Castelo Vampírico — O bem que eu quero, esse eu não faço; o mal que não quero, esse faço

Imagem criada e editada por Sara Melissa de Azevedo para o Castelo Drácula

Diário de Rute Fasano

07 de janeiro? - Fiquei olhando por um tempo, ela deitada em meio a pedaços de vários tamanhos do lampião quebrado e ela já não era aquela criatura assustada de alguns momentos atrás, estava diferente. Ela percebeu que eu a estava observando, mas continuou a montar o lampião bem concentrada em sua tarefa. Me levantei e fui me sentar na cadeira de frente a escrivaninha, cansada do dia de hoje, cansada de tanta coisa que eu ainda teria que fazer e pensar em fazer, e esperei até que ela terminasse, ouvindo os sons sutis que ela fazia. Logo depois, saiu debaixo da cama devagar, trazendo o lampião consigo completamente montado e se sentou no chão de pernas cruzadas, parecia já se sentir à vontade no quarto e na minha presença. Me olhou com aqueles olhos profundos e falou:

— Eu sinto que isso é sagrado, mas não me recordo o que seja, apenas senti que precisava consertá-lo. — sua boca não se mexia, ela tinha voltado a falar dentro da minha cabeça de novo.

Ela levantou o lampião, intacto, sem ranhuras ou partes faltando, e o estendeu em minha direção para que eu pegasse. Seus olhos não se mexiam ou piscavam enquanto me observava, peguei o lampião e eu não sabia se deveria agradecê-la pelo conserto, mas ela esperava por alguma coisa. A situação já era estranha o suficiente para que eu enrolasse demais e não fosse direto ao assunto.

— Escute, você quer eu abra o livro não é, para que suas memórias voltem? — eu disse logo.

Ela confirmou com a cabeça.

— Mas pensando agora, você já esteve junto do livro antes, lá no laboratório, por que não o abriu?

Ela desviou o olhar e me respondeu:

— Há algo nesse livro que me impede de tocá-lo. Só sei que, por mais que eu tente, ele me rejeita, por isso preciso que alguém faça isso por mim.

Sua fala me deixou com um pouco de suspeita. Que tipo de coisa seria tão específica para mantê-la longe do livro?

— Você vai abrir o livro? — ela perguntou sem emoção nenhuma.

— Vou, mas com uma condição. Tem algo que eu preciso fazer, eu vou abrir o livro e te ajudar a lembrar, mas você tem que prometer que vai me ajudar também.

— Eu prometo te ajudar — ela disse e eu queria acreditar que ela falava a verdade, pois não conseguia interpretar suas intenções.

— Ótimo, então vamos começar — respondi.

Virei a cadeira de frente à escrivaninha e peguei o livro por baixo de uns papéis que utilizei para escondê-lo, a criatura se levantou e ficou em pé atrás de mim, esperando o livro ser aberto. A sensação de ansiedade, a vontade de escondê-lo novamente e deixá-lo pra lá, voltou, mas abri o livro. Algo estranho vibrava dentro de mim, e eu não sabia definir o que era. As páginas do livro amareladas, desbotadas, letras e imagens que pareciam vivas, comecei a sentir um desconforto se formar, uma dor que latejava e dava um gosto metálico à minha boca. As palavras não faziam sentido, tudo estava embaralhado, mesmo que eu tentasse focar nas palavras, elas pareciam dançar à minha vista e eram impossíveis de serem entendidas ou lidas. Pude sentir a frustração crescer dentro de mim, me preparei tanto para abrir esse maldito livro e agora não podia compreendê-lo, eu estava irritada.

— Você consegue lê-lo? — a criatura perguntou.

— Não, as palavras mudam, se misturam, parecem não querer ser lidas. — eu disse frustrada, e parecia que falar isso em voz alta para a criatura parecia me irritar ainda mais. — Preciso pensar no que fazer, prometi que iria te ajudar a recuperar suas lembranças e vou encontrar um jeito de fazer isso. Só que quero parar por hoje, o dia foi cansativo e um pouco frustrante, amanhã eu resolvo isso.

A criatura concordou com um leve inclinar de cabeça. Eu estava cansada, frustrada e algo dentro de minhas entranhas se movimentava. Fui dormir e a criatura se sentou na cadeira na frente da escrivaninha com o olhar fixo no livro que ela também não conseguia ler, ficou assim por horas enquanto eu me deixava ser vencida pelo sono.

