Capítulo 6 — O Piche do Oblívio
As sombras eram solecismos factuais; um ruído medrava-se horrífico. Algo físico entre nós inibia-nos, impedindo quaisquer aproximações; uma divisão vítrea, perceptível aos nossos olhos, tinha um agudo e longínquo sonido, contínuo como as nódoas negras enervantes, símeis ao nanquim aguado nos recônditos do olhar, tecendo um manuscrito de horror. As chamas da lareira, que eram, pouco antes, fogo lúcido, criavam oscilações além de sua estrutura de pedra, acendendo um fogo estirado pelas trevas, como o lume do sol radiante em raios de sua grandeza e poder; porém, contornado pela escureza hostil, desafiava a lógica da constituição primordial da própria natureza da luz. Parecia-me que aquele lugar, uma adega de raros vinhos e licores, outrora fora uma sala aconchegante ou, quiçá, há de ser, pois o tempo ali era apenas um pêndulo tardio de um nada além.
— O que é isso...? — ouvi de Anton. Sua voz era firme e baixa, ecoava pela dimensão, pois esta se tornara uma dimensão entre dimensões; eu sentia e admirava o derredor. No soturno de minh’alma, como se houvesse um pássaro morto entre os meus pulmões, fleumática em fascínio, eu sentia... enquanto a realidade se desestruturava. Havia apenas eu e os olhos atentos de Anton, embaçados pela vítrea fragmentação. Meu corpo era a leveza de um rio, mas o medo não perdoava, e em sua verdade não habitava clemência.
— Tu sentes também, não sentes? — indaguei-lhe, fragilizada. — Anton... — chamei-o outra vez. — Nada aqui é o que nos parece ser. — Confuso, com a fronte crispada, ele tentara tocar a divisão que nos separava; foi em vão.
— Quem é você, Áurea? — Dissera, com tal amaro timbre, firme e tenso. — E por que estou aqui, ao seu lado, mas tão distante? — As dúvidas eram os vultos que emergiam no breu que expandia; vi, entre os barris de vinho e a antessala com a lareira, um frondente piche n’uma cinesia mórbida. Almejei responder à Anton o que eu era de fato, mas o piche... tinha forma humanoide e a sua inominável presença adulterava minhas ações, inibia-me em quaisquer desejos, sufocava minhas cordas vocais. Olhei para Anton, devagar. Tudo se paralisou, o recuar das águas antes do dilúvio. E o silêncio, outra vez. O piche era o símbolo do eterno retorno do que não ocorrera; eu intuía, pois, vi o diário de Anton em suas mãos e o vi, igualmente, na poltrona que outrora me sentei. Dois diários, dois tempos. Havia, nas paredes, fissuras imemoriais, condenando um fim perpétuo de algo, em alguma instância, e no vítreo, rachado símil, ainda nos separando, eu vi... a mim mesma... refletindo...
— Talvez, — Minha voz falhava, pois o temor ascendia pútrido e instável. — Não sejamos mais do que reflexos de algo imensurável, o qual está além da compreensão. Temo que… estejamos confinados em uma armadilha incorpórea… — Proferi, fraca. Quase não via mais Anton e o piche voltou a se mover em minha direção; quebrando a quietude, grunhindo algo similar a um poço de águas pútridas. Só eu o via...? Não sei dizer. Quiçá o seu horror e as suas correntes que se arrastavam pelo assoalho fossem tudo criações ilusórias do meu oblívio... e o cheiro hórrido... a consistência... apenas mais um falso murmúrio.
Inerte, então, ouvi o solfejar do piche do oblívio... entre a voz doce de uma criança que, longínqua, conversava, remansada, sobre frutos. Um bombo grave carregava um peso sôfrego enquanto o piche cantarolava ao tilintar de suas correntes mortíferas. Cada vez mais próximo. Eu não podia me mover. “Às vezes.... as coisas mais... estranhas... podem ser as mais...” — Ouvi, entre ruídos. “As mais...” — Repetia-se. “As coisas... estranhas...” — Repetia-se. “Estranhas... Às vezes...” — E o bombo mais e mais violento. O piche alcançou-me a pele pálida. “Nunca vi uma fruta tão estranha!” — A criança indagara. Olhei, aterrorizada, para a criatura, e seu piche manchava-me o corpo, caindo sobre mim. O bombo transfigurou-se em um zumbido agudo e distorcido no instante cruel em que a dor... aquela dor... me acometeu impiedosa.
