Sacrifício
854 D.C.
A tempestade torrencial açoitava a pele exposta de Mericus na escuridão da noite enquanto ele fazia o caminho para seu casebre. Resmungos pecaminosos escapavam de seus lábios enquanto a Morte dominava seus pensamentos.
Conseguia ver no horizonte a fraca luz do lampião pela janela do abrigo na floresta. Estaria ela ainda viva? Aguardando-o com o singelo e fragilizado sorriso que carregava há anos.
Abriu a porta feita de tábuas podres e empenadas e entrou em um cômodo único que não oferecia nada além de um teto de palha contra as intempéries do tempo.
Isabel estava deitada no chão de terra batida próxima à fogueira no centro da habitação. Coberta de suor, abriu os olhos com dificuldade ao ver o pai. Mexeu a boca para saudá-lo, mas a voz foi interrompida por uma crise de tosse que cobriu uma parte de seu rosto com sangue.
Mericus atravessou o ambiente correndo para se aproximar e cuidar dela. A jovem estava quente como se tivesse saído de um forno.
— Pai, está frio demais, dor demais… — Novamente a voz foi interrompida por outra crise. Mericus passou a mão na face dela para limpar o delicado e pálido rosto.
Há anos ele vivia para o trabalho na lavoura, trocando o que produzia por possíveis medicamentos ou tratamentos, mas a tosse com sangue não cedia e estava cada vez pior. Nunca a viu naquele estado antes. Pequena, magra como uma tábua e com não mais que quinze invernos de vida, agora estava branca como a lua que iluminava noites mais felizes.
Na última tentativa de tratamento, procurou a velha bruxa caquética que vivia na orla do vilarejo, o tipo de envolvimento que poderia acabar com ele sendo queimado na praça. Esse risco lhe rendeu um frasco sujo com um líquido preto e viscoso que só fez Isabel vomitar copiosamente por dias.
Agora começava a cogitar assaltar mercadores ou pessoas desprevenidas na estrada, talvez conseguisse juntar o suficiente para visitar o médico do duque na fortaleza próxima e…
Três pancadas altas vieram da porta, interrompendo-o abruptamente de seus devaneios. Não tinha nada de valor, mas Mericus apanhou o arado que estava próximo e abriu a porta, apontando o utensílio com falsa coragem para o visitante.
O sujeito era curioso, para dizer o mínimo. Pouco maior que a cintura de um homem adulto, com uma careca com tufos claros e parcos, usando vestimenta do mais fino trato que já vira, carregava um bastão com uma lanterna que iluminava metros na escuridão. Ele estava seco, como se não houvesse tempestade.
Ele abriu um sorriso sem dentes e lambeu a gengiva exposta entre o vão dos dentes frontais, como se saboreasse algo que estava guardando para um momento especial.
— Belíssima noite, Mericus. Ela ficará ainda mais bela em breve, lhe garanto. Me chamo Igor… O senhor do meu castelo convida-o ao nosso jardim. Soubemos que procura tratamento para sua filha.
— Como sabe da minha filha? — Ele balançou o arado contra o sujeito.
— Guarde isso antes que fure seu olho, rapaz. — Igor sorria com a boca desdentada e a gengiva inflamada. — Agora me siga antes que seja tarde demais para a pequena. É visível que ela está tendo uma péssima noite.
O homenzinho virou de costas sem esperar resposta e seguiu para o meio da floresta, alheio à tempestade que caía. Mericus, desesperado, aceitaria uma oferta até do diabo a essa altura. Largou o arado, cobriu a filha e a colocou no colo com cuidado, correndo para acompanhar a forte luz na escuridão.
Como se fosse mágica, rapidamente se encontrou fora da floresta em uma noite iluminada e sem chuva, à sombra de belas torres que nunca havia visto antes. Muralhas dignas de fortalezas se estendiam até onde conseguia ver. Havia um lago grande com águas estranhamente serenas que refletiam a lua como um espelho. Ocorreu um breve pensamento sobre como nada daquilo fazia sentido, mas apenas Isabel importava; qualquer reflexão diferente era rapidamente apagada de sua mente.
O homem andava em um ritmo acelerado demais para o próprio tamanho. Mericus, que sentia dores tremendas em todo o corpo por anos de trabalho pesado, tinha uma dificuldade séria em acompanhar o passo dele.