08 de janeiro? — Fui acordada bem cedo por um som estrondoso, parecia que viria um temporal. Sem demora fui ao encontro do professor Monm, levando o livro. Eu precisava da ajuda dele, então fui incomodá-lo mais uma vez. Fiquei feliz por encontrá-lo, sentado em meio a livros. Quando me viu entrar, não vi surpresa em seu olhar, parecia que já me esperava. Dei bom dia a ele que me respondeu com sua cordialidade de costume, sentei-me em uma cadeira à sua frente e dei a ele o livro.

— Então, esse é o livro que tem tirado o seu sono?  — ele murmurou, passando a mão na capa de couro velha.

— Sim, eu tentei ler, mas as palavras se embolam. — disse, gesticulando ansiosa demais para me controlar.

O professor Monm abriu o livro e seu rosto ficou sério, concentrado. Os olhos correndo sobre as páginas. Então ele fechou o livro, olhou para mim e disse:

— Também não consigo lê-lo, Rute.

Eu fiquei irritada, eu sabia que não era culpa dele não conseguir ler o livro, mas acabei sendo hostil com o professor.

— Mas como? Você é o mais qualificado para isso, não é? — a irritação na minha voz me surpreendeu.

O professor esfregou o rosto e pude notar desconforto na sua expressão.

— Não é questão de ser ou não qualificado, o livro está protegido por alguma magia. Há duas forças agindo sobre esse livro, uma que a bloqueia para que seu conteúdo não seja compreendido e a outra é a alma de quem criou o livro, esta alma influencia o portador a manter o livro neste castelo.

— E como só de olhar para ele você consegue saber tudo isso? — disse confusa.

— Bom, não é a primeira vez que dou essa informação a alguém. — ele disse com um quase rir.

— Então o que pode ser feito? — eu disse respirando fundo e tentando manter a calma e já envergonhada por falar com o professor daquela forma grosseira.

— Talvez a criatura saiba a forma de desbloquear o livro, ela parece estar conectada a ele, talvez precisemos de magia para trazer suas memórias de volta, um ritual talvez? — ele disse isso olhando para criatura, parecia esperar uma reação dela.

— Um ritual? — eu disse aquilo quase sem acreditar que saía da minha boca, mas o que eu esperava agora senão mais coisas sobrenaturais fora do meu campo de experiência.

— Sim, um ritual, pode ser arriscado, já que não tem como prever a intenção da criatura, mas como você está tão convicta disso, acredito que vá querer arriscar? — ele me perguntou, mas parecia já saber a resposta.

— Sim, eu vou arriscar, mas quem realizaria esse ritual, não entendo nada de magia.

— A criatura é a única que tem uma real ligação com esse livro, se ela fizer esse ritual com você, talvez você consiga acessar as memórias dela e consiga desbloquear esse livro. — Monm disse.

Olhei para o livro e para a criatura, que ficou sentada em um canto da biblioteca apenas observando e esperando.

— Tudo bem, se é o que precisa ser feito, então vamos fazer. — me levantei já pegando o livro. O professor Monm concordou com a cabeça, sua expressão demonstrava preocupação.

— Eu posso te ajudar com isso sim, Rute, e encontrar alguém que faça o ritual, Ameritt talvez, se ela concordar, mas recomendo fortemente que espere, deixe que eu fale com ela, para saber se este é o momento propício para rituais.

— Mas por que preciso esperar? — falei me sentando de novo.

— Um fenômeno complexo vai se iniciar no castelo, Rute, o nemonium. E não tem como prever o que pode ocorrer se um ritual for iniciado durante esse fenômeno, consigo visualizar diversos resultados, mas não consigo prever com exatidão qual deles irá ocorrer. Ele é um lapso temporal, tudo fica fora de lugar, o castelo e tudo que há nele é levado para fora do seu limiar, tudo é realocado, fendas se abrem nas realidades infinitas dos multiversos e de todos os tempos e isso pode trazer seres desconhecidos. Então me ouça Rute, me deixe conversar com Ameritt primeiro, ela saberá o melhor a ser feito.

Professor Monm foi de encontro à Ameritt me deixando na biblioteca na companhia da criatura, sei que não deveria questionar a ajuda do professor Monm ou mesmo de Ameritt, mas às vezes penso se eles não teriam coisas melhores a fazer do que me ajudar nessas tarefas fora do comum. Alguns minutos depois ele voltou na companhia de Ameritt, o professor me disse que já havia explicado à Ameritt sobre o bloqueio do livro e da alma que estava nele. Ameritt então disse:

— Você sabe o que está pedindo, Rute-besin, entende o perigo disso?

— Sim, eu sei do nemonium. — respondi depressa — O professor Monm me explicou.