Abaixei-me, levando minhas mãos à cabeça e ao peito; a dor alastrada como gritos de pavor de centenas de pessoas em um amontoado vil e repulsivo; gritos e ruídos... gemidos de agonia e tortura, tudo no âmago meu, na carne minha, nos órgãos e entranhas. Dor. A pior de todas as dores. Ausência de ar, falta, falta, falta de ar... e dor... dor... sobre a imagem de um mercado, crianças e Anton, segurando um fruto. Ao seu lado uma mulher de rosto rosáceo e tenro. “Minha Áurea, o amor pode nos levar por apavorantes veredas... e mesmo assim... ainda será amor...” — Mesmo longe, o sussurro da mulher viera aos meus ouvidos. Eu apenas pude gritar, toda a algia levava-me a tremer e meus olhos vibravam, eu nada mais via além da memória.
Entardecer laranjim... uma respiração viril advinha do piche... entre o presente e o passado. A mulher era símil a mim, porém, envelhecida; seus cabelos eram grisalhos e estar ao lado dela me aprazia. “Uma torta de romã, Áurea” — Dissera. E vi-me uma petiz menina, caminhando descalça por uma casa de madeira até encontrar um homem de olhos negros, sem esclera. Sua mão em meu pescoço e eu já não era mais juvenil; ele tinha ódio de mim, ódio enraizado e pulsante como uma artéria. “Morra, traidor!” — Vociferara. Traidor? De súbito, uma criatura única, símil a um dragão, mas com corpo de cobra e crânio de corvo, a mesma criatura refletida nas águas pertencentes à Lahgura, olhava-me com ternura e eu a acariciava, dando-lhe, em seguida, pétalas de Cestrum Nocturnum. Ela parecia degustar da iguaria, em gáudio. “Ela sofrerá?” — Vi-me questionar, olhando para Lorrt cuja face era perfeita e os olhos intensos em carmim. “Eu prometo que não.” — Respondera, beijando-me os lábios em seguida; sua voz era paternal. “Eu... não queria vê-la morrer...” — Confessei, com lágrimas nascentes e já tão célere vertidas, eu as sentia aquecer meu rosto, como um orvalho de verão. “Tu não verás, estarás adormecida e protegida. Confie em mim, pequena luz.” — Ainda paternal, Lorrt segurara minha mão, caminhando comigo pelo jardim. A criatura mítica nos seguia, como se soubesse o seu destino.
— Por favor... me diga o que fazer! — A voz agora era de Anton, em inominável frustração, contudo, a dor vinha do piche que me cingia respirando, e eu não podia falar, pois meu coração palpitava em frenesim enquanto todo o meu corpo congelava em sofrimento e temor; a agonia da dor era como uma tortura da morte, brincando de rasgar minha tez com sua foice envenenada. Olhei para Anton, minha decadência eclipsava sua imagem. “Não... posso... compreender... Anton.... por quê...?” — Lamuriei, sobretudo, o piche penetrara-me os olhos e sussurrara-me meu nome... “Áurea... Lihran...”; meu grito de desespero tinha sabor de barbárie, pois o horror do martírio tornou-se atrocidade desumana. Asfixia outra vez, o torso oprimido; meus olhos ardendo pelas correntes que o invadiam e, quando as lembranças vívidas se tornaram sangue, tudo se desfez a uma adega frígida e escura. E a minha vestal solidão.
— Áurea! — Ouvi. Seth, com sua voz grave, indicava uma aflição sobre mim. Senti suas mãos em meu corpo; no dorso e no colo. Mantive-me olhando para o chão, lacrimuriando.
— Era... Aborom... — Sussurrei, pois, lembrava-me. — Nós... festejávamos... — Insisti. Na lembrança, o sol era a grande pupila do infinito, como um eclipse amornado na imensidão laranjosa. Reuníamos para cozinhar com grãos rústicos. Parte de uma cultura que pertencia a mim, parte de meu lar. — Ela estava lá... minha querida mãe... — Lágrimas na entreluz do cômodo gélido. Pranto entre soluços de uma tristura irremediável. Seth abraçara-me.
— Está tudo bem, estou aqui... — dissera, contudo, doía no peito; nas emoções dilaceradas pelo piche do oblívio quebrantado no horror de uma vivência pavorosa. Fui levada aos braços de Seth, por ele, envolvida e acalentada, enquanto a voz de minha mãe ressoava e a saudade era a pior de todas as angústias que, desde meu despertar, vivenciei.
