Remorso Póstumo
Estive por tanto tempo absorta em pensamentos, me deliciando com as palavras ganhando vida em páginas em branco. Vestígios de um sangue azul de outrora me levaram para um frenesi que Malus não pôde prever. Vidrada, fui escrava de meus sentimentos e escrita desenfreada.
Desci a meu antigo vilarejo. Esbanjando suavidade, beleza e terror. Não cogitaram que eu pudesse ser um mero fantasma, me chamaram de Diabo, e levantaram suas cruzes para mim. Escárnio. Eu que dormia ao pé de uma cruz de madeira com um Jesus crucificado testemunhando meus desejos e sonhos pecaminosos. Ah, se eu fosse o Diabo... Não lhes tomaria somente o sangue, com prazer, torturaria suas almas.
O pai que minha mãe me dera, não de sangue, era um paspalho pervertido que tentara contra sua própria filha, Carrie, minha única irmã, 10 anos mais nova do que eu. Minha amada progenitora nada fazia, nada dizia, éramos nós por nós mesmas.
Eu almejava as alturas, ser imponente como a lua que me permitia enxergar na escuridão. E diante dela, eu jurei nunca mais temer alguém insignificante, desprezível e tão patético quanto aqueles que me criaram.
No deleite, alimentando-me do líquido carmesim de seus corpos, fui vista por Carrie. A fúria que se abateu em mim, por meu próprio ato descuidado, fez com que jogasse seu corpo frágil contra a lareira mal esculpida. Na tentativa de trazê-la de volta à vida, sem sucesso, me peguei saboreando de seu sangue puro, inocente e doce, como jamais havia sentido. Não era azul, mas era tão sublime quanto, ou ainda mais.
Delírios, devaneios, remorso, culpa, deleite... em minha vingança falha atentei contra o que ainda me prendia a um mundo do qual já não mais pertencia.
...
Malus
Deveras como um cadáver. Muito mais fria do que o habitual, pele azulada, quase que seca quanto uma flor desidratada.
— Maneira sublime de morrer, Concordo. Mas nada bela. — Peguei o corpo cadavérico de Anelly que estava jogado sobre a cama e o acomodei de maneira mais confortável.
— Há quanto tempo não se alimenta? — Ainda sem resposta, fiz um corte considerável em meu pulso e a alimentei.
A princípio permanecia inerte. Como se a vida já a tivesse escapado. Mas ao toque de meu sangue em seus lábios, pude perceber que Ane ainda estava ali. Com um toque fraco de suas mãos em meu braço, se alimentava gentilmente. À medida que recuperava suas forças, sentia que o impulso aflorava em seu ser. Esta era a jovem por quem estava ludibriado, sozinha, mas não inocente, doce, mas não frágil, delicada, mas sombria como a noite sem luar.
...
Anelly
Não pude suportar o peso de ter tomado a vida de quem mais amei. Carrie me assombrava e me fazia perder a sanidade que já duvidava se realmente tinha.
Fugi de mim, entregue às valsas, fios invisíveis e enquanto rastejava nas sombras. Pouco a pouco abandonei meu ser, deixando meu corpo inerte, à mercê da própria sorte. Quanto mais neve avistava pela janela, mas eu definhava.
Estava oca, a fome já havia me abandonado. Sentia minha pele fria se enrijecer, e minha mente se apagou. Não posso dizer quanto tempo depois fui desperta. O sabor inconfundível da criatura mais interessante e deliciosa que eu já havia conhecido tocou meus lábios, e eu só conseguia desejar por mais.
— Definitivamente não é uma bela forma para uma donzela padecer. — Falou seriamente Malus.
— Donzela? — Ri, deixando que um pouco de seu sangue percorresse o canto esquerdo de minha boca. — Uma piada, certamente, mas que não combina com seu tom de voz.
— Você desapareceu por dias. Não a sentia mais. Estive fora do castelo e não tinha certeza se te encontraria no meu retorno. — Franziu o cenho e perguntou interessado. — O que levaria você a fazer uma greve de fome?
— Não fiz uma greve de fome! — Respondi brava, incomodada com a insinuação tola e juvenil.
— Dias sombrios abraçam até os seres mais obscuros, eu sei. Mas o que houve, minha cara?
Relatei meu infortúnio e remorso póstumo. Malus deu de ombros. Disse que transformar minha irmã teria sido uma péssima ideia, e continuou:
— Bebês... Crianças e bebês têm o sangue mais doce e puro que poderá encontrar. Não saboreá-los é um desperdício. Não deixe que laços do passado a castiguem por um mal necessário. Uma vez que foi vista, não teria outra escolha.
Estranhamente me senti mais confortável comigo mesma após ouvi-lo. Era divertido ter sentimentos por ele. Alguém como nós sentir algo tão bom um pelo outro. Uma paixão ardente, mórbida e que cada vez mais me via dependente.
Folheando rapidamente meu diário, me prometeu um novo, em breve. Admirava a rapidez com que eu havia preenchido tantas páginas. Questionou uma máscara partida em cima da escrivaninha, preta e de renda. Disse não saber sobre sua origem, mas mostrei-lhe o poema "A Valsa dos Desesperados". Ele sorriu. Disse que o conde não perdia oportunidades. Beijou minha mão direita e se retirou.
Já muito mais disposta, caminhei até a janela. A neve havia se instaurado com força. O céu banhando em um azul-carmim, evidenciava uma lua lúgubre. A melancolia percorria minhas veias. Uma tristeza sem cor avançou sobre mim. Quase não tinha mais páginas, mas o tinteiro estava cheio. Malus deveria se apressar com meu novo diário, caso contrário, teria que recorrer a outros meios para continuar a escrever.
Suas veias azuladas
As mesmas que via em mim
Sob um sol frio e pálido
As últimas lembranças que me restam de ti.
(...)
Ana Kelly, natural de São Paulo (SP), é poeta, escritora, contista e artesã, sócia-proprietária da loja de acessórios e artigos alternativos, Ivory Fairy. Tem poemas e contos publicados como co-autora em diferentes antologias. No ano de 2009 recebeu o prêmio de 1º lugar, em um concurso…
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