa viver quando se está morto.”
“Ah, mas viver,” disseram as Trevas, “não é simplesmente desejar? O desejo, Velian, é a centelha que impulsiona o viver. Você deseja sangue, corpos, experiências. Deseja entender e ao mesmo tempo permanecer envolto em mistério. E ainda assim, teme seus próprios desejos, teme suas próprias dúvidas.”
Velian franziu o cenho. “E o que há para temer no desejo? Ele é tão natural quanto respirar.”
“Natural? Talvez,” responderam as Trevas. “Mas o que você diz do desejo que desafia todas as normas? Seu desejo pelo indefinido, pelo que transcende gênero, forma e limite? Você é atraído tanto pela carne quanto pela essência, tanto pelo masculino quanto pelo feminino — ou pelo que está entre, ou além. Isso o liberta, mas também o prende, não é?”
Ele sentiu as palavras como um golpe. “Eu não sou prisioneiro. Se há algo que sou, é livre.”
Livre?” questionaram as Trevas. “Livre para desejar, mas incapaz de compreender o que realmente deseja? Livre para existir em um corpo que transcende os limites humanos, mas ainda assim preso à dúvida sobre o que significa ser? E a liberdade, Velian, é realmente liberdade se está sempre acompanhada pelo medo do vazio?”
Reflexões Profundas
Velian ficou em silêncio, as palavras das Trevas ecoando em sua mente. Ele sempre se considerara livre — fluido em seus desejos, indefinível em sua identidade. Mas as Trevas estavam certas: essa liberdade vinha com um preço. Ele sentia a tensão entre a atração e a repulsa, o prazer e a culpa, o desejo de se fundir com algo maior e o medo de perder a si mesmo.
“Diga-me,” ele finalmente perguntou, “se viver é desejar, o que significa desejar algo que nunca pode ser alcançado?”
As Trevas pareceram sorrir, mesmo sem forma ou rosto. “Significa que você está vivo, Velian. Pois o desejo é a busca incessante, e a dúvida é o combustível dessa busca. Você busca a verdade, mas teme encontrá-la. Busca amor, mas teme a entrega. Busca a eternidade, mas se pergunta se ela não é apenas outro tipo de prisão.”
Ele fechou os olhos, tentando processar o turbilhão de pensamentos. “E a magia? – Não que Velian não soubesse dos grandes poderes da magia e conseguia executar até mesmo algumas grandes magias ancestrais em seus 700 anos de vida vampiresca, mas perguntava sobre a essência da magia – E os sonhos? Eles são reais ou apenas um reflexo do que queremos que seja real?”
“E se forem ambos?” disseram as Trevas. “O real e o irreal, o tangível e o etéreo. Como você, Velian, que é ao mesmo tempo carne e espírito, gênero e ausência, desejo e dúvida. Você não é um reflexo de sua própria magia?”
Velian sentiu uma onda de exaustão, mas também uma centelha de compreensão. As Trevas não davam respostas; elas apenas ampliavam as perguntas. E talvez fosse isso o que ele precisava.
De Volta à Vigília
Quando despertou, estava de volta ao seu quarto. O silêncio e a escuridão eram os mesmos, mas algo dentro dele havia mudado. As palavras das Trevas ainda ecoavam em sua mente, suas dúvidas e desejos pulsando como uma melodia interminável.
Levantou-se, caminhando até a janela que dava para o mar. A cidade estava viva, mas parecia tão distante quanto as estrelas apagadas no céu. Ele sabia que retornaria ao castelo, mas por agora, precisava se perder mais uma vez entre os humanos, entre suas luzes e sombras, entre seus próprios desejos e dúvidas.
“As Trevas estavam certas,” murmurou para si mesmo. “Viver é desejar, e talvez isso seja o bastante, por enquanto.”
E assim, Velian saiu para a noite, carregando consigo as perguntas sem respostas, as incertezas que o definiam, e o desejo incontrolável de continuar vivendo — e duvidando.
Elas se calaram… as vozes do meu abismo. E agora perduro em Selenoor como quem a ela pertence, uma rainha índigo de sangue e solidão…