— Eu não os verei novamente... — Murmurei. Lorrt sorria em minhas visões profundas; mamãe servia-me um pedaço de sua torta de romã. Almejei sucumbir à Rosaemori, para não lembrar. A chuva fina era uma cortina natural às janelas, aguando os jardins que em âmbar refletiam. Rostos opacos, semblantes apagados, no entanto, um júbilo aprazível envolvia-os todos, todos nós; e quanto afeto residia no aroma de abóbora-doce com canela, abóbora-cabotiã e cumaru, abóbora-moranga e leite de coco! Saladas frescas com manjericão igualmente... crianças correndo entre os móveis de cedro. “Doces ou travessuras?” — Eu ouvia... eles brincavam enquanto eu colhia algumas calêndulas na estufa. “Travessuras, é claro!” — Dizia-lhes e logo, sob distrações com as pétalas perfumadas, eu era assustada por suas máscaras grotescas, pintadas com óleo de linhaça e cúrcuma seca e moída. Eles gargalhavam... pequenas criaturas inocentes... tão só meninos e meninas... tão só pequenos rebentos da vida em... Numnura...
— Verás sempre, na lembrança... — Respondera Seth. Então o olhei. Seus olhos eram azuis.
— Onde está o pretume de teus olhos de arcanjo? — Indaguei. Teu sorriso emergiu como um cândido sol no horizonte.
— Creio que nunca olhaste, de verdade, para mim... — Redarguiu cordial. Então o olhei. Havia uma cesura próxima ao seu olho esquerdo; sua pele era bela. Duas curvas no centro de sua fronte assemelhavam-se às hastes de um cervo. Havia outra cicatriz em seus lábios e nela toquei com a ponta de meus dedos trêmulos. — A queda... é sempre dolorosa... — Proferiu enquanto em seus lábios repousava meu toque tenro.
— Arcanjo caído... — Sussurrei. Seth segurou minha mão, afastando-a de seus lábios e acariciando-as lentamente. — Por onde esteves? — Ponderei.
— Estive no inferno...— Dissera em seu ninho de pensamentos. Acarinhou-me a maçã do rosto.
— Como é lá? — Meus olhos exaustos piscavam na lentidão de meu coração não mais frenético, embalado pela tristura da saudade e o ardor do corpo de Seth.
— Grandioso... uma eterna noite carmesim em névoa negra; há rubi nas frestas ornamentais das residências e, muito mais, no alcácer de Lúcifer. Há um flúmen de lava cujo curso se esparge por todo o reino e o mármore bruto se forma às margens deste tórrido caudal, matéria-prima que esculpe as estátuas de beleza núrida — as quais estão por todo o reino — e o alcácer, de perfeição inenarrável, do A Estela da Manhã. A flora é seca, exceto pelos arbustos de nutrúrnias, flor símil às dálias, porém, com pétalas em voluta, formando um redemoinho escarlate; são leves, abrem-se ao soprá-las. São brilhantes em cor negra-etérea com nuances rubras. Espinhosas como as rosas.
— Belo... e tão... sui generis... — Respirei fundo. — Traga-me uma nutrúrnia de lá? — Sussurrei com a voz embriagada de sono.
— Farei o possível... — Aproximou-se de mim e beijou-me os lábios que há pouco tocara com seus dedos. Sua boca era aquecida, quiçá como parte da aura do inferno. Seu beijo demorou-se à suavidade do toque de nossos lábios. Fechei meus olhos e senti. “Sseri morttiss ssamor ssinnihcuoss emtriss humaniss. Sseri morttiss ssamor ssinnihcuoss emtriss humaniss. Sseri morttiss ssamor ssinnihcuoss emtriss humaniss...” — Ouvi, como centenas de vozes sibilantes. Em uníssono. Arrepiaram-me a tez de imediato dada a assombrosa essência que possuíam. Não eram as mesmas de Seth em minha mente. O beijo cessou logo depois do estranho idioma murmurado, acabou por me despertar do relento. Olhei para Seth e pensei em indagá-lo, mas, silenciei, pois, seus olhos cerúleos pediam contemplação. Seth veio aos meus lábios outra vez. “Sseri morttiss ssamor ssinnihcuoss emtriss humaniss.” — As vozes. E o beijo se intensificara. “Sseri morttiss ssamor ssinnihcuoss emtriss humaniss” — mais uma vez. Lamuriei, indo contra o corpo de Seth, sentando-me sobre ele, cruzando minhas pernas ao seu redor. Um beijo de ardor profundo. “Sseri morttiss ssamor ssinnihcuoss emtriss humaniss, esspussess erebriss daemoniss ssaeiva enssnura” — Os sussurros pareciam queimar-me a tez. Seth gemia um prazer único e eu sentia sua rigidez. “Ssaeiva enssnura voluass”.
— Áurea... — Murmurou, afastando-me de si. Olhamo-nos, ofegantes. As vozes cessaram, elas sobrestavam quando não nos beijávamos. — Preciso ir... — Revelou.