— Você entende que talvez o livro não possa ser lido? Que as lembranças da criatura podem não voltar, que se voltarem ela pode não ser o que você espera? E que a alma presa ao livro pode ser perigosa? Vai valer o risco?

— Só tem uma maneira de descobrir. — eu disse convicta. Ameritt me olhou por um tempo, me examinando. Parecia esperar que eu hesitasse, que eu desistisse da ideia.

— Eu farei o ritual, Rute-besin, não quero que sozinha você mexa com coisas que não entende, mas tenho algumas condições, você vai ouvir e fazer cada coisa que eu disser para ser feita.— sua voz estava calma, mas seu rosto tinha uma expressão dura. — Você concorda com as condições?

— Sim — concordei logo.

— Esse ritual de ligação é simples em teoria, porém bastante complexo na prática, isso vai requerer que você e a criatura se conectem mais profundamente, unindo a intenção de ambas, é bastante arriscado, Rute-besin, vocês vão estar vulneráveis a qualquer coisa. Você tem certeza de que quer continuar com isso?

Olhei para criatura e seu olhar não transmitia nada. Concordei com a cabeça.

— Então me siga, tenho um lugar perfeito para isso. — disse Ameritt, fazendo sinal para que seguíssemos ela.

Eu, a criatura e o professor fomos com ela até a estufa onde eu tinha encontrado o livro. Ameritt começou a pegar diversos itens em diferentes prateleiras, velas, sal grosso e ervas secas.

— Vou traçar um círculo de proteção, vocês ficarão dentro dele, esse círculo vai impedir que qualquer coisa entre ou saia do círculo. — ela disse isso enquanto organizava os materiais no chão. Ela colocou o livro no centro do círculo e explicou:

— Você precisa tocar o livro, então você será uma ponte para que as lembranças se revelem. A criatura irá te tocar, eu recitarei um encantamento que vai forçar o livro a revelar as lembranças para vocês.

Ameritt acendeu as velas ao redor do círculo de sal e ervas, murmurando palavras em uma língua que eu não entendia. O professor Monm, no canto perto da porta, estava calmo; verificando, de tempos em tempos, seu relógio de bolso. O ar começou a ficar mais denso, Ameritt pediu para que entrássemos dentro do círculo, eu me sentei, a criatura se ajoelhou na minha frente e o livro entre nós.

— Coloque suas mãos no livro, Rute-besin — ela ordenou, olhou para criatura. — E você toque nela.

Coloquei as mãos sobre o livro, sua capa fria e áspera, a criatura ajoelhada de frente a mim, estendeu as mãos e a pôs devagar sobre a minha cabeça. Ameritt começou a recitar o encantamento, sua voz ia ganhando ritmo e vibrava dentro daquele local, o livro começou a aquecer. Olhei para a criatura e seus olhos começaram a brilhar com uma luz dourada e intensa. Fechei meus olhos e senti algo dentro de mim ser puxado para fora, como se algo externo estivesse tentando fazer o que estivesse dentro de mim sair para que tomasse seu lugar.

— Concentre-se, Rute-besin, mantenha o controle. — gritou Ameritt.

Mantive meus olhos fechados e me concentrei na voz de Ameritt, me concentrei em trazer as memórias da criatura de volta. E de repente o mundo a minha volta desapareceu, minha mente se tornou vazia, apenas trevas e silêncio; depois sussurros, vozes, gritos de horror e lamentos. Mantive minhas mãos sobre o livro, e senti uma energia me atravessar como um soco no estomago, tão forte que parecia me ultrapassar. Minha mente foi preenchida de lembranças que não eram minhas, sons que iam aumentando de intensidade até se tornarem imagens bem vividas, florestas escuras, sangue, medo, morte, assassinato, um desejo incontrolável de fazer o mal, uma grande figura esculpida em pedra escura vestindo um manto negro. Eu sentia a criatura vibrar, suas mãos apertando minha cabeça, seus dedos entre meus cabelos pressionando e vibrando, eu ouvia palavras incompressíveis. As imagens pareciam ficar mais claras, eu via uma mulher correr para dentro de uma catedral imponente e escura.