Igor parou de andar à porta de uma bela estufa, vasta e rica como os salões vikings das lendas que ouvia entre as raras bebedeiras que tinha com mercadores viajantes. Todo o trabalho metálico era feito de ouro. Ele olhou para Mericus, lambendo a gengiva novamente com júbilo enquanto observava o pai e a filha se aproximarem.
— Ameritt irá recebê-los. Aprecie sua estadia pelo tempo que for necessário. Alimento lhe será fornecido em breve. — Igor fez uma mesura tão profunda que quase encostou a testa no chão. Por alguma razão algo naquilo parecia ser chacota.
— Por que eu? O que esperam de mim em troca do tratamento da minha filha?
— Não será requisitado nada que não possa pagar. Nosso mestre é caridoso, quando lhe convém. Agora vá, encerre o sofrimento de sua filha. — Ele se virou e, com impressionante agilidade, se retirou para além da visão, deixando para trás apenas o rastro luminoso do lampião.
Mericus fitou a maçaneta de ouro com formato de rosas da grande porta dupla. Girou-a e foi prontamente engolido pelos variados cheiros de plantas que nunca vira. Na fraca luz das tochas, podia-se observar os mais variados tons de cores exóticas, raramente vistas aos olhos humanos. Em meio ao caos de tons, havia uma abundância de besouros verde-esmeralda que produziam um chiado constante, como se fosse uma música alienígena.
Camuflada entre a vegetação, uma senhora de idade avançada, mas ainda jovial, o observava. Ele podia jurar que, por um breve segundo, viu algo como pena em seus olhos, mas isso foi rapidamente substituído por um semblante de calma e simpatia. Ao lado dela, havia uma série de frascos estranhos com líquidos fumegantes e fogareiros.
— Seja bem-vindo, Mericus-besin e filha. Esta é a estufa Agrilus, meu pequeno pedaço de céu. Soube pela minha amiga da vila da triste situação de sua filha…
A porta se fechou sozinha atrás dele, talvez por causa do vento. Ele adentrou o recinto e se aproximou da senhora, sentindo-se observado por tudo que ali respirava.
— Obrigado por me receber, Ameritt. Tenho certeza de que minha filha também está muito grata pelo que está se oferecendo a fazer por nós. — Mostrando algum sinal de consciência em meio ao sofrimento, a pequena Isabel acenou com a cabeça.
— Não se preocupe. Agora a coloque na mesa; vamos deixá-la descansar. — Ameritt olhava fixamente as manchas de sangue que cobriam a face e a roupa da menina. A senhora emitiu um discreto estalo de insatisfação com a boca. — Será complicado e dolorido, mas vocês estarão saudáveis em breve.
— Como assim, "vocês"?
— Você está infectado também. — Respondeu Ameritt, mirando Mericus nos olhos, lembrando-se da precariedade que era a saúde e a higiene no período histórico do qual eles vieram.
Mericus acenou com a cabeça, tomado agora pela certeza da morte que o aguardava.
— Aos fundos desta estufa há uma árvore que está morrendo, mas que ainda carrega um único fruto. Pegue-o e traga aqui; vou começar a preparar o rem… poção que vocês irão tomar.
Ele deitou a filha sobre a mesa coberta de besouros que correram alucinados pela estufa. A respiração da menina emitia um chiado medonho e um cheiro podre subia da boca aberta dela. Fria como uma pedra, era evidente que ela não aguentaria muito mais. Era tudo ou nada. Ele respirou fundo; tinha muitas dúvidas, mas apenas havia esperança dentro de si. Encarou os olhos impassíveis de Ameritt por alguns instantes e seguiu para onde foi instruído.
A cada passo, a estufa ficava mais silenciosa e escura. Podia ouvir o barulho de seres desconhecidos se movendo rapidamente em meio à vegetação densa e alienígena.
Dentre todas as árvores que se encontravam dentro do ambiente, a que ela havia mandado procurar era a maior e, sem dúvida, próxima ao fim de sua existência. Não havia barulho algum ali, mas uma camada de besouros cobria o tronco como uma segunda casca inerte. Aquilo trazia a sensação avassaladora de estar sendo observado por milhares de pequenos olhos.
O fruto era vermelho, de um rubro sem igual, grande como a cabeça de uma pessoa adulta. Ele se esticou para alcançar o objeto de desejo sem sucesso. Saltou e sentiu a mão fechar sobre ele; houve resistência e, com um estalo alto, o galho cedeu. Revoltados com o incômodo, centenas de insetos voaram em protesto pela estufa.