— Para onde, Seth? — Temi a solidão e o quanto minhas novas memórias se alastrariam nela.
— Para o inferno...
— Por quê? Por que agora? — Supliquei.
— Buscarei tua nutrúrnia. — Dissera com a voz tenra e assim fez-me sorrir, todavia, a tristeza era como um piano ao fundo de todo o horizonte de meus sentimentos. Fui levada para meu aposento, nos braços de Seth; posta ao leito confortável em veludo negro após ser despida pelas mãos de meu arcanjo, devagar, senti-o afagar, em silêncio, a minha pálida pele, e fui vestida, em seguida, com um damanoute carmesim — escolhido por Seth, que olhava para as janelas de minh’alma a quase todo instante, exceto quando abaixara-se para retirar minhas vestes, onde pôde apreciar cada detalhe de minha estrutura física, ao menos por instantes. Beijou-me, por fim, no centro de minha fronte e esvaiu-se em sombras após um salaz “até breve”. Eu estava só. E adormeci só. E sonhei.
Afundavam-se os meus pés nas rubras areias de uma paisagem desértica; dunas infindas d’esta areia concebiam um horizonte estonteante e sombrio. Sopravam-se os ventos frígidos em contraste com o que, sob meus pés, era cálido, pois, sobre mim e sobre as areias carmim, um sol no firmamento conduzia-nos seu mormaço tão característico. Entre espessas nuvens negras, clareiras de seu luzir invadiam as dunas que refletiam a vermelhidão transfigurando o céu numa celestial cinesia entre escuridão, sangue e luz. Neste vertiginoso cenário, eu caminhava em busca de sentido e, admirada com tamanha perfeição, quis compreender aquilo que somente a intuição é capaz de assimilar.
Aos poucos, formava-se a calima, pois a inclemência da aragem era real, tanto que revoava meus cabelos de modo a dar-lhes nós em suas pontas; contudo, ainda que ébria de um medo puro — pois, percebia fenômeno grandioso ser composto por um perigo inominável — eu andejava, guiada pela mesma busca eviterna. Foi então que vi aquela mulher, tão semelhante a mim, em seu vestido negro que, feito de renda e cetim, esvoaçava como seus e meus cabelos; ela estava parada em uma alta duna, observando um homem que, ao seu lado, semi-ajoelhado, lhe oferecia um anel de ônix com um rubi lapidado em prisma. Corri como pude, tentando alcançá-los; pensei que poderia ser mamãe, no entanto, já bem próxima, vi que era, pois, eu mesma; e o homem era Lorrt. E o que se assemelhava rubi, era sirenniha diamantada, com o vermelho das dunas refletido; e o ônix era, na verdade, obsidiana em cortes geométricos. Não sei como soube disso, mas eu soube. “Lorrt!” — Vociferei ao notá-los, ambos, desaparecendo como miragem. Não chamei por mim.
Caí sobre as dunas escarlates e chorei; um pranto de licor rubi-áureo que vertia em minhas mãos pálidas e areadas pelas partículas. “Eu te amei...” — Sussurrei, como se ele pudesse ouvir. Quando tive forças para fitar o horizonte da outrora miragem, o que vi foi mamãe; agora sim era ela e não havia outra de mim; era ela, olhando-me de longe, sorrindo com dulcífera candura. Levantei-me aos tropeços, a calima se intensificava e meus olhos semicerravam. Mamãe, cujo nome eu não lembrava, segurava em suas mãos uma romã partida e vestia-se com vestes marfim, suaves como o seu semblante; transmitia-me a paz que tão somente uma mãe o poderia fazer. “Mãe...” — Murmurei. — “Mãe!” — Bradei. Levantei-me com dificuldade, a areia acumulava-se no meu envolto; corri como pude, outra vez; chamando por ela. Clamando pelo seu amor vestal. No entanto, quão previsível... outra miragem; esvanecida enquanto tão próxima eu estava. “Áurea... minha menina Áurea...” — Ela dizia e eu a ouvia, doce voz, voz de estévia. Tocá-la intensificou a calima pouco antes do seu esvanecer.
Então fui consumida pela areia escarlate que, ao vento, levantava-se em seus infinitesimais grãos que outrora à superfície volátil se acumularam. Chorei sobre a areia, soterrando-me aos poucos; foram lágrimas secas, como meu corpo e meus lábios. Pouco depois, enquanto sentia a saudade arrancar-me toda a fé; um silêncio contrapôs o sopro agressivo do vendaval e, assim, chamou-me a atenção. Esforcei-me para sair da areia carmim e caminhei entre seixos de vidro natural e rochas do mesmo material que se formaram onduladas e com imensos orifícios orbiculares. Guiada pelo caminho de vidro, alcancei uma floresta morta. Contínuas árvores e arbustos de galhos secos jaziam ali e, a areia, antes abundante, aos poucos se dissipava. Doía-me a solidão que emergia, todavia, pressentia que algo valioso viria ao meu encontro se eu apenas continuasse a caminhar. E continuei. O mirrado arvoredo se densificava e uma estrada de magma frio moldado como ardósia surgiu aos meus pés quando toda a areia se foi. Durante a caminhada eu ouvia, no âmago do silencim, aquele sonido conhecido... da criatura mítica... agora eu sabia que era dela, mas ainda não a via.
Avistei, porém, uma casa; a minha casa; mas, sem o jardim. Escura em seu interior. Sem os vizinhos ou as abóboras ou o festim... sem as crianças e suas máscaras grotescas pintadas em açafrão... sem mamãe... sem romãs... ainda assim, senti que em seu interior eu estaria protegida em minha tristura; um lugar para fazer meu ninho de saudade, medo e melancolia. Fui à porta de cedro já envelhecida e abri-a desapressada. “O que... houve aqui?” — Expressei minha dor de ver as ruínas da casa que vivi por éons; fragmentos do tempo que passa e aniquila tudo o que temos de inestimável. Adentrei sua sala cuja luz era contida, vinda das janelas danificadas e das frestas da estrutura corroída. Meu coração se acalmou. Toquei a margem da lareira empoeirada... mamãe acendia seu interior nas noites frias e permitia-me observar o fogo tenro enquanto a ouvia cantarolar. Pouco depois, na semiescuridão, vi Seth. Sentado na cadeira de balanço, esperando com paciência, era o mesmo assento que amei por anos quando mais jovem, sentando-me para ler poemas ancestrais. Ver Seth trouxe-me serenidade, entretanto, por outro lado, temi algo que não sei. Seth levantou-se e se aproximou com cuidado e estendeu-me sua mão.
— É preciso aquiescer à finitude, minha Aesatt, para desfrutar da eternidade...— Segurei o braço de Seth e ele beijou minha fronte; caminhamos juntos para fora do lar em decadência, mas doeu deixá-lo, uma dor lânguida e demorada. No insípido cenário, flores negra, com nuances carmim, símeis às dálias floresciam por onde nossos pés caminhavam e, então, seguimos juntos dentre elas; era um brotar de beleza etérea que suscitara em minh’alma uma esperança luzidia de algures, e algum dia, ter um lar outra vez, mesmo debaixo do amargo sabor dos tantos fins que hei de colecionar tendo a imortalidade como pilar de meu existir. Mas, não era apenas tal veracidade que contornava a simbologia do sonho; Seth em meu lar arruinado, presente no vazio decadente de minha história olvidada; Lorrt a amar um outro eu... e mamãe... apaziguando-me ainda que como um espectro no deserto. É mesmo preciso aquiescer à finitude para desfrutar da eternidade.
Meus olhos abriram-se lacrimejantes. Eu compreendi muito e tão pouco... tão pouco e o que foi preciso. Senti a energia em minhas entranhas, uma disposição de enfrentar as dores, horrores e verdades, em meu nome, por mim, por Áurea Lihran morta, por Áurea Lihran de um devir e, acima de tudo, por Áurea Lihran que, naquele átimo solitário, tinha em suas mãos o poder de criar, ao mesmo tempo, o seu passado e o seu futuro. Eu sabia que árduo seria o enfrentamento do tempo que poderia, de fato, não existir naquele Castelo, mas existia no imo daqueles que possuíam a dádiva da vida, seja qual fosse sua forma de vida. Então sentei-me à beira de meu leito e vi de imediato o derredor em um branco puro; profundamente níveo — das paredes de pedra aos móveis vitorianos e à tapeçaria. À princípio pareceu-me normal, como se tudo já assim o fosse desde sempre, porém, soube pouco depois que eu ainda sonhava e, mais do que isso, eu estava em um sonho que não era apenas meu.
Sargento Anton Stefan Miahi, nascido em tempos de paz, educado para ser historiador e pensador, foi lançado ao tumulto da guerra contra os prussianos. Com 30 anos, vi-me arrancado de minhas reflexões e posto a cavalo, liderando homens em batalhas que desafiam a própria lógica que tanto prezo. Sou um homem de razão, porém, a guerra ensina que a racionalidade é uma vela frágil em meio aos ventos do caos.
_"Sou um filho da lógica, mas a guerra é um pai severo que ensina a loucura."_