As imagens ficaram mais rápidas, como se jogadas no meu cérebro uma atrás da outra, algumas rápidas demais para que eu pudesse acompanhar e guardá-las em minha mente. Eu via a mulher vestida de preto, vi sua alegria enquanto tirava a vida dos que cruzavam seu caminho, eu vi o livro, depois ela entrando no castelo Drácula, ela tirando a vida de outras criaturas com um olhar impassível. A última imagem era a mulher falando palavras que eu não conseguia entender e depois somente vazio, o nada. As imagens se dissiparam e finalmente eu consegui abrir meus olhos, olhei para criatura e seus olhos bem abertos brilhavam com uma luz azul muito forte que também saía de sua boca escancarada. A única coisa que eu conseguia sentir ao olhar para ela era medo e repulsa, me desvencilhei dela, me levantei e sai correndo, Ameritt continuou proferindo o encantamento e Monm, em vão, gritou para que eu continuasse dentro do círculo.

Corri para fugir daquela vontade de fazer o mal, e me vi dentro do castelo, a temperatura despencava com violência, e o frio que eu estava sentindo naquele momento era incômodo e devastador. Caminhei pelos corredores do castelo, me arrastando, eu estava perdida em lembranças que não eram minhas, pensamentos e vozes que eu não conseguia controlar. Os fragmentos de lembranças da criatura queimaram a minha mente, desesperança, desprezo, raiva, um vazio que eu não conseguia preencher, eu me sentia um nada, um sussurro sem uma origem, um ser sem forma, apenas uma vontade vazia de sentir. Pelas janelas do castelo eu via uma tempestade de neve a cada minuto ficar mais agressiva, junto com sons de trovões que pareciam fazer meu interior vibrar, escorada nas paredes do castelo eu conseguia sentir ele também vibrar.

Um trovão ressoou e o som da ventania parecia um lamento, eu sentia estar perdendo a sanidade, eu não conseguia me controlar e voltar ao ponto de equilíbrio dentro da minha cabeça. Os corredores pareciam ficar mais escuros e dentro de mim eu desejava que fosse a falta de iluminação e não um princípio de desmaio, a escuridão começou a ser tingida de uma azul acinzentado, ganhando cada vez mais intensidade. A cada corredor que eu passava para chegar ao meu quarto, comecei a observar que todos os quadros e espelhos estavam cobertos por um manto negro. Tudo parecia tão sufocante, tão odioso e desprezível! Um estrondo cortou o ar, que fez meu coração disparar, meu olhar foi atraído para um dos espelhos cobertos que estava à minha esquerda, parecia pulsar como um coração assustado, e eu juro que eu ouvi minha própria voz sussurrar dentro daquele espelho, as palavras no início não pareciam claras, o som da nevasca lá fora parecia impedir que eu entendesse, até que a voz aumentou e eu a ouvi soltar essas palavras:

“Você não suportou o sofrimento dela, não é? A infelicidade dela te fazia infeliz e você deu um fim a isso.”, “Você queria matá-la, você desejava isso tão profundamente que não conseguiu resistir ao impulso, não foi? E agora não consegue lidar com a culpa.”, “O amor sujo e indigno que ela tinha por você foi o que a enlouqueceu, você não soube lidar e deu fim a isso, não foi?”, “Você a fez pecar, prometendo que sempre estariam juntas, e agora ela está morta e você ficou feliz por isso, confesse!”

Eu não conseguia me afastar, e um impulso tão visceral quanto o desconforto que eu estava sentindo me fez ir até o espelho. “É apenas um espelho, não há nada lá.” eu disse pra mim mesma, tentando me convencer da lógica, tentando colocar a razão no controle. Eu ergui o manto e a criatura que apareceu no espelho era um pesadelo esculpido em carne, sua pele pálida e bastante esticada sobre seu corpo grande, veias pulsantes, olhos sem íris e retina. E o seu sorriso horrendo com dentes, muitos finos feito agulhas, que me fez congelar. Por uma questão de segundos, achei que aquilo era o meu reflexo, que o ritual, as lembranças, toda aquela confusão e ódio, tinha me transformado naquela criatura horrenda, e não nego que seria um castigo muito bem-merecido por todo mal, que naquele momento, eu estava desejando fazer. Aquele ser cheirou o ar em minha direção, ainda dentro do espelho. Joguei o espelho no chão, que ficou em pedaços, respirei aliviada apenas para logo depois sentir algo apertar meu calcanhar, o que me fez cair no chão com um som abafado e batendo minha cabeça na queda. Eu estava sendo puxada para dentro dos fragmentos do espelho por um braço longo, eu não tinha forças para me desprender, estava tonta e fraca, não tinha forças para lutar contra. Um brilho, então, azulado e muito forte, preencheu o local onde eu estava, fazendo a criatura do espelho guinchar e soltar meu calcanhar. Alguém tinha vindo em meu socorro.

Texto publicado na Edição 13 da Revista Castelo Drácula. Datado de fevereiro de 2025. → Ler edição completa

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