Em meio à nuvem verde-esmeralda, Mericus levantou-se aterrorizado e correu às cegas para a entrada da estufa, carregando o grande fruto embaixo do braço.
Felizmente, ele chegou ao espaço onde a luz das tochas iluminava o ambiente; ali, por alguma razão, os besouros pareciam não se aventurar de forma tão agressiva. O olhar fulminante de Ameritt, no entanto, não o trouxe alívio.
A senhora demonstrava verdadeiro desconforto com algo que havia acontecido.
— Tudo bem, meu Mericus-besin? Está suado. — Ela abriu um sorriso falso, comum ao que se dá a visitas indesejadas que não saem de casa.
— Que merda são esses besouros? Eles me atacaram! Ou… não sei o que foi isso, pareciam me atacar.
— Lembre-se que aqui você é o convidado. Incomodar os moradores é rude. — Apanhou a fruta sem esperar a resposta, colocou-a próxima a cabeça de Isabel e com um único golpe ágil e forte de facão o dividiu em dois, regando os cabelos da menina.
Saía um belo líquido vermelho como vinho do fruto rico em nutrientes, cheio de vida e beleza. A velha espremeu a fruta sobre um caldeirão fumegante, tirando até a última gota. A espessa mistura chiava e borbulhava a cada gota que caia.
— Abelarda, a bruxa da sua vila, me contou sobre Isabel… Onde está a mãe dela? — A palavra "bruxa" foi enunciada com um certo desprezo, misturado ao evidente tom de raiva que emitia.
Com o coração ainda batendo na boca, ele respondeu com dificuldade:
— Morreu no parto. Isabel nasceu prematura e sempre foi muito doente. Há anos, tudo se resume a mim e a ela. Sou tudo o que ela tem, e ela é tudo o que eu tenho.
— Entendo. Parece ser um pai dedicado. Bom saber que há alguma vida que você respeita. — Ela discretamente observou o fluxo dos besouros ao fundo do recinto enquanto mexia a mistura, que ficava cada vez mais espessa. Um cheiro estranho e doce acompanhava a fumaça que subia. — Conte-me, o quanto estaria disposto a se sacrificar por ela?
— Morreria por ela, sem pensar. Qualquer coisa para vê-la feliz novamente.
Ameritt acenou conformada. Pegou uma caneca e, com hesitação, a encheu com o líquido quente, soprou sobre ele e entregou a Mericus.
— Prove, para saber o que será dado à sua filha.
Assustado com o líquido brilhante, olhou para a filha, que tossiu violentamente, como se a incentivasse. Sentiu uma tremenda dor no peito; havia perdido tudo na vida por ela e daria muito mais se fosse necessário. Segurava em sua mão uma possível cura, e era isso que importava.
O cheiro era doce e convidativo, e a aparência era mais atraente do que outras coisas que já dera a ela. Viu o ingrediente que fora usado: uma belíssima fruta.
Deu um gole farto.
O líquido parecia mel de tão doce; a textura também era similar. Sentiu o corpo se aquecer quando aquilo atingiu o estômago; as dores devido ao trabalho pesado que o acompanhavam há anos cederam e sumiram logo depois. Sentiu-se jovem, como se tivesse novamente vinte invernos. Sorriu de orelha a orelha, olhou para a senhora com alegria e reparou que ela também sorria, mas era um sorriso sincero desta vez.
— Bom, não? Agora vá para o fundo da estufa novamente, para descansar. Darei a poção para Isabel e ela o encontrará em seguida.
Atônito com o resultado, seguiu o comando sem emitir palavras. Sentia cada fibra do corpo como se fosse a primeira vez. A musculatura parecia ficar mais rígida a cada momento.
Chegou à árvore que definhava. Sentou-se ao lado dela, em meio aos besouros, e agradeceu pelo fruto salvador.
Mericus adormeceu e, enquanto sonhava com o sorriso da filha, raízes rasgaram sua pele com tremenda violência, enterrando-se no chão e conduzindo o sangue à terra, fertilizando o solo do Castelo sedento.
O corpo irreconhecível rapidamente foi tomado por uma nova forma, transformando-se em uma grande e forte árvore que aguardava a companhia gentil de Isabel pela eternidade.
